O caminho pedregoso da integração
energética.
por Igor
Fuser*
A América do Sul avançou de forma significativa,
mas a interligação entre os países está muito aquém do que poderia ser.
A usina de Itaipu é um marco da primeira fase de
integração energética na América do Sul. Foto: Itaipu Binacional.
Entre os contraditórios pontos de vista presentes
no debate sobre a integração energética sul-americana, o único tópico de
consenso é o que se refere às vantagens econômicas que podem ser obtidas com a
criação de um intenso fluxo internacional de energia na região. No espaço
geográfico da América do Sul, países com forte superávit de recursos
energéticos exportáveis (Venezuela, Bolívia, Paraguai, Peru) convivem com
outros que, em escalas variadas, necessitam importar energia para atender à
demanda interna (Chile, Argentina, Brasil, Uruguai). A integração energética
surge, claramente, como um objetivo desejável – em primeiro lugar, pelos ganhos
decorrentes da complementaridade econômica entre os diferentes países; em
segundo lugar, pela possibilidade de redução dos custos da energia; e,
finalmente, pela oportunidade de diversificação da matriz energética. Não por
acaso, a energia tem sido apontada, junto com as grandes rodovias projetadas ou
em execução, como a coluna vertebral da integração sul-americana. Essa tem sido
a tônica, especialmente, nos encontros da Unasul, organização regional que
atribui prioridade à integração política e de infraestrutura, em contraposição
ao enfoque centrado na liberalização comercial que marcou o impulso
integracionista da década de 1990.
Chama atenção, nesse contexto, a evidente defasagem
entre a integração energética possível e desejável – do ponto de vista do
desenvolvimento, da soberania econômica e da segurança energética da região e
de cada país em particular – e a realidade existente. Os empreendimentos com
base no uso compartilhado de recursos de energia e/ou no seu fluxo
além-fronteiras se fazem presentes em número reduzido, na maioria anteriores
aos projetos integracionistas agrupados na IIRSA, a iniciativa de Integração da
Infraestrutura Regional Sul-Americana, lançada em dezembro de 2000. Os projetos
da IIRSA foram mais tarde incorporados pela Unasul, por meio do Conselho
Sul-Americano de Infraestrutura e Planejamento (Cosiplan), criado em 2009. Por
outro lado, avanços significativos têm se registrado nestes últimos quinze
anos, embora ainda se situem muito aquém do discurso voluntarista dos
governantes e envolvam novos problemas e contradições. A distância entre a
retórica e os fatos contribui para um clima de ceticismo perante o objetivo
estratégico de uma integração regional voltada para a autonomia e o
desenvolvimento da região.
No quadro da acirrada disputa política e ideológica
que caracteriza o cenário regional, as limitações no projeto da integração
energética, assim como as situações de conflito, têm sido instrumentalizadas
por atores contrários a qualquer tipo de integração fora dos marcos da
globalização neoliberal. Esses atores – jornalistas, consultores, acadêmicos,
executivos, empresários e políticos a serviço do capital transnacional – se
apoiam nas dificuldades realmente existentes para contestar a política de
integração energética dos governos progressistas ou pós-neoliberais, debilitar
o protagonismo da Unasul e do Mercosul e favorecer o retorno à orientação
política “pró-business” do período anterior. Enfatizam, em especial, o tema da
“segurança jurídica” dos investimentos em energia, supostamente violada por
governos progressistas, e reivindicam a adoção de normas e políticas que
assegurem a supremacia do capital privado sobre a soberania dos Estados como
único meio de desenvolver o potencial econômico e a integração energética da
América do Sul.
A integração energética pode ser definida de duas
maneiras: como simples transferência de recursos de um país para outro ou como
a adoção de políticas de energia coordenadas em escala internacional, a partir
de um planejamento conjunto que leve em conta as capacidades e as necessidades
de cada um dos atores envolvidos. Na América do Sul, a interpretação vigente
corresponde à primeira dessas duas ideias. Como assinala Gerardo Honty, “a
integração a que nós temos assistido é, essencialmente, uma interconexão física
para transportar eletricidade e gás natural, sem nenhum compromisso político e
sem aspirações de projetar um desenvolvimento regional sustentável”.
Historicamente, as iniciativas de integração ou
interconexão energética na América do Sul ocorrem em fases claramente
distintas, conforme explicam os pesquisadores Victorio Oxilia e Murilo Fagá. A
primeira fase, nas décadas de 1970 e 1980, se caracteriza pela forte
participação do Estado nos projetos relacionados ao setor energético. É o
período dos grandes projetos binacionais, com destaque para as hidrelétricas de
Itaipu (Brasil-Paraguai), Yaciretá (Argentina-Paraguai) e Salto Grande
(Argentina-Uruguai). Em 1972 foi inaugurado o primeiro gasoduto internacional
na América do Sul, o Yabog, para o envio de gás natural boliviano à Argentina.
Na fronteira norte do Brasil, o estado de Roraima passou a receber a energia
elétrica da represa venezuelana de Guri, a terceira maior do mundo.
A segunda fase, na década de 1990, se caracteriza
pela centralidade dos investimentos privados, no contexto da hegemonia política
neoliberal na região. Nesse período as represas hidrelétricas ficaram em
segundo plano diante da prioridade à instalação de usinas térmicas, mais
atraentes do ponto de vista das empresas transnacionais. O foco se deslocou
para a comercialização de gás natural através de grandes dutos. Em 1996 se
iniciou a construção do Gasbol, entre a Bolívia e o Brasil, inaugurado três
anos depois. Ao mesmo tempo, a privatização do setor energético na Argentina,
com a venda da YPF (Yacimientos Petrolíferos Fiscales) e Gas del Estado ao
capital estrangeiro, foi acompanhada pela construção de uma rede de sete
gasodutos (todos eles, pertencentes a empresas privadas) para a exportação de
gás argentino para o Chile.
O fracassado projeto de exportação de gás boliviano
para a América do Norte por meio de um porto chileno (na forma de gás natural
liquefeito, o GNL) correspondia à lógica livre-cambista dessa fase. A ideia era
fornecer energia barata aos mercados do México e dos Estados Unidos, mas os
atores envolvidos não levaram em conta o sentimento popular na Bolívia em torno
do contencioso com o Chile sobre perda do acesso ao Pacífico. A insensibilidade
dos governos neoliberais bolivianos na condução desse projeto forneceu o
estopim para a “Guerra do Gás”, de outubro de 2003, quando uma insurreição
popular derrubou o presidente Gonzalo Sánchez de Lozada e abriu o caminho para
mudanças políticas cujo impacto transcendeu a própria Bolívia, com fortes
implicações no campo da energia.
O início do novo milênio inaugurou uma terceira
fase na integração energética regional. A eleição de Hugo Chávez na Venezuela
em dezembro de 1998 (com um programa centrado na revisão da “governança”
privatista da estatal PDVSA), o colapso do modelo econômico neoliberal na
Argentina sob o estrondo dos panelaços de 2001 e a “Guerra do Gás” na Bolívia
são momentos fundadores de um novo ciclo político na América do Sul. Nos países
onde se instalaram governos progressistas ou “pós-neoliberais”, o Estado
recuperou a posição de ator econômico central.
No campo da energia, os novos governos se depararam
com os graves problemas criados pelas políticas neoliberais. No Brasil, a
solução para o naufrágio das termelétricas da gestão de Fernando Henrique
Cardoso foi relativamente simples: redirecionar a energia barata do Gasbol para
o uso industrial direto no Sudeste, com destaque para os setores de vidro,
cimento e cerâmica. Já na Argentina, Néstor Kirchner herdou o cenário
catastrófico decorrente das práticas predatórias das empresas estrangeiras de
hidrocarbonetos que ingressaram no país após as privatizações. Ao tomarem posse
das reservas de petróleo e gás, essas empresas aceleraram a extração a fim de
maximizar as remessas de lucros para o exterior, nos prazos mais curtos, sem
realizar os investimentos necessários em pesquisa e desenvolvimento de novas
reservas. A produção aumentou rapidamente, mas as reservas diminuíram.
Nos primeiros anos da exportação de gás argentino
para o Chile, o problema permaneceu oculto, pois a Argentina se encontrava em
recessão. “Os hidrocarbonetos eram pensados como commodities, sem valor
estratégico”, escreveu Diego Mansilla. Porém, com a retomada do crescimento
econômico, após a substituição do modelo neoliberal pelo neodesenvolvimentismo
de Kirchner, o país se viu na iminência de um colapso energético, enquanto a
produção de gás e de petróleo entrava em declínio, após atingir um pico em
2004. A solução foi retomar a importação de gás boliviano pelo Yabog
(interrompidas com o incremento da produção argentina na década anterior) e,
para o horror dos apóstolos da sacralidade dos contratos, reduzir a níveis próximos
do zero as remessas pelos gasodutos destinados ao Chile. Até hoje esses dutos
se encontram praticamente inativos. Quanto ao Chile, abandonou qualquer
intenção de enfrentar sua crônica carência de energia por mecanismos de
integração regional e passou a importar GNL de fornecedores de outras partes do
mundo, por custos muito superiores ao do combustível recebido por gasodutos. Os
críticos neoliberais evitam mencionar esse imbróglio constrangedor e, quando o
fazem, é para condenar o “populismo” de Kirchner, culpado por priorizar o
autoabastecimento do seu próprio país, ao preço de descumprir os compromissos
irresponsáveis assinados por seus antecessores.
O contencioso Brasil-Bolívia
Na Bolívia, a mudança do modelo econômico e
político, de acordo com a vontade do eleitorado expressa em 2005 pela eleição
de Evo Morales, com a mais alta votação presidencial até aquela data,
pressupunha a revisão das regras para a exploração e o comércio de recursos
energéticos, definidas na década de 1990 em termos considerados lesivos aos
interesses nacionais. A privatização entregou a empresas estrangeiras as ricas
reservas do país em hidrocarbonetos e incluiu a virtual extinção da empresa
estatal Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB). A Petrobrás
adquiriu o controle das duas maiores jazidas bolivianas de gás (os campos de
San Alberto e San Antonio), a partir das quais abastece o Gasbol. Por meio de
um artifício denunciado como ilegal, a Petrobrás passou a se beneficiar de um
regime fiscal que permitia a exportação do gás extraído desses dois campos
mediante o pagamento de apenas 18% da receita líquida na forma de impostos e
royalties, apropriando-se dos restantes 82%.
O Decreto de Nacionalização, firmado por Morales em
1º de maio de 2006, transferiu para o Estado boliviano a propriedade jurídica
do petróleo e do gás após a extração, mas preservou a participação das empresas
estrangeiras no processo produtivo – uma diferença importante em relação à
experiência histórica das nacionalizações, geralmente acompanhadas da
expropriação dos ativos privados. O que ocorreu na Bolívia foi a abertura de
negociações entre o governo e as transnacionais (inclusive a Petrobrás),
culminando com a assinatura de novos contratos, bem mais favoráveis ao Estado
boliviano do que os anteriores, mas ainda assim considerados aceitáveis pelas
empresas estrangeiras, que optaram por permanecer no país, com apenas uma
exceção. No caso da Petrobrás, a única transferência relevante de patrimônio é
a que envolveu as duas refinarias (as únicas existentes na Bolívia) cujas ações
a empresa brasileira vendeu ao Estado boliviano, por um preço considerado justo
por ambas as partes, para não se ver na condição de acionista minoritária no
empreendimento (e por que não?).
A isso se resume o motivo de toda a gritaria (cujos
ecos ainda ressoam no Brasil) contra o “desrespeito” aos contratos pelo governo
boliviano. Passados quase nove anos da nacionalização, a Petrobrás já retomou
seus investimentos em exploração gasífera no país vizinho. O planejamento estratégico
da empresa prevê a renovação, em 2019, por mais vinte anos, dos contratos para
o fornecimento de gás natural por meio do Gasbol. Qualquer eventual dúvida
quanto à racionalidade das decisões tomadas por Morales em 2006 (questionadas
como “ideológicas” pelos críticos neoliberais) se reduziu a fumaça diante dos
excelentes indicadores econômicos e aos avanços sociais alcançados pela Bolívia
nos anos seguintes, graças ao aumento espetacular da receita estatal com as
exportações de gás natural. Mas o episódio continua a ser citado,
insistentemente, pelos fanáticos do “livre mercado”, como prova de que os
governos progressistas sul-americanos não são parceiros confiáveis.
O desafio socioambiental
A trajetória recente da integração energética
sul-americana inclui projetos que não foram adiante, como o Gasoduto do Sul
idealizado no governo Chávez para irrigar com gás venezuelano o Nordeste
brasileiro e o Cone Sul, mas apresenta também experiências bem-sucedidas ou em
fase de implantação. O intercâmbio Bolívia-Argentina do gás natural foi
retomado a partir da inauguração, em 2011, do gasoduto internacional Juana
Azurduy, com capacidade para transportar 11 milhões de metros cúbicos de gás
por dia (o Gasbol transporta até 30 milhões e o Yabog, 7 milhões). A Colômbia
exporta gás natural para a Venezuela por meio do Gasoduto Transguajiro, que, no
futuro, quando as jazidas da bacia do Orenoco estiverem em produção, deverá
inverter seu fluxo para levar gás do leste venezuelano ao país vizinho.
No campo hidrelétrico, destaca-se um conjunto de
projetos binacionais envolvendo o Brasil e países limítrofes. Esses projetos
esbarram em obstáculos de natureza social e/ou ambiental. O complexo
hidrelétrico de Garabi-Panambi, empreendimento conjunto Brasil-Argentina para
geração de energia no Rio Uruguai a partir de 2016, enfrenta forte resistência
das comunidades ribeirinhas locais, aflitas com a inexistência de uma política
clara de direitos capaz de indenizar com justiça as 15 mil famílias que serão
desalojadas, em 30 pequenos municípios do Rio Grande do Sul. No lado argentino
da fronteira, os moradores da província de Misiones protestam por não terem
sido consultados previamente pelas autoridades. Outra iniciativa polêmica é que
envolve a construção de até vinte hidrelétricas na Amazônia peruana, com a
participação de empreiteiras brasileiras e financiamento do BNDES. Na maioria
dos casos, essas usinas se destinam a fornecer energia para o Brasil. Os
opositores argumentam que o Peru arcaria com os elevados impactos sociais e ambientais
desses empreendimentos, enquanto o Brasil colheria a maior parte dos benefícios
econômicos. Esses impasses indicam que o tema da integração energética não pode
ser separado de uma discussão mais ampla sobre os modelos de desenvolvimento em
âmbito nacional e regional. Qual é a função econômica e social dos novos
aportes de energia que pretendemos produzir na América do Sul? Quais são os
custos que nossas sociedades estão dispostas a aceitar?
* Igor Fuser é professor de Relações
Internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC), autor do livro Energia e
Relações Internacionais (Saraiva, 2013), e integrante do Grupo de Reflexão
sobre Relações Internacionais/GR-RI.
Fonte: Carta Capital
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