A próxima despensa global na
corda bamba.
por Diana
Cariboni, da IPS
Regina Illamarca e Natividad Pilco, duas indígenas
dos Andes do Peru, que, como muitas, são preservadoras das sementes nativas de
sua região. Foto: Milagros Salazar/IPS.
Montevidéu, Uruguai, 2/10/2014 – “Podemos ser a
última geração de latino-americanos e caribenhos a conviver com a fome”,
afirmou Raúl Benítez, representante regional da Organização das Nações Unidas
para a Alimentação e a Agricultura (FAO). A afirmação mostra um lado da moeda:
somente 4,6% da população regional está desnutrida, segundo dados fornecidos
por esta agência da ONU no estudo O Estado da Insegurança Alimentar no Mundo
2014, divulgado em setembro.
Com quase 600 milhões de habitantes, América Latina
e Caribe possuem um terço da água doce do planeta e mais de um quarto de suas
terras agrícolas de média e alta produtividade, diz um livro publicado este ano
pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), em associação com o Global
Harvest Initiative, um centro de pensamento financiado pelo setor privado.
É a terceira maior região em exportação de
alimentos, embora empregue apenas uma pequena parte de seu potencial agrícola,
tanto para consumo interno como para o mercado exterior. Mas quase um quarto da
população rural latino-americana ainda sobrevive com menos de US$ 2 por dia, e
sua geografia é determinante para os desastres (terremotos, furacões,
inundações e secas), alguns exacerbados pela mudança climática.
O aquecimento global traz sérios desafios para que
a comunidade internacional alcance a meta de erradicar a pobreza e a fome. As
mudanças nos regimes de chuvas, nos solos e nas temperaturas já estão afetando
os sistemas agrícolas. Mais de 800 milhões de pessoas de todo o mundo sofrem
hoje o risco da fome. Por seus efeitos nas colheitas e nos meios de vida, a
mudança climática pode ampliar esse flagelo em 20% até 2050, afirma um
documento da ONU.
As alterações de temperaturas e precipitações
poderiam encarecer os preços dos alimentos entre 3% e 84% até 2050. A organização
humanitária Oxfam afirma que nos cenários mais extremos o calor e a falta de
água poderiam reduzir as colheitas em 25% entre 2030 e 2049. É provável que a
mudança climática seja mais nociva para os pequenos produtores e familiares
que, nessa região, produzem mais da metade dos alimentos e não têm recursos
suficientes para se adaptarem a um clima alterado.
Apesar dessa ameaça latente, as estratégias de
sustentabilidade na América Latina não estão claras.
Os motores do crescimento
são as matérias-primas de exportação. E, embora alguns setores tenham avançado
em valor agregado, tecnologia e inovação, a exploração de recursos naturais
continua sendo a chave do boom regional. As matérias-primas e os
produtos básicos representaram 60% das exportações regionais em 2011, enquanto
em 2000 constituíam 40%, segundo o documento Perspectivas Econômicas 2014,
da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal).
Ao mesmo tempo, o estudo diz que esse crescimento
das vendas externas de produtos básicos causou uma substituição das manufaturas
domésticas por bens importados, afetando as indústrias manufatureiras
regionais. No campo, os modelos de pequena agricultura e extensas monoculturas
de espécies geneticamente modificadas travam uma luta de Davi contra Golias.
No Paraguai, quarto maior exportador de soja do
mundo, 1,6% dos proprietários concentram 80% das terras agrícolas, segundo
afirma a Oxfam no documento A Pequena Agricultura em Perigo. Já na
Guatemala, acrescenta o estudo, 8% dos produtores possuem 82% das terras,
enquanto 80% das áreas produtivas da Colômbia estão em mãos de 14% dos
proprietários. A produção agropecuária e o desmatamento vinculado a ela são
grandes fontes de gases-estufa na América Latina, embora outros fatores estejam
crescendo aceleradamente.
O Brasil, por exemplo, está ingressando no clube
dos grandes contaminadores, pois nos últimos cinco anos a queima de
combustíveis fósseis passou a ser responsável pela maior parte das emissões de
gases-estufa do país. Na medida que crescem, as indústrias extrativistas
demandam mais estradas, ferrovias e portos, e suas empresas pressionam os
governos para evitar o chamado “apagão logístico”.
O mercado de energia também está crescendo, e não
só o das indústrias, mas o de milhões de pessoas que saíram da pobreza e têm,
portanto, maiores necessidades de consumo. Estima-se que no período 2010-2017 a
demanda energética regional crescerá a uma taxa anual de 5%.
Além disso, a América Latina cruzará uma nova
fronteira em matéria de combustíveis fósseis, quando Argentina, Brasil e México
superarem diferentes desafios políticos, financeiros e técnicos para explorar
grandes reservas de hidrocarbonos não convencionais, como a formação austral
argentina de Vaca Muerta e as jazidas do pré-sal na plataforma continental
brasileira.
Não é simples argumentar que uma região com tanta
riqueza natural não tenha direito à explorá-la ativamente e aproveitar a
demanda por matérias-primas, especialmente quando a renda fiscal resultante
permitiu à Bolívia, por exemplo, reduzir a extrema pobreza de 38% em 2005 para
20% no ano passado. Mas os especialistas alertam que esse rumo econômico é
insustentável e que os impactos da mudança climática, já sentidos em toda a
região, podem minar qualquer avanço social.
Na Guatemala, para citar um caso, a pior seca dos
últimos 40 anos indica que 1,2 milhão de pessoas possam sofrer fome nos
próximos meses. Ao que parece, os que sofrem o pior impacto do desenvolvimento
econômico insustentável são, paradoxalmente, aqueles que menos contribuíram
para o aquecimento global.
Um relatório da ONU descrevendo ações para o
acompanhamento do programa adotado em 1994 pela Conferência Internacional sobre
População e Desenvolvimento, afirma que apenas “um terço da população mundial
tem padrões de consumo que poderiam ser considerados contribuintes de emissões”
vinculadas à mudança climática. Menos de um bilhão de pessoas desse terço
causam um impacto significativo, enquanto “uma minoria ainda menor responde por
uma porção exageradamente grande do dano”, acrescenta o documento.
No entanto, serão os mais pobres aqueles que
suportarão as consequências. E os da América Latina – “a próxima despensa
global”, segundo definição do BID e de diferentes especialistas – precisam de
respostas locais e mundiais firmes se querem alcançar o desenvolvimento
sustentável na próxima década.
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