quinta-feira, 12 de novembro de 2015

“Ostra feliz não faz pérola”.
Atrair uma criança para fora de seu território lúdico é romper com a poesia da infância. Foto: Shutterstock.

Por Maria Helena Masquetti*

Quando um grão de areia adentra a carne da ostra, para aliviar-se da dor, ela o envolve com uma substância lisa e brilhante, formando então a pérola. Assim, o título em aspas, do saudoso educador Rubem Alves, é relembrado aqui para falar de crianças capazes de gestos e falas surpreendentes.

“Eu acho que vocês conseguem se acertar”; “Estou tentando ser compreensiva, com os pés no chão”; “Estou tentando fazer o que meu coração manda” são frases de uma garotinha de apenas seis anos, cujo video tem bombado na internet. Quase trinta e cinco mil comentários, todos, até o ponto onde consegui acompanhar (e foram muitos), extasiados com o discurso da pequena a respeito das brigas dos pais. “Que fofa!”, “Maravilhoso!”, “Lucidez impressionante”; “Deus usou essa menina para falar ao mundo”, são os comentários que praticamente sintetizam os demais.

No entanto, o fato preocupante, para dizer o mínimo, é a ausência de comentários penalizados (o certo seria chocados) por que não, com a desfiguração do mundo lúdico da criança. E a convicção de tantas pessoas de que criança inteligente é a que fala ou age como adultos. É importante entender que a lógica das crianças é diferente da nossa. Por não terem ainda a capacidade de abstração desenvolvida, para elas, os objetos se definem por aquilo que elas veem e sentem, sem um sentido duplo ou figurado.

“Fazer o que o coração manda” é uma linguagem figurada convencionada pelos adultos. O mesmo se aplica à expressão“com os pés no chão”ou a “vocês conseguem se acertar”. Não que seja impossível às crianças fazer tal abstração, o video mostra que é. O problema é o custo emocional disso. Significa que o modo infantil de pensar já migrou para a lógica adulta, rompendo a espontaneidade que permitia à criança captar sentimentos que nosso coração já não reconhece e imagens que nossos olhos não sabem mais ver.

No dicionário do humor infantil, de Pedro Bloch, uma criança conclui que “reflexo é quando a água do lago se veste de árvores”. À excessão talvez de um bom humorista ou poeta (dos quais geralmente se diz que preservam a lógica infantil), um adulto não chegaria tão facil à uma definição tão ímpar. Nem um adulto e, provavelmente, nem a garotinha do vídeo famoso, cujo modo inocente e lúdico de interpretar o mundo a sua volta certamente já foi violado.

Lugar de criança é no brincar, longe das questões que caberiam adultos não somente julgar como manter longe do alcance dos pequenos. Vale para pais, para educadores, para apresentadores de TV e para a sedução do marketing que, cada vez mais, insiste que criança inteligente e feliz é aquela que deseja coisas e quer comprar como adultos. Ou que, aos sete anos, discute a relação amorosa como no comercial de celular. Atrair uma criança para fora de seu território lúdico é romper com a poesia da infância, materializando o que profetizou a psicóloga e autora Alice Miller: “Enquanto não nos sensibilizarmos pelo sofrimento das crianças, esse exercício de poder continuará despercebido, tomado como irrelevante e totalmente trivializado, por tratar-se ‘apenas de crianças’. Em vinte anos, essas crianças se tornarão adultos que farão seus filhos pagar a conta”. 

* Maria Helena Masquetti é graduada em Psicologia e Comunicação Social, possui especialização em Psicoterapia Breve e realiza atendimento clínico em consultório desde 1993. Exerceu a função de redatora publicitária durante 12 anos e hoje é psicóloga do Instituto Alana.


Fonte: ENVOLVERDE

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