“Ostra
feliz não faz pérola”.
Atrair uma criança para fora de seu território
lúdico é romper com a poesia da infância. Foto: Shutterstock.
Por Maria Helena Masquetti*
Quando um grão de areia adentra a carne da ostra,
para aliviar-se da dor, ela o envolve com uma substância lisa e brilhante,
formando então a pérola. Assim, o título em aspas, do saudoso educador Rubem
Alves, é relembrado aqui para falar de crianças capazes de gestos e falas
surpreendentes.
“Eu acho que vocês conseguem se acertar”; “Estou
tentando ser compreensiva, com os pés no chão”; “Estou tentando fazer o que meu
coração manda” são frases de uma garotinha de apenas seis anos, cujo video tem
bombado na internet. Quase trinta e cinco mil comentários, todos, até o ponto
onde consegui acompanhar (e foram muitos), extasiados com o discurso da pequena
a respeito das brigas dos pais. “Que fofa!”, “Maravilhoso!”, “Lucidez
impressionante”; “Deus usou essa menina para falar ao mundo”, são os
comentários que praticamente sintetizam os demais.
No entanto, o fato preocupante, para dizer o
mínimo, é a ausência de comentários penalizados (o certo seria chocados) por
que não, com a desfiguração do mundo lúdico da criança. E a convicção de tantas
pessoas de que criança inteligente é a que fala ou age como adultos. É
importante entender que a lógica das crianças é diferente da nossa. Por não
terem ainda a capacidade de abstração desenvolvida, para elas, os objetos se
definem por aquilo que elas veem e sentem, sem um sentido duplo ou figurado.
“Fazer o que o coração manda” é uma linguagem
figurada convencionada pelos adultos. O mesmo se aplica à expressão“com os pés
no chão”ou a “vocês conseguem se acertar”. Não que seja impossível às crianças
fazer tal abstração, o video mostra que é. O problema é o custo emocional
disso. Significa que o modo infantil de pensar já migrou para a lógica adulta,
rompendo a espontaneidade que permitia à criança captar sentimentos que nosso
coração já não reconhece e imagens que nossos olhos não sabem mais ver.
No dicionário do humor infantil, de Pedro Bloch,
uma criança conclui que “reflexo é quando a água do lago se veste de árvores”.
À excessão talvez de um bom humorista ou poeta (dos quais geralmente se diz que
preservam a lógica infantil), um adulto não chegaria tão facil à uma definição
tão ímpar. Nem um adulto e, provavelmente, nem a garotinha do vídeo famoso,
cujo modo inocente e lúdico de interpretar o mundo a sua volta certamente já
foi violado.
Lugar de criança é no brincar, longe das questões
que caberiam adultos não somente julgar como manter longe do alcance dos
pequenos. Vale para pais, para educadores, para apresentadores de TV e para a
sedução do marketing que, cada vez mais, insiste que criança inteligente e
feliz é aquela que deseja coisas e quer comprar como adultos. Ou que, aos sete
anos, discute a relação amorosa como no comercial de celular. Atrair uma
criança para fora de seu território lúdico é romper com a poesia da infância,
materializando o que profetizou a psicóloga e autora Alice Miller: “Enquanto
não nos sensibilizarmos pelo sofrimento das crianças, esse exercício de poder
continuará despercebido, tomado como irrelevante e totalmente trivializado, por
tratar-se ‘apenas de crianças’. Em vinte anos, essas crianças se tornarão
adultos que farão seus filhos pagar a conta”.
* Maria Helena Masquetti é graduada em
Psicologia e Comunicação Social, possui especialização em Psicoterapia Breve e
realiza atendimento clínico em consultório desde 1993. Exerceu a função de
redatora publicitária durante 12 anos e hoje é psicóloga do Instituto Alana.
Fonte: ENVOLVERDE
Nenhum comentário:
Postar um comentário