Os dramas
da sociedade diante dos privilégios.
Nas cidades maiores certamente os dramas são mais
intensos – ou mais visíveis, mais expostos. Foto: Shutterstock
Por Washington Novaes*
Embora não seja novidade absoluta, não deixa de
surpreender artigo, publicado no último dia 30 pelo jornal O Popular, em que o
cientista social Murilo R. Macêdo, do Instituto Mauro Borges, de Goiânia, ao
comentar desigualdades de renda, acentua que, com índice de Gini (que mede
essas desigualdades) de 0,57, embora tenhamos avançado, estamos no mesmo
patamar que a Zâmbia, que tem o nono pior índice no mundo. Outras fontes
lembram que nossa taxa de desemprego está próxima de 8%. A renda média do
trabalhador, descontada a inflação, caiu 0,8%. O número de inativos sem
trabalho e sem emprego já passou de 50 milhões. São muitos os reflexos. Aluguel
mais caro e desemprego crescente têm contribuído para a proliferação de favelas
em São Paulo, como os jornais têm noticiado, já que o aluguel médio subiu 98%,
ante inflação em torno de 54%.
Por isso é uma boa iniciativa a lei federal que
entrou em vigor regulamentando a profissão e os direitos dos artesãos. Eles
muito raramente aparecem nas estatísticas do trabalho, mas são muito úteis
socialmente. Só eles sabem executar as tarefas que cumprem. Utilizam materiais
que, não fossem eles, se transformariam em lixo, desperdício, fontes de
poluição. E ainda criam obras de arte. Mas não tinham nenhuma proteção de seus
direitos. Doravante poderão formar cooperativas, associações ou trabalhar
individualmente. Também é boa notícia a entrada em vigor da lei dos direitos
dos empregados domésticos. Passaram a ter proteção como a de seguro para
acidentes no trabalho, seguro-desemprego, salário-família e adicional por
trabalho noturno, entre outros direitos. Poucas profissões são tão úteis a
tantas pessoas. Têm valor inestimável a organização dos lares, o preparo das
refeições, a limpeza, a economia de materiais. E ainda os cuidados com
crianças. Quase sempre com salários baixos.
Nas cidades maiores certamente os dramas são mais
intensos – ou mais visíveis, mais expostos.
Precisam de mais proteção. Mas, em
geral, o que se vê é a preocupação maior exatamente com setores da sociedade
mais protegidos. Por exemplo: em Curitiba, na recente votação do Plano Diretor,
foi vetada a proposta de implantar o pedágio urbano e o rodízio de placas de
automóveis. Esqueceu-se, como de hábito, que nas nossas cidades um terço da
população só anda a pé – e seria beneficiada com menor fluxo de veículos com as
duas propostas vetadas.
Na direção oposta, seguimos concedendo cada vez
mais incentivos ao uso de veículos e aos seus fabricantes. No final de outubro,
por exemplo, foi zerado o imposto (que podia ser de até 35%) sobre a importação
de carros elétricos, quando já não sabemos o que fazer com mais de 3 milhões de
veículos que a cada ano vão para as ruas. Em São Paulo, os donos dos elétricos,
por decreto municipal, receberão de volta metade do IPVA. Já bancos federais
anunciam a concessão de R$ 8,1 bilhões em incentivos ao setor fabricante de
automóveis.
Como não notar que isso acontece simultaneamente ao
noticiário sobre a fraude com veículos a diesel fabricados pela Volkswagen, que
só agora admitiu a “falha” com os softwares de seus carros, que registram há 15
anos muito menos poluentes do ar do que era declarado (ela já as conhecia desde
2011). Nos EUA noticia-se que essas emissões podem ser até 40% mais altas do
que as declaradas.
Ali, 11 milhões de veículos estão sendo chamados para
“recall”. Escândalo de tal ordem que em 48 horas as ações da empresa caíram 34%
em valor. Aqui, diz o Ibama que “vai investigar”, segundo os jornais. Mas
poucos se lembram de perguntar que malefícios o aumento das emissões terá
trazido para o cidadão, principalmente o pedestre exposto nas ruas.
A pluição mata mais que aids e malária. Foto:
Shuttersotk
Estudo da revista Nature, em setembro, informou que
mais de 3,3 milhões de pessoas morrem todos os anos por causa da poluição do ar
– mais de seis mortes por minuto, mais que mortes por aids e por malária. E a
projeção é de que esses números podem dobrar até 2050. À poluição causada por
veículos são atribuídas 5% das mortes (20% nos países mais ricos), segundo o
Instituto Max Planck de Química, da Alemanha. Carvão e madeira usados na
cozinha e no aquecimento, assim como o diesel em geradores, provocam metade das
645 mil mortes anuais na Índia e um terço do 1,4 milhão de mortes na China (O
Globo,16/9).
Por aqui, desde março não foram renovados os
contratos da Agência Nacional do Petróleo com 16 universidades, em 20 Estados,
que faziam o monitoramento da qualidade dos combustíveis (cinco continuam tendo
a verificação). Como andarão as emissões nesses lugares? O número de postos
monitorados caiu 53% (O Estado de S. Paulo, 11/10).
E ainda não é tudo. No âmbito da Operação Zelotes,
foram presas várias pessoas da administração federal e o vice-presidente da
Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), sob
suspeita de terem manobrado para a aprovação, até mesmo no Congresso Nacional,
de três medidas provisórias (n.ºs 471/2009, 512/2010 e 627/2013), que deram
vantagem fiscais a montadoras, “implicando perdas para a União”.
Na direção oposta, seguimos concedendo cada vez
mais incentivos ao uso de veículos e aos seus fabricantes. Foto: Shutterstock
Enquanto isso, mais de 30% dos brasileiros consomem
mais de uma hora diária ao deslocar-se para o trabalho – e não se veem
políticas públicas adequadas para minorar suas dificuldades. Nem é preciso
mencionar as calamidades dos acidentes no trânsito, que têm sido comentadas
neste jornal (15/10).
Também não é preciso agora enveredar por outros
dramas urbanos, como a escassez de água em grandes cidades brasileiras, ou as
deficiências na saúde e no saneamento, ou a violência cada vez maior no
cotidiano. O que e preciso repetir até a exaustão é que a sociedade precisa com
urgência organizar-se, formular e exigir a aprovação de políticas públicas
adequadas nessas áreas – em lugar dos privilégios a alguns setores, como os
mencionados neste artigo.
* Washington Novaes é jornalista (e-mail:
wlrnovaes@uol.br).
Fonte: O Estado de S. Paulo
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