Mariana:
desastres viram chance de ganhar dinheiro sobre o sofrimento.
Quanto vale as vidas abruptamente transformadas,
sem a possibilidade de alternativa em decorrência da violência do desastre?.
Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil.
Quem sabe a próxima oportunidade para vampiros de
desastres ecológicos será em Parauapebas, centro do projeto Carajás.
Por Felipe Milanez, da Carta Capital –
Tragédias ecológicas de proporções catastróficas,
logo quando ocorrem, rompem o silêncio da mídia sobre situações de riscos que
estavam marginalizadas e dão grande atenção aos espetáculos – sensacionalizando
os aspectos macabros.
No caso da cobertura da catástrofe em Mariana, essa
atenção da mídia tem sido parcial, baseada em informações prestadas pela
Samarco, que se tornou inclusive a “sede” do governo de Minas para uma coletiva
de imprensa.
A culpa da catástrofe, um crime socioecológico, tem
sido naturalizada, transferida para a natureza, enquanto as responsabilidades
de empresas e governos são diluídas em meio ao caos e desespero.
A urgência nas respostas para salvar vidas –
humanas e não humanas – logo transforma-se em um emergencialismo. Planos
preventivos que deveriam ter sido realizados e não passam a ser cobrados, como
agora em Mariana, com decisão judicial para que um plano seja apresentado em
cinco dias, ou que seja pago um salário mínimo para as famílias atingidas. Tudo
curto e rápido, como panos quentes para aliviar.
Respostas rápidas são necessárias para aliviar o
sofrimento imediato. No entanto, podem servir apenas para dar conta de uma
pressão inicial do espetáculo do desastre, e deixar para aqueles que são mais
atingidos um longo e perene sofrimento.
O desastre industrial que aconteceu em Bhopal, na
Índia, em 1984, e Chernobyl, em 1986, não ficaram no passado, produzindo
efeitos terríveis da contaminação ao longo do tempo para milhares de pessoas e
para o ambiente.
O desastre em Mariana provocado pela mineradora
Samarco, da Vale e da australiana BHP, também terá uma longa duração no tempo,
seja no ambiente, seja na vida das pessoas. A resiliência, que é a capacidade
de reconstrução e recuperação do trauma, pode ser impossível.
Em um relatório de 2011, a ONU afirma: “Não pode
haver dúvida alguma de que a redução da vulnerabilidade aos riscos é
infinitamente preferível à luta contra o sofrimento humano e as consequências
econômicas das crises”.
Essa perspectiva tem sido pesquisada com foco na
redução dos custos e mensuração técnica e operacional da vulnerabilidade, mais
do que em questões de cidadania, qualidade de vida, segurança.
A tragédia em Mariana é social e ambiental, pessoas
e meio ambiente foram expostos a um risco absurdo. E no que se refere à
vulnerabilidade, que é a exposição ao risco, a suscetibilidade ao impacto,
Mariana, palco de um desastre, pode ser um grande alerta para outras situações.
Enquanto ainda se procuram os corpos, surge a
questão de quem paga por isso e como esse pagamento é feito.
Pela lei brasileira, a priori, as responsabilidades
desse crime socioecológico (que deve ser investigado) recaem sobre a Vale e a
BHP em razão do princípio do poluidor-pagador instituído pela Lei nº 6.983 de
1981: “É o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a
indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados
por sua atividade”.
Tal percepção atingiu os investidores dessas duas
grandes empresas e as ações da BHP despencaram 7% após a catástrofe. A BHP
escreveu em um e-mail ao Wall Street Journal afirmando que não tem nada a ver
com a catástrofe e que a Samarco é “inteiramente responsável” e lavou suas mãos
na lama.
A Vale também empurrou para a Samarco, igualmente
como se não tivesse nada a ver com isso, apenas “apoiando” a empresa,
disponibilizando recursos para “auxiliar a Samarco”. Um executivo da
Votorantim, ex-executivo da Vale, Tito Martins, disse ao Valor que depois de
Mariana, “tudo vai ficar mais difícil e mais caro de se fazer no País”.
Nessa visão, podem surgir alguns obstáculos a mais
para serem superados (ou destruídos), e um pouco de dinheiro a ser pago – que
depois pode vir a ser recuperado, por exemplo, com a redução de “custos” de
“direitos” trabalhistas.
Acontece que os danos socioecológicos poucas vezes
podem ser reduzidos a seu valor monetário. Quanto “Vale” um Rio Doce? Quanto
“Vale” as vidas do menino Thiago, da menina Emanuelly, de Valdemir, que deixou
esposa e três filhos, das inúmeras pessoas mortas? E quanto “Vale” as vidas
abruptamente transformadas, sem a possibilidade de alternativa em decorrência
da violência do desastre?
A catástrofe provocada pelas mineradoras Vale e BHP
vai gerar muitos conflitos socioecológicos, longos no tempo e no espaço, e como
coloca o economista ecológico Joan Martinez Alier: conflitos em torno dos
“valores”.
Essas empresas e o Estado – seja o governo de Minas
ou o federal, ou o Judiciário – vão tentar impor valores de dinheiro para
aquelas pessoas cujas perdas, de vidas ou de possibilidades de existência por
suas relações com o ambiente, são sentidas muito além do que o dinheiro pode
comprar.
E em torno dos valores monetários, o desastre
ambiental, para alguns, como o capital da grande mineração, é uma grande
oportunidade de acumular. Já para muitos, para os pobres, representam longos
anos de muito sofrimento e violência.
Na forma como são feitos hoje – e pelos novos
projetos do governo federal, a tendência é piorar –, os estudos de impacto
ambiental tentam reduzir tudo a algum valor que o dinheiro pode pagar. Isso
significa uma violência tremenda para os mais pobres de dinheiro, e uma
vantagem descomunal para o capital na Vale, na BHP, ou mesmo em Belo Monte…
Como essas empresas ricas têm mais dinheiro, podem
comprar mais barato a vida e o ambiente dos pobres, protegidas pela violência
colonial do Estado. Não há nenhuma outra solução possível para romper esse
ciclo, além da básica consulta direta: aqueles afetados devem ser ouvidos, e ao
serem consultados de forma informada, devem ter o direito de, livremente,
decidir sobre o futuro de suas vidas e sobre o projeto em si.
Ainda assim, essa consulta, elemento fundamental da
cidadania que não consta nos relatórios de impacto até agora, apenas poderia
garantir o direito de algumas pessoas, já que as futuras gerações e a natureza
só podem ser “consultadas”, em tese, por algum tipo de representação.
Mineração, agronegócio, barramentos de rios e
outros são projetos de “desenvolvimento” autoritário, chamados por autores
latino-americanos, como Maristela Svampa, Alberto Acosto, Eduardo Gudynas, de
“extrativismos” (ou “neoextrativismo” dentro do quadro populista): algo como
uma síndrome de extrair massivamente e mandar para longe e receber um pouco por
isso, que fica concentrado em poucas mãos.
Extraem massivamente recursos naturais para
exportação, deixando para trás um buraco e um rastro de saque, um ambiente
destruído junto de vidas humanas e não humanas.
Essa destruição é motivo para ganho e acumulação,
uma oportunidade para expansão e circulação do capital. É difícil imaginar que
a Vale ou a BHP vão pagar o que deveriam se os cálculos fossem realmente feitos
numa perspectiva ampla de diálogo com todos aqueles e aquelas que foram
atingidos e atingidas.
Se os custos não fossem externalizados, colocados
para fora, empurrados para os mais fracos ou para o ambiente comum, como o rio.
Ambiente comum, ou bem comum, dizem respeito a todos e todas, e não podem ser
cercados, privatizados, como tentam as mineradoras.
O ar, as comunidades, os rios, as florestas, são
comuns, e não podem se tornar propriedades cercadas pelas mineradoras para
transferir para o comum os custos dos desastres provocados por suas atividades.
Empresas de seguro, advogados, bancos, empresas de
serviços ambientais, há uma série de pessoas que planejam formas de ganhar
dinheiro sobre o desastre alheio que recai sobre o comum: “É o capitalismo,
estúpido!” E não só: é o capitalismo operando em seu tipo mais fundamental, o
extrativista, aquele da acumulação primitiva, da acumulação por despossessão,
por expropriação, por violência.
A tragédia, oportunidade de acumulação para alguns,
pode também ser uma oportunidade de união, de solidariedade, de resistência, de
aprendizado e de luta para muitos e muitas. O que a trajetória da mineração fez
com Minas Gerais ao longo dos últimos séculos é um desastre. E aqueles mesmos
que ganharam com isso hoje já miram novos espaços para ganharem mais, como o
Pará.
É para o Pará que a Vale está migrando e em breve
vai ganhar mais dinheiro na Amazônia do que em Minas. É para o Pará que migrou
a siderurgia de ferro-gusa que estava estabelecida em Minas Gerais, depois que
esburacou a terra e transformou em carvão a Mata Atlântica e o Cerrado – e nas
últimas décadas transformou também em carvão milhares de hectares da Amazônia,
além de ter exportado o sangue de milhares de trabalhadores e trabalhadoras escravizados
e escravizadas.
Quem sabe a próxima oportunidade de vampiros de
desastres ecológicos, que já sobrevoam Mariana, ganharem dinheiro, será em
Parauapebas, centro do projeto Carajás, da Vale. Recentemente, Haroldo Souza,
professor da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), fez uma
visita à Barragem Gelado, em Carajás.
Essa é uma das três barragens centrais do Complexo
Minerário de Carajás, que inclui também a barragem do Projeto Salobo, que
contém ainda mais contaminação, e a Barragem do Sossego, em Canaã dos Carajás,
próxima à nascente do Rio Parauapebas.
A água, como em Mariana, é lama, rejeitos de ferro
decorrente da lavagem do minério. Em Parauapebas vivem quase 200 mil pessoas
(189 mil pelo IBGE em 2015). Se a barragem do Gelado romper, como em Mariana,
será uma catástrofe. É difícil de imaginar, muito mais ainda de calcular.
Após o que aconteceu em Mariana, o risco de
catástrofe não pode ser minimizado. No caos dessas barragens de mineração que
atingem diferentes cidades no sudeste do Pará, todo o plano de controle é feito
por agências e órgãos municipais e estaduais sediados em Parauapebas
(Prefeitura, Bombeiros, Defesa Civil). A justificativa dessa localização é a
logística e o acesso à mina, e não necessariamente a prevenção de uma possível
catástrofe.
Acontece que Haroldo Souza, professor curioso,
pensou no pior, e perguntou para um engenheiro da Vale durante essa visita o
que aconteceria se a barragem rompesse. Teve uma resposta certeira: “Não vai
romper!” Souza insistiu: “Mas e se romper?” Ao que o engenheiro retrucou: “Mas
não vai romper, foi feita para não romper!” Ignorante do poder da engenharia,
mas imaginativo, o professor da Unifesspa insistiu: “Mesmo assim, se romper, o
que é que acontece?”
Sem nenhuma planilha na mão, o engenheiro da Vale
respondeu: “Não pensemos nisso, é melhor que não aconteça… seria algo muito
desastroso pra todos em Parauapebas”.
Para a Vale, a BHP, o governo federal, os deputados
financiados pelas grandes mineradoras que querem mudar o Código da Mineração,
tem coisas que é melhor não pensar – pois pensar demais pode atrapalhar os
lucros.
Para aqueles que pensam e que sofrem, como a
população de Mariana, como os munduruku, que vivem no Rio Tapajós e querem
evitar seu barramento, para os camponeses e camponesas que vivem no sudeste do
Pará e são atingidos pela Vale, não há como atribuir um valor de dinheiro para
o desastre. Esse valor monetário só é aceito mediante violência.
Como me disse Katia Tonkuré Jonpti, liderança do
povo Gavião Akrikatejê, também atingido pela grande mineração de ferro em
Carajás: “A Vale deixou conflito. A Vale trouxe o impacto de separação,
desunião e desigualdade. É um bicho papão. Um demolidor da natureza, máquina de
acabar com tudo”.
Fonte: Carta Capital
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