quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Migração atinge recorde histórico.
Migrantes do Chade que serão repatriados por avião partindo do aeroporto de Kufra, na Líbia. Foto: Rebecca Murray/IPS.

Por Alejo Carpentier, da IPS – 

Roma, Itália, 14/10/2015 – A quantidade de refugiados no mundo alcançou seu máximo histórico, por isso a migração se transformou em sinônimo de crise humanitária. Devido aos custos econômicos, políticos e morais que representa a migração em massa (em particular a experiência que se desenvolve este ano na Europa), é cada vez mais evidente a necessidade de contar com um conjunto universal de normas e princípios, bem como o desejo de que as pessoas possam se manter com segurança em suas casas.

Diversos políticos europeus insistem em afirmar que mais ajuda e investimento nos países de origem podem limitar o deslocamento de pessoas. Inclusive Matteo Salvini, um líder da oposição italiana contrário ao refúgio que é oferecido por seu próprio país, é um declarado crente da ideia de que o desenvolvimento evitaria que as pessoas continuem fugindo para a Europa.

Mas poucos entendem as dificuldades práticas que implica financiar esse desenvolvimento. Em primeiro lugar, cada vez mais quantias da ajuda oficial são destinadas às crises humanitárias, o que reduz os fundos disponíveis para o desenvolvimento sustentável. E, em segundo lugar, grande parte da ajuda prometida nunca se materializa, por várias razões.

O Nepal é um exemplo. Menos da metade da ajuda prometida para a reconstrução do país, após o terremoto que sofreu em abril, foi entregue, segundo funcionários da Organização das Nações Unidas (ONU). As controvérsias sobre o novo projeto de Constituição do Nepal tampouco animaram os doadores. A consequência é que o desastre pode ser expresso em uma catástrofe mais persistente do que deveria ser, que em última instância limitará as oportunidades econômicas e a segurança alimentar.

Outro exemplo é o Iêmen. A Arábia Saudita anunciou uma grande doação para as operações humanitárias em seu vizinho, apesar de estar envolvida no conflito militar que agravou o deslocamento e a pobreza no país. Por outro lado, em meio às histórias de horror sobre os maus tratos que recebem os refugiados na Europa, a Tunísia constrói um fosso ao longo de sua fronteira com a Líbia, o que demonstra seus próprios temores.

É evidente que as somas combinadas gastas na ajuda humanitária para os refugiados e para dissuadir a migração fazem com que o discurso sobre a necessidade de fomentar o crescimento nos países de origem seja um exercício de puro otimismo. Mas isso poderia mudar agora.

A comunidade mundial se reuniu no dia 12, na sede da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), em Roma, e votou a favor de aprovar o Marco de Ação para a Segurança Alimentar e Nutricional em Crises Prolongadas. O objetivo do acordo, negociado pelo Comitê para a Segurança Alimentar Mundial, é fechar a brecha disfuncional que separa cada vez mais os orçamentos destinados à ajuda humanitária e ao desenvolvimento.

Como os signatários são doadores e atores estatais e não estatais, o marco acordado deveria facilitar para os recursos transcenderem as barreiras políticas e burocráticas e chegarem onde são desesperadamente necessários.

No caso da Síria, onde mais da metade de seus 23 milhões de habitantes teve que se deslocar devido à guerra civil iniciada em março de 2011, a União Europeia demorou meses para chegar a um acordo destinado a aceitar menos de 5% dos refugiados que agora estão acampados no Líbano e na Turquia.

Muitos refugiados, que temem que as péssimas condições de vida nos países vizinhos se tornem permanentes e se desanimam em buscar proteção no Ocidente, de fato estão regressando à Síria, apesar dos perigos. Isso poderá chegar a ser um fracasso diplomático internacional, e muitos dos repatriados culpam a ONU por sua difícil situação. Porém, trata-se de uma questão prática, e é aí onde o novo marco pode ajudar.

A FAO, por sua vez, já começou a atuar como se o acordo estivesse vigorando. Neste verão boreal associou-se à Organização Internacional para as Migrações, a fim de ajudar 500 famílias produtoras agrícolas a retornarem à Síria. A ajuda consiste em sementes, ferramentas para a lavoura e granjas avícolas já instaladas, para ajudar as famílias e também evitar a deserção agrícola do país em guerra.

“O apoio aos meios de subsistência agrícolas pode contribuir para ajudar as pessoas a permanecerem em suas terras quando sentirem a segurança para fazê-lo e criar as condições para o retorno dos refugiados e dos migrantes”, pontuou o diretor-geral da FAO, José Graziano da Silva.

O marco foi idealizado para lidar com as crises prolongadas, em lugares onde a insegurança alimentar impera de forma quase permanente há pelo menos uma década. Atualmente existem 21 lugares nessa situação. Mas a maioria dessas crises ocorre nos Estados frágeis, nos quais o conflito armado é moeda corrente, seja como causa ou consequência.

Tal como as coisas estão, um terço dos habitantes do mundo que passa fome (fora da China e da Índia) vive em contextos de crises prolongadas. E, embora a agricultura gere um terço do produto interno bruto desses países, esta recebe menos de 4% dos fundos de assistência externa, segundo Luca Alinov, funcionário da FAO radicado no Quênia.

Dessa forma, o marco acordado em Roma prepara o caminho para que os recursos fluam para o setor agrícola – onde o rendimento em termos de segurança é mais alto – precisamente onde mais são necessários. Já é hora de acabar com a distinção cada vez mais arcaica entre a assistência humanitária e a ajuda para o desenvolvimento e, com ela, com a separação dos canais oficiais que repartem os recursos.

“O desenvolvimento rural e a segurança alimentar são fundamentais para a resposta mundial à crise dos refugiados”, afirmou Graziano. Sem dúvida, a forma de realizá-lo pode variar na prática, mas a gênese do marco, que é fruto do diálogo entre múltiplos interessados, provavelmente ampliará as possibilidades.

Uma vez mais a FAO já está se preparando, como reflete sua associação com a empresa MasterCard para oferecer às pessoas nos campos de refugiados do Quênia cartões de crédito pré-pagos que lhes permitam comprar produtos locais, um modelo que se presta à adaptação a diferentes circunstâncias.

Os programas de proteção social apoiados pelo Estado são ideais, como o programa Rede de Segurança Produtiva, que ajudou a Etiópia a se converter no único país com uma crise prolongada a alcançar um dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), o de reduzir pela metade a porcentagem da população que sofria fome. Mas, para prosperar, necessitam estabilidade institucional e política, que nem sempre existem.

Aliás, talvez seja onde o novo marco seria mais inovador, segundo Daniel Maxwell, da Universidade de Tufts, nos Estados Unidos. Em concordância os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), sugere transcender a dependência do Estado como via aprovada para a intervenção e aponta para o consenso de que o fortalecimento dos meios de vida é a prioridade, destacou.


Fonte: ENVOLVERDE

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