segunda-feira, 3 de novembro de 2014

O desafio de prover mobilidade urbana à pessoa com debilidade física, artigo de Tatiana Piccardi.
Veículo do serviço Atende. Foto: Prefeitura de São Paulo.

A relação entre doença e deficiência é problemática. As distinções propostas não são óbvias: trata-se mais de distinções socialmente (e discursivamente) construídas e menos de distinções “naturais”. Muitas pessoas adquirem deficiência devido à doença, assim como outras tantas adquirem problemas de saúde crônicos em função de uma debilidade.

Para definir se uma doença é crônica, é preciso levar em consideração o paciente em si. De modo geral, uma doença é considerada crônica quando exige tratamento médico prolongado ou quando o paciente está sujeito a recaídas por não haver expectativa de cura. Como as respostas às questões: “minha doença é temporária?” e “quanto tempo vai durar?” não são facilmente oferecidas pela medicina, surgem problemas de identidade tanto no paciente (que se pergunta: “sou deficiente ou apenas doente por um tempo?”) como nas pessoas que o cercam. Mais importante, talvez, do que encontrar a “cura” para doenças crônicas seja criar as condições para que dificuldades provocadas pela deficiência possam ser amenizadas.

Para alguns estudiosos do assunto, a deficiência não deve ser entendida como uma tragédia pessoal, mas como um ato de discriminação permanente contra um grupo de pessoas com “expressões corporais” diversas. Ao ser abordada como uma questão social e política, a deficiência sofre um processo de desconstrução simbólica e, progressivamente, passa a incluir grupos não tradicionalmente entendidos como deficientes, tais como: sequelados em geral, independentemente do tipo de doença e origem da lesão; doentes crônicos; vítimas de abusos físicos com sequelas corporais; idosos; enlutados; etc.

No Brasil, a luta política pela inclusão do deficiente e demais grupos de pessoas que apresentam debilidade física ainda é incipiente. Na cidade de São Paulo, megalópole com 12 milhões de habitantes e considerada a décima quarta cidade mais globalizada do planeta, os avanços são lentos e pontuais.

Após a criação da Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida (SMPED), em abril de 2005, alguns projetos importantes foram transformados em leis municipais, que resultaram em programas em prol da inclusão do deficiente: a Lei 14.441/2007, que criou a Central de Intérpretes de Libras (Língua de Sinais Brasileira) e Intérpretes para Surdocegos; a Lei 14.671/2008, que formaliza o Programa Municipal de Reabilitação da Pessoa com Deficiência Física e Auditiva, determinando a implantação de novos serviços de reabilitação nas 31 subprefeituras da capital; a Lei 14.675/2008, que estabelece o Plano Emergencial de Calçadas (PEC), que permite que a Prefeitura reforme e revitalize as calçadas em vias estratégicas onde estão localizados os diversos equipamentos públicos e privados essenciais à população – correios, escolas, hospitais, etc.; e a Lei 15.096/2010, que cria o Programa Censo Inclusão, que prevê um levantamento detalhado com perfil socioeconômico dos cerca de 1,5 milhão de pessoas com deficiência na capital paulistana. A legislação é indispensável e deve se aprimorar.

O gerenciamento da diferença em prol da inclusão e da solidariedade, em especial na gestão das políticas públicas que afetam diretamente a vida cotidiana do cidadão portador de debilidades e daqueles que o assistem, é ação delicada. É preciso compreender como é constituída essa diversidade e o que nela há de comum, para evitar que o diferente seja tratado como igual em situações em que tratar como igual apenas promove a exclusão.

O trabalho desenvolvido pela AHPAS em prol de crianças e adolescentes com câncer, doença que se tornou crônica no Brasil em função das sequelas deixadas e da necessidade de cuidados constantes por alguns anos depois da alta, calca-se no entendimento de que a fragilidade permeia o paciente e os familiares em todo o período do tratamento, tanto física, como psicológica e economicamente. Tal fragilidade se expressa no corpo, tanto pelas sequelas deixadas pela doença e pelo tratamento (muitas definitivas, como a amputação), como pelo abatimento psicológico provocado pela carência de recursos materiais e humanos que promovem a autoestima e a segurança para o necessário enfrentamento da doença. Observa-se que as políticas públicas para pacientes com câncer recobrem algumas necessidades econômicas pontuais durante o tratamento (como a oferta de algumas isenções de impostos e parcos auxílios financeiros aos mais pobres), mas não dão conta de recobrir suas necessidades físicas e psicológicas, apesar dos esforços para se promover a integralidade do tratamento ao paciente oncológico.

É preciso garantir a integralidade do tratamento ao paciente oncológico para se garantir a cura. Ou seja, é fundamental oferecer a esse paciente não apenas o melhor atendimento médico e hospitalar, mas também condições para que tais atendimentos ocorram em tempo, de forma regular e até o seu término. Incluem-se aí diagnóstico precoce; alimentação, vestuário e habitação adequados; presença de um cuidador responsável e disponível; possibilidade de o paciente permanecer em sua residência durante o tratamento; educação à distância (em caso de pacientes em idade escolar); casas de apoio para pacientes de outras localidades; medicação acessível; transporte adequado; legislação que garanta ao cidadão doente e seus familiares as bases para pleitear pela efetivação de tais condições, entre outras.

O quesito transporte é um dos mais desafiadores, até porque sua relevância só fica clara para quem está doente, adquiriu sequelas que impedem a mobilidade e enfrenta o transporte público diariamente para receber o tratamento. Em uma cidade como São Paulo, onde o transporte é difícil, caro, e inadequado para pessoas com dificuldades físicas, agir para essa melhoria exige visão multidisciplinar e forte consciência do caráter determinante que a questão suscita no contexto global da saúde pública e dos direitos de acesso a ela. A garantia de transporte representa apoio sociofamiliar indispensável e se alinha a uma nova concepção de promoção de saúde pública, que não a limita aos cuidados clínicos indispensáveis. E é isto justamente o que o conceito de integralidade engloba.

Para que se entenda a complexidade de viabilização do quesito transporte, é bom lembrar que os hospitais da rede de oncologia pediátrica de nossa cidade, que atendem pelo SUS, são procurados por pacientes de todo o Brasil. Tais pacientes se juntam aos pacientes localizados na própria cidade, em tratamento nos mesmos hospitais. Com o avanço das pesquisas médicas e o aumento das possibilidades de um diagnóstico precoce nas diferentes regiões do país, a tendência atual é a de que aumentem os casos de pessoas em tratamento de câncer na cidade, vindo a tornar-se cada vez mais relevante a necessidade do transporte. Para se ter uma ideia da dimensão do problema, no que se refere especificamente a crianças e adolescentes (público atendido pela AHPAS), assistentes sociais consultadas informam que há uma demanda mínima crescente na cidade de 500 crianças e adolescentes com câncer necessitando de transporte especializado diário.

Tratar uma criança com câncer na cidade de São Paulo hoje significa, portanto, lidar simultaneamente com a complexidade da doença e com a estrutura de transporte precária da cidade, em especial para pessoas debilitadas, com mobilidade reduzida e baixa renda familiar.

* Tatiana Piccardi é cofundadora e atual presidente da AHPAS – Associação Helena Piccardi de Andrade Silva.


Fonte: EcoDebate

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