Câmara pode votar projeto sobre
recursos genéticos sem consulta a povos indígenas e tradicionais.
por
Oswaldo Braga de Souza, do ISA
Alceu Moreira é um dos ruralistas mais ativos na
Câmara.
Segundo especialistas e movimento social, proposta
viola convenções internacionais. Possível relator é ruralista e já defendeu que
produtores rurais expulsem indígenas de áreas com segurança armada..
O plenário da Câmara dos Deputados pode votar, a
qualquer momento, um projeto de lei (PL) que pretende regular o acesso aos
recursos genéticos da biodiversidade e da agrobiodiversidade e aos
conhecimentos sobre eles desenvolvidos por pequenos agricultores, povos
indígenas e tradicionais, sem consulta a essas populações, conforme prevê a
legislação.
Nesta terça (4/11), o destino do PL 7.735/2014
deverá ser discutido em uma reunião de líderes na Câmara. O projeto tramita em
regime de urgência e tranca a pauta do plenário.
A bancada do agronegócio articula para que o
relator da proposta seja o deputado ruralista, e notório inimigo das causas
indígenas, Alceu Moreira (PMDB-RS). A possível designação do parlamentar é uma
forma de pressionar o Planalto.
Em novembro, Moreira fez um discurso em que
estimula produtores rurais a usar segurança armada para expulsar índios do que
consideram ser suas terras. O deputado foi alvo de uma queixa-crime no Supremo
Tribunal Federal (STF) e uma representação na Procuradoria-Geral da República
por causa disso.
O PL pretende substituir a Medida Provisória (MP)
2.186-16/2001 sob a justificativa de desburocratizar o desenvolvimento de
pesquisas e produtos baseados nos recursos genéticos e conhecimentos
tradicionais. A reivindicação vem principalmente de pesquisadores, da indústria
e das organizações de grandes produtores rurais. A proposta, no entanto,
restringe os direitos de pequenos agricultores, comunidades indígenas e demais
povos tradicionais.
Os recursos genéticos da biodiversidade são
encontrados em animais, vegetais ou micro-organismos, por exemplo, em óleos,
resinas e tecidos, encontrados em florestas e outros ambientes naturais. No
caso da agrobidiversidade, falamos também de recursos genéticos, mas
relacionados a espécies agrícolas e pastoris. Comunidades de indígenas,
quilombolas, ribeirinhos e agricultores familiares, entre outros, desenvolvem e
conservam, por décadas e até séculos, informações e práticas sobre o uso desses
recursos.
Tanto o patrimônio genético quanto esses
conhecimentos servem de base para pesquisas e produtos da indústria de
remédios, sementes, gêneros alimentícios, cosméticos e produtos de higiene,
entre outros. Por isso, podem valer milhões em investimentos. O Brasil é a
nação com maior biodiversidade do mundo e milhares de comunidades tradicionais,
por isso é alvo histórico de ações ilegais de biopirataria. O tema, portanto, é
estratégico para o País.
Substitutivo
O substitutivo incorpora outra proposta, que
tratava exclusivamente de recursos genéticos da agrobiodiversidade, discutido a
portas fechadas dentro do Ministério da Agricultura (Mapa) apenas com
parlamentares ruralistas e entidades do setor agropecuário (saiba mais).
O presidente da rede Grupo de Trabalho Amazônico
(GTA), Rubens Gomes, avalia que o novo projeto traz alguns avanços em relação
ao apresentado pelo Planalto, em junho, mas que ainda tem problemas, com uma
lógica de liberação indiscriminada do acesso aos conhecimentos tradicionais.
Ele também critica a escolha do relator e a ausência de oitivas às populações
interessadas.
“O governo já cometeu todos os erros de não fazer
uma consulta livre, prévia e informada, e repete o erro”, alerta. “Alceu
Moreira não tem perfil para essa relatoria, para melhorar essa proposta,
considerando a importância do PL. Isso é um perigo para o País”, afirma.
O primeiro projeto do governo incluía apenas o tema
da biodiversidade, por causa das divergências entre Ministério do Meio Ambiente
(MMA) e Mapa, e também foi feito sem consulta “formal” e “sistemática” às
populações tradicionais, como reconhece a diretora do Departamento de
Patrimônio Genético (DPG) do MMA, Eliana Maria Gouveia Fontes.
“Acabou que nós desrespeitamos esse direito [à consulta]”, admite. “Foi um erro
não termos feito. Foi um erro do governo como um todo”, afirma. “Nossa intenção
não foi atropelar”, justifica. O próprio texto do substitutivo informa que, em
sua elaboração, foram consultadas organizações do agronegócio, da indústria e
academia, mas não há menção à sociedade civil e movimentos sociais.
A Convenção 169 da Organização Internacional do
Trabalho (OIT), referendada pelo País, determina que qualquer projeto de lei,
medida ou empreendimento que afete essas populações sejam precedidos por uma
consulta a elas sobre o assunto.
Gomes avalia que o governo “tratorou” o diálogo com
os representantes das populações indígenas e tradicionais por causa da pressão
do lobby das grandes indústrias e que os outros ministérios envolvidos no
assunto, como do Desenvolvimento, Indústria e Comércio; Agricultura; e Ciência
e Tecnologia atuam em defesa desse lobby.
Gomes considera que é necessário, agora, num cenário de “reparação de danos”, tentar obter do governo compromissos mínimos com pontos que reduzam as ameaças aos direitos das comunidades. “Há possibilidades de recuperar um escopo mais voltado aos benefícios para a nação”, acredita.
A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
(SBPC) e os representantes dos movimentos sociais e organizações da sociedade
civil na Comissão Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), entre
eles o GTA, enviaram cartas ao governo cobrando a retirada do regime de
urgência e uma discussão aprofundada sobre a proposta com todos os segmentos
interessados.
Direitos violados
A Convenção da Diversidade Biológica (CDB), também
referendada pelo Brasil, garante que cientistas e empresas que queiram ter
acesso aos conhecimentos de comunidades tradicionais devem consultá-las de
forma prévia, livre e informada e repartir com elas os benefícios de suas
pesquisas e produtos. São principalmente esses direitos que estão sendo
violados pelo PL, segundo ambientalistas e líderes de comunidades.
“O PL implica uma série de violações aos direitos
de povos e comunidades tradicionais já garantidos no direito brasileiro, como,
por exemplo, em relação à repartição de benefícios prevista pela CDB, já
incorporada na legislação”, analisa Maurício Guetta, advogado do ISA.
Guetta adverte que o substitutivo traz várias
isenções de repartição de benefícios para certos produtos e pequenas empresas,
por exemplo. Apenas produtos que estiverem em uma lista a ser elaborada pelos
ministérios envolvidos no assunto serão alvo de repartição.
Santilli também critica a proposta incluída no
projeto de permitir que o consentimento das comunidades seja substituído por um
parecer de um órgão público, como a Fundação Nacional do Índio (Funai). “Um
parecer de um órgão público não pode suprir o consentimento prévio da
comunidade. O consentimento é da comunidade. Isso aqui acho até que seria
inconstitucional”, argumenta.
Fonte: Instituto Socioambiental
Nenhum comentário:
Postar um comentário