domingo, 2 de novembro de 2014

ONGs pedem cancelamento de licenciamento do Porto Sul na Bahia.
por Redação da SOS Mata Atlântica
Em documento público, chamado “Carta de Ilhéus sobre o Porto Sul”, organizações e cidadãos denunciam os rumos que o país pode tomar com o enfraquecimento das instituições públicas e do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) nas análises de projetos de licenciamento ambiental de grande impacto e solicitam das autoridades o imediato cancelamento do projeto do Porto Sul, na Bahia.

O polêmico projeto é parte do Projeto Pedra de Ferro, empreendimento mineral da Bahia Mineração, uma empresa da Eurasian Natural Resources Company, sediada no Cazaquistão e com atuação na África Ocidental, na República do Congo. O empreendimento privado pretende implantar na Ponta da Tulha, em Ilhéus, um porto vinculado a um mineroduto e a uma jazida mineral localizada no sertão baiano, na cidade de Caetité.

A Fundação SOS Mata Atlântica apoia as organizações civis e as comunidades da região na luta contra a implantação desse projeto na forma como foi concebido e tem sido avaliado. Segundo Mario Mantovani, diretor de políticas públicas da SOS Mata Atlântica, o estudo de impacto ambiental elaborado para o processo de licenciamento do Porto Sul deveria ser precedido de uma avaliação estratégica mais ampla por parte do Poder Público. O estudo atual é insuficiente e frágil para mensuração dos impactos cumulativos das diversas atividades que envolvem a implantação desse porto privado sobre os diferentes ecossistemas – mangues, restinga, Mata Atlântica, corredor ecológico e ambientes marinhos – além das consequências da sua localização no meio da Costa do Cacau.

“Ficamos indignados com a postura tímida e reativa do Ibama, que não deu atenção aos alertas e os anseios da sociedade. O órgão desconsiderou as fragilidades do projeto e dos estudos elaborados pelo empreendedor, no sentido de garantir proteção aos patrimônios naturais do país, além do fato de as instituições governamentais se posicionarem ao lado do empreendedor privado, em detrimento da parte mais frágil, a sociedade e a natureza”.

Apesar das críticas e dos questionamentos técnicos que têm sido levantados pela sociedade e comunidade científica desde 2008, o projeto recebeu aprovação parcial do Ibama e é objeto de ações civis públicas. “Milhões de pessoas que acompanham o processo de licenciamento ambiental desse projeto no Sul da Bahia e no Brasil estão estarrecidos com os rumos que o país pode tomar com este modelo de gestão, que despreza a natureza biodiversa e as políticas públicas do próprio Estado Brasileiro”, escrevem as organizações.

Conheça a íntegra da Carta de Ilhéus e exija posicionamento do Governo Brasileiro:

Carta de Ilhéus sobre o Porto Sul

Estamos em Ilhéus, Sul da Bahia. Desde 2008 acompanhamos o processo de licenciamento ambiental de um desastroso projeto denominado Porto Sul, que mesmo sob intensas críticas, obteve aprovação parcial do IBAMA, dias antes da eleição do primeiro turno.

No dia 16 de outubro de 2014, um conjunto de organizações da sociedade civil, abaixo citadas, acompanhou mais um evento do Porto Sul: por seis horas assistimos audiências realizadas no Auditório da Justiça Federal com a tentativa do Juiz Lincoln Pinheiro Costa de conciliar duas ações civis públicas movidas pelo Ministério Público Federal e Ministério Público da Bahia, que questionam o processo de licenciamento do Porto Sul.

O Porto Sul é parte do Projeto Pedra de Ferro, empreendimento mineral da Bahia Mineração, uma empresa da Eurasian Natural Resources Company, sediada no Cazaquistão e com atuação fraudulenta na África Ocidental, na República do Congo, conforme investigação feita pela Bolsa de Londres em 2012 e 2013. Este projeto, concebido superficialmente em 2007 no âmbito privado, indicou a Ponta da Tulha, em Ilhéus, um ponto da costa baiana para abrigar um porto vinculado a um minerioduto e a uma jazida mineral no sertão baiano da cidade de Caetité, sem medir as consequências de uma locação no meio da Costa do Cacau e de um corredor ecológico concebido pelo Ministério do Meio Ambiente, sociedade civil e pela academia. A empresa, com isso, forçou a uma mudança de estratégia do Estado brasileiro, influenciando o traçado de uma nova ferrovia – Oeste Leste, e a localização de um ambiente portuário em local de alta sensibilidade ecológica – mesmo sem as garantias de viabilidade ambiental do empreendimento.

Os questionamentos feitos pelo Ministério Público com o apoio de especialistas da Universidade Estadual de Santa Cruz foram insuficientemente respondidos pelos consultores do empreendimento e pelo órgão licenciador, durante a audiência com o juiz federal. Para a sociedade civil, ficou evidente o fraco empenho e a conivência do IBAMA ao analisar os gravíssimos impactos sociais e ambientais sobre o território do Corredor Ecológico Esperança Conduru, programa idealizado em 1993 pelo Ministério do Meio Ambiente no âmbito do Programa Piloto de Florestas Tropicais (PPG-7) com recursos do Banco Mundial e do Estado Brasileiro, alinhado à Convenção Internacional da Biodiversidade e ás Metas de Aichi, recentemente aprovadas,em que o país é signatário.

Esta região da Mata Atlântica é reconhecida pela comunidade científica internacional como uma das áreas mais importantes para a conservação da biodiversidade do planeta, especialmente porque contém expressivos e contínuos remanescentes florestais, agroflorestas de cacau, restingas, áreas úmidas, manguezais e recifes de coral. A região que pode ser mais afetada está na Área de Proteção Ambiental da Lagoa Encantada e situa-se entre duas outras Unidades de Conservação – o Parque do Conduru e o Parque da Boa Esperança.

Os especialistas convocados pelos MPs alertam que o Corredor Ecológico situado nesta área foi concebido na zona mais biodiversa do Corredor Central da Mata Atlântica e por isso será severa e irreversivelmente impactado pelo projeto do Porto Sul. A área contém habitat de muitas espécies endêmicas ameaçadas de extinção como o mico leão da cara dourada, a preguiça de coleira, o macaco prego de peito amarelo, o mutum do sudeste (recentemente descoberto na região de Serra Grande) e a harpia, maior águia das Américas. O grau de degradação que o Porto Sul pode gerar ainda é desconhecido, especialmente porque o porto e a ferrovia poderão desencadear outros projetos, como mineriodutos, zonas industriais e expansão urbana.

Além da fauna e flora terrestre, o ambiente marinho inclui baleias jubarte, orcas e tubarão baleia, tartarugas, mero canapu e recifes de corais na costa proposta para o porto. A zona marinha sob risco, alem de sua importância para a conservação da biodiversidade e dos demais serviços ecossistêmicos por ela prestados, é o mais importante pesqueiro da costa sul baiana, e sustenta milhares de pescadores de Ilhéus, Uruçuca e Itacaré.

Extensas áreas do sistema agroflorestal de cacau, conhecido como cabruca, e plantios de roçados familiares serão afetados, prejudicando milhares de famílias de trabalhadores rurais desta região de Ilhéus. Desde 2012, porém, o chocolate desponta como a mais importante esperança para o Sul da Bahia, junto com o turismo. A valorização do cacau no mercado mundial de alimentos sinaliza pela retomada da economia regional, que pode absorver novamente 200 mil novos empregos, como foi no período áureo do cacau, em 1978, só que com uma nova cadeia de valor, a produção de chocolate com cacau fino, em desenvolvimento na região desde 2003.

Na área costeira, a estrada Ilhéus Itacaré, financiada pelo Programa de Desenvolvimento do Turismo – PRODETUR com recursos de agências multilaterais e idealizada para superar a crise do cacau e a estagnação econômica nos anos noventa e com isso promover o ecoturismo regional, já sofre as consequências do projeto do porto antes do mesmo ser construído, afetando uma economia que mobiliza 500 mil turistas por ano na Costa do Cacau e movimenta mais de 10 mil empregos diretos.

O Estudo de Impacto Ambiental do Porto Sul foi feito pela empresa Hydros, com uma análise fragmentada dos impactos, que acabou sub-dimensionando os reais impactos do empreendimento e induziu a sociedade a omitir ou desconsiderar aspectos chaves da relevância ecológica e dos riscos para a sociedade regional.

Os questionamentos a este projeto começou ainda em 2008, em uma tentativa de diálogo com o Governo da Bahia, o maior promotor deste projeto, junto com a BAMIN/ENRC. Uma intensa mobilização da sociedade civil resultou na primeira reprovação do IBAMA em novembro de 2010, de uma área contínua ao projeto atual, reconhecendo Ponta da Tulha como uma área de altíssima importância para a conservação. Vale registrar que foram as informações independentes da academia e da sociedade civil que alertaram ao IBAMA de que a primeira área aprovada para o porto fosse revista, demonstrando a presença dos remanescentes de floresta e corais naquela área, fato antes negado pelos empreendedores e os seus consultores.

O IBAMA, depois disso, sugeriu Aritaguá, uma localidade ao lado da Ponta da Tulha, que reúne ao mesmo tempo florestas, manguezais, comunidades rurais e ribeirinhas, plantios de cacau e muitas nascentes e riachos. Mesmo com tantas evidências e confirmações da comunidade acadêmica e sociedade civil brasileira de que este local também seria desastroso, o IBAMA não conseguiu resistir à pressão política e concedeu a Licença Ambiental Prévia, sugerindo mais de trinta condições, que mesmo não cumpridas efetivamente, dão ao empreendedor as condições realizar o projeto neste local. Assim como no Projeto de Belo Monte, na Amazônia, o IBAMA se ateve a questões burocráticas e processuais, validando os interesses e distorções dos estudos do empreendedor, mesmo que eivado de contradições e descumprimentos.

A visão atual dos empreendedores e dos governos baiano e federal é de se evitar uma pretensa insegurança jurídica do projeto, diante das Ações Civis Públicas provocadas pelo Ministério Público, mas esquecem que a maior insegurança se incide sobre as mais de dez comunidades atingidas diretamente pelo projeto – como o Assentamento de Reforma Agrária Bom Gosto e comunidades históricas como Castelo Novo , Aritaguá e Juerana, nas margens do Rio Almada, berço da colonização brasileira desde o século XVI. A insegurança também recai sobre os ecossistemas preciosos para a biodiversidade da Mata Atlântica e do litoral baiano, provedores de alimentos, paisagem para o turismo, pesca e água para os municípios de Ilhéus e Itabuna, as duas cidades mais importantes do litoral Sul Baiano, que juntas reúnem 500 mil pessoas.

Preocupante é que o juiz de Ilhéus tornou sem efeito, à revelia da lei, Cláusula de um título executivo judicial (um Termo de Ajustamento de Conduta – TAC homologado) formado entre as partes, a qual, apenas lembrando uma regra do licenciamento ambiental, vedava ao Ibama a concessão da Licença de Implantação somente depois do cumprimento de todas as condicionantes da Licença Prévia então vigente. E foi a partir dessa decisão que o Ibama, no mesmo dia, emitiu a licença sem o atendimento de condicionantes apontados pelo próprio órgão, cujo descumprimento foi apontado em Parecer Técnico do próprio Ibama datado também do mesmo dia da referida decisão judicial e da emissão da L.I. Na audiência, a exigência da Lei da Mata Atlântica, que veda que a intervenção, independentemente de compensações, comprometa a função ecológica do Corredor, foi desconsiderada pelos consultores do Governo da Bahia e da Bahia Mineração.

As organizações e pessoas que assinam esta carta solicitam das autoridades e da sociedade brasileira o imediato cancelamento deste projeto e a revisão conceitual do mesmo, inclusive pelas mudanças que ocorrem no mercado internacional de commodities minerais, que afetam diretamente esta empresa do Cazaquistão em solo brasileiro, com a queda do preço do ferro desde 2010, e que podem inviabilizar esta logística em médio prazo.

Como testemunhas destes acontecimentos, assinamos esta carta no dia 20 de outubro de 2014:

Mário Mantovani, da Fundação SOS Mata Atlântica;

Suzana Pádua, do Instituto de Pesquisas Ecológicas;

Clayton Lino, do Conselho Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica;

Guilherme Dutra, da Conservação Internacional do Brasil;

Renato Cunha e Ana Cláudia Fan​di, do Grupo Ambientalista da Bahia;

Peter Herman May, Sociedade Brasileira de Economia Ecológica e Universidade Federal do Rio de Janeiro;

Rui Barbosa da Rocha, do Instituto Floresta Viva e da Universidade Estadual de Santa Cruz;

Amilcar Baiardi, da Universidade Federal da Bahia;

Marcel do Santos Silva, da Associação dos Moradores da Beira Rio da Represa de Serra Grande;

Maria do Socorro Mendonça, do Instituto Nossa Ilhéus;

Ismail Abede, da Associação dos Moradores da Vila Juerana;

e representantes do Assentamento Bom Gosto, em Ilhéus.


Nenhum comentário:

Postar um comentário