Clima: um fim à divisão entre pobres e ricos.
Manifesto durante a COP20
Noção de que só países desenvolvidos devem ter
obrigações de corte de gases-estufa é insustentável; Brasil propôs solução
para o impasse, mas precisa dar o exemplo –
Por Alfreo Sirkis, do OC –
Na sua ação nas negociações internacionais de
clima, o Brasil oscila entre duas esferas que por vezes ficam justapostas, mas
são distintas: os embates geopolíticos e a política climática propriamente
dita. Desde a Convenção do Clima, de 1992, passando pelo Protocolo de Kyoto, de
1997, até hoje o Brasil sustenta com ênfase o princípio das “responsabilidades
comuns, porém diferenciadas”, cuja sigla em inglês é CBDR. Trata-se de um
princípio que fazia um certo sentido nos anos 1990, quando a emissão das nações
industrializadas (EUA, Europa e Japão, sobretudo) era de 17,5 bilhões de
toneladas de CO2 por ano e dos países em desenvolvimento, de 15,4 bilhões de
toneladas. Em 2010, esse quadro já era completamente diferente: 16,2 bilhões de
toneladas para os ricos e 28 bilhões de toneladas para os países em
desenvolvimento. Projeções para 2030 indicam que os países do sul poderão
chegar a 50,9 bilhões de toneladas, e os desenvolvidos, a 15 bilhões. Ainda que
esta última projeção não venha a se verificar, uma coisa fica clara: a decisão
de Kyoto de que apenas os países industrializados teriam a obrigação de cortar
suas emissões é anacrônica e insustentável.
Os argumentos girando em torno de
“responsabilidades históricas e emissões per capita”, ilustrações do mencionado
princípio, têm sua razão de ser, mas não alteram o fato do qual não há
escapatória: o que será decisivo para que haja uma chance de chegar ao
objetivo, acordado por todos os países, de evitar um aquecimento global maior
do que 2o C neste século, será a redução drástica das emissões no agregado, no
futuro. Isso significa que não cabe mais a referencia a “responsabilidades
diferenciadas”? Cabe, sim, mas de forma também diferenciada: as CBDR não se
aplicam mais à mitigação das emissões de gases de efeito estufa – todos teremos
que reduzir emissões –, mas podem e devem se aplicar a financiamento e
transferência das tecnologias que propiciam a transição para economias de baixo
carbono.
Não se trata de imaginar, de uma forma simplista,
que os EUA, a Europa e o Japão irão simplesmente “pagar a conta” da mitigação e
da adaptação do resto do planeta às mudanças climáticas. Suas disponibilidades
financeiras atuais são limitadas – bem menores que as da China, por exemplo – e
seus governos simplesmente não conseguiram fazer passar isso internamente. A Convenção
do Clima das Nações Unidas demanda o consenso, por isso não é realista e
representa uma perda de tempo e uma mera “marcação de posição” geopolítica o
CBDR expresso na cobrança das “responsabilidades históricas” (GEE acumulados na
atmosfera desde o início da era industrial) ou naquele velho sambinha “ei, você
aí, me dá um dinheiro aí”. O Brasil se enredou nisso na COP-19, em Varsóvia,
quando fez da questão das “responsabilidades históricas” um cavalo de batalha.
Mas, como veremos adiante, há maneiras mais realistas e efetivas acordar as
obrigações diferenciadas dos países desenvolvidos.
Outro aspecto do mesmo problema é esse diálogo de
surdos em torno do Fundo Verde do Clima. É um segredo de polichinelo que
trata-se de um instrumento inadequado para mitigação e que sua governança não é
apropriada para adaptação. O FVC deveria chegar a 2020 com US$ 100 bilhões e, a
partir daí, dispor de uma quantia equivalente a isso todo ano. Metade seria
destinada à mitigação e metade à adaptação. Ocorre que para a mitigação, apenas
na área de energia, é preciso um investimento anual de 1 trilhão de dólares. Na
melhor das hipóteses do FVC teria 5% disso mas no verdade ninguém acredita que
isso aconteça. O FVG poderia eventualmente servir com maior eficácia à
adaptação mas seu sistema de governança baseado nos governos nacionais e na
burocracia da ONU, sem uma participação bem definida de governos locais –os que
de fato implementam a adaptação– está mergulhado num impasse e dificilmente
chegará perto dos montantes assinalados.
Nesse particular a posição do Brasil
em relação à participação dos governos locais deixa a desejar, muito embora
também não tenha sido apresentada, até agora, uma proposta consistente de como
se daria essa governança com governos locais. Mas o princípio é fundamental.
As duas boas propostas de Lima
O Brasil fez, na COP-20, em Lima, duas propostas
que abrem caminho, indiretamente para uma atualização e uma releitura das CBDR.
A proposta dita dos “círculos concêntricos” é um passo no sentido de os países
emergentes que estão entre os grandes emissores (China, Índia, Brasil,
Indonésia) assumirem suas responsabilidade na mitigação. Sua seriedade depende
de o Brasil se dispor a migrar para o “círculo central”, o dos países que têm
metas de redução no agregado.
A segunda proposta brasileira é a que propõe o
reconhecimento da do valor social e econômico da redução de carbono, o primeiro
passo para a chamada “precificação positiva” que, ao lado da “precificação
real” – a taxação de carbono –, abre caminho para criar um pano de fundo
econômico favorável à transição para economias de baixo carbono. Tratarei dessa
questão na próxima semana.
Voltemos agora às CBDR, examinando uma das maneiras
de fazê-las funcionar que seja passível de ser “combinada com os russos” (no
caso, americanos, europeus e japoneses).
A “obrigação diferenciada” dos países
desenvolvidos, para além das mitigação de suas próprias emissões, poderia ser
uma participação maior no oferecimento de uma parcela garantidora de um fundo a
ser criado que dê lastro à “precificação positiva” e permita a criação de um
“banco de genéricos tecnológicos” com a compra de patentes de tecnologias
limpas que seriam disponibilizadas países em desenvolvimento.
Essa parcela garantidora, que permitiria mobilizar
em torno de si recursos do sistema financeiro internacional privado – inclusive
criando novos produtos financeiros – poderia ser constituída por um critério de
média ponderada: 50% na proporção das “emissões cumulativas” (forma
politicamente mais habilidosa para denominar as tais “responsabilidades
históricas”), 25% na proporção das emissões per capita e 25% na projeção de
emissões futuras num período a ser determinado. Isso faria com que os países
desenvolvidos arcassem com a maior parte, mas sem obrigação de um desembolso
imediato vulnerável ao seu contexto político interno. Nenhum governo irá
contrariar sua opinião pública interna desembolsando diretamente grandes
quantias para outros governos, mas pode oferecer uma garantia a um fundo que
possa atrair parte da imensa liquidez disponível no sistema financeiro
internacional.
O Brasil deve assumir a vanguarda do processo
mediante propostas audaciosas como a dos “círculos concêntricos”, do
reconhecimento do valor social e econômico da redução de carbono e da criação
de novos mecanismos econômicos de “precificação positiva” e de taxação do
carbono –essa necessariamente praticada a nível nacional, como são dos sistemas
tributários. Ao mesmo tempo, precisa ter a audácia de também mostrar uma
liderança mediante exemplo. Para tanto precisa adotar uma estratégia de longo,
médio e curto prazo coerente.
* Alfredo Sirkis é escritor, jornalista e
diretor-executivo do Centro Brasil no Clima.
Fonte: Observatório do Clima
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