“Amigas legais” contra a violência machista na Índia.
A família de Phulkali Bai a torturou por unir-se à
organização de mulheres Narmada Mahila Sangh (NMS), no centro da Índia, mas ela
não se deixou intimidar. Foto: Stella Paul/IPS.
Por Stella Paul, da IPS
Betul, Índia, 10/6/2015 – Mamta Bai, de 36 anos,
recorda claramente da primeira vez que a polícia foi à sua aldeia no centro da
Índia: foi em dezembro de 2014, sua vizinha tinha ficado inconsciente após
receber um golpe de seu marido alcoolizado, e ela precisou fazer um telefonema
para a delegacia mais próxima. Os policiais retiraram o agressor de sua casa e
perguntaram às mulheres presentes se queriam que ele fosse detido. A resposta
em uníssono foi sim.
Mas primeiro pediram que o deixassem amarrado a um
poste em meio à aldeia, no município de Betul. “Queríamos que todos vissem o
que aconteceria aos maridos que agredissem suas mulheres daqui em diante”,
afirmou Mamta Bai, que funciona como kanooni sakhi (amiga legal, em
híndi) na organização Narmada Mahila Sangh (NMS). A agrupação, que ajuda as
vítimas de violência machista a buscar justiça, está presente em 213 povoados
do Estado de Madhya Pradesh, no centro da Índia.
Sabendo que o abusador passaria umas poucas noites
na prisão e voltaria para casa e para os mesmos hábitos, as mulheres unidas
conseguiram que o homem assinasse uma carta ao chefe de polícia se
comprometendo a nunca mais voltar a bater em sua mulher. “Queríamos que
aprendesse a lição. A detenção e a humilhação de estar atado a um poste à vista
de todos lhe deu medo”, contou Santri Bai, também integrante da NMS. “Agora ele
sabe, somos 42 mulheres dispostas a mandá-lo para a prisão se voltar a bater na
esposa”, acrescentou.
A NMS trabalha nos municípios de Betul e
Hoshangabad em Madhya Pradesh, um Estado com um grau de violência de gênero
excepcionalmente alto, com 62% das mulheres vítimas de alguma forma de abuso,
dez pontos acima da média nacional de 52%. Os abusos incluem violência sexual,
violação marital, assassinato, socos, assassinatos por questões vinculadas ao
dote e, no caso de mulheres acusadas de bruxaria, tortura e queimaduras. Entre
2013 e 2014, o Estado registrou dez mil atos de violência contra mulheres,
quatro mil deles ocorridos em Betul.
A NMS foi criada em 2002, para ajudar as mulheres a
conseguirem empoderamento econômico, não para frear a violência de gênero.
Segundo a Comissão de Planejamento da Índia, 35% da população de Madhya Pradesh
vive em condições de extrema pobreza, superando a média nacional de 25%. Isto
é, 30 milhões de pessoas vivem com menos de US$ 1,25 por dia.
“Começamos a participar de reuniões e visitar
nossas casas para discutir diferentes formas de renda e nos interessamos em
assuntos familiares, como a educação dos filhos”, contou Asha Ayulkar, da
aldeia de Chiklar, perto de Betul. “Os homens ficaram enfurecidos porque viram
isso como um desafio à sua autoridade e uma quebra da tradição, e bateram nelas
como castigo”, acrescentou.
Mulheres que integram a organização feminina
Narmada Mahila Sangh (NMS) reunidas na aldeia de Borgaon, no Estado de Madhya
Pradesh, centro da Índia. Foto: Stella Paul/IPS.
Em 2013, com nove mil integrantes, a NMS começou
sua cruzada com o convencimento de que a situação das mulheres não melhoraria
se não fossem atendidos ao mesmo tempo os valores patriarcais profundamente
arraigados. O primeiro objetivo foi garantir a capacitação, já que muitas
mulheres em áreas rurais mal têm educação formal, quanto mais conhecimento
legal especializado.
A alfabetização em Madhya Pradesh gira em torno dos
70% de sua população, mas cai para 60% no caso das mulheres, o que tampouco
reflete a realidade, pois muitas adolescentes costumam abandonar a escola antes
de terminarem o secundário.
Com ajuda de organizações da sociedade civil, como
a Prada, 30 integrantes da NMS se capacitaram em assuntos parajudiciais e
depois se converteram em painelistas que capacitaram outras mulheres sobre leis
e políticas vigentes e sobre como realizar uma investigação básica antes de
recorrer à polícia. “Também aprendemos como falar a uma sobrevivente e
ajudá-la, uma kanooni sakhi deve se reunir com ela a sós, olhar em seus
olhos e ser firme, mas compreensiva”, explicou à IPS.
“Aprendemos sobre o Código Penal e seus artigos
vinculados a tortura, agressão, violação e morte relacionada com o dote”, disse
Ayulkar, que tem 50 anos e, apesar de só ter estudado até o sexto ano,
atualmente é a especialista parajudicial mais respeitada do distrito e com
êxito superior a 80% dos casos.
A iniciativa pode parecer pequena diante da
generalização da violência machista neste país de 1,2 bilhão de habitantes. O
abuso sexual e físico está muito sub-registrado em toda a Índia. Um estudo da
revista American Journal of Epidemiology revelou que apenas 2% das
vítimas denunciam casos de violência.
Parte da explicação pode ser a lamentável escassez
de condenações. O Escritório Nacional de Registro de Delitos estima que apenas
30% dos casos acabam em alguma pena. Isto significa que sete em cada dez
acusados ficam livres. E mesmo os condenados ficam livres poucos anos depois,
ou, às vezes, até mesmo em poucos dias.
“A NMS capacita as mulheres sobre como realizar a
denúncia, como pedir um advogado público, quando não podem pagar um, e como
realizar um acompanhamento de seu processo mediante a lei de Direito à
Informação”, explicou Mamta Bai à IPS. “Agora as mulheres registram cada caso”,
disse Angana Gupta, diretora-adjunta da L&T Finances, uma das organizações
associadas com a Prada. O aprendizado de questões legais foi acabou sendo a
parte mais fácil. O mais difícil foi, e continua sendo, mudar os comportamentos
e as atitudes sociais nas áreas rurais.
Ramvati Bai, da aldeia de Bakud, era uma viúva com
dois filhos que teve de suportar durante três anos os abusos sexuais e as
agressões de seu sogro, até que criou coragem para denunciá-lo, mas a polícia
considerou que se tratava de um “assunto familiar’. Com ajuda da NMS, a polícia
registrou a denúncia e deteve o homem. Mas a família se colocou contra Ramvati
e a puseram para fora de casa. Felizmente, ela conseguiu refazer sua vida
graças à ajuda dessa organização.
Porém, Nirmala Bai, de 28 anos, não teve a mesma
sorte. Ela morreu em 2013, supostamente estrangulada por seu marido, que em
seguida ateou fogo no cadáver. A polícia o deteve e o acusou de incitamento ao
suicídio, mas lhe concederam liberdade condicional. Embora a NMS não tenha
ficado parada e tenha procurado justiça para Nirmala, por fim teve que
abandonar o caso porque a família dela se negou a depor como testemunha.
As integrantes da NMS não se deixam abater por
esses reveses. Mantêm os programas de microcrédito e defendem quem necessita de
sua ajuda. “Queremos uma vida digna e livre de violência”, destacou Ramvati Bai
à IPS. “Não há nada mais importante do que isso”, enfatizou.
Fonte: ENVOLVERDE
Nenhum comentário:
Postar um comentário