Samarco,
Vale e BHP vão decidir quem e como indenizar por desastre.
Obtida pela Pública, minuta do acordo extrajudicial
entre mineradoras e governo cria uma Fundação, gerida pelas empresas, com poder
de decisão sobre atingidos.
Por Anna Beatriz Anjos, Ciro Barros, Jessica Mota,
Maurício Moraes, da Agência Pública –
A minuta do acordo extrajudicial entre Samarco,
Vale e BHP Billiton, os Ministérios Públicos Federal e Estadual e entidades
governamentais sobre o desastre de Mariana, obtida com exclusividade pela
Agência Pública, revela que as empresas terão o poder de decidir sobre quem
será indenizado e sobre quanto cada pessoa ou família vai receber. Se assinado
por todos os envolvidos, o acordo encerra a ação civil pública que corre na 12ª
Vara Federal da Seção Judiciária de Minas Gerais.
Será criada uma Fundação, comandada pelas
mineradoras, para analisar cada um dos casos. O andamento do trabalho será
supervisionado pelo Comitê Interfederativo, entidade que reunirá representantes
dos governos federal, estadual e municipal, mas não terá nenhum integrante de
movimentos sociais que defendem as vítimas do rompimento da barragem do Fundão,
o maior desastre ambiental da história do país.
A minuta do documento estipula como os responsáveis
deverão agir para reparar e compensar os danos socioambientais e
socioeconômicos. Órgãos técnicos federais e estaduais estimaram que o custo
deve ultrapassar R$ 20 bilhões. O texto, que tem 98 páginas, pode ser lido
abaixo, na íntegra. Apesar de haver uma série de pontos polêmicos e de não ter
envolvido representantes dos atingidos na elaboração dos termos, o governo
pretende fechar o acordo extrajudicial até sexta-feira (26). A data já foi
inserida inclusive no final do texto.
De acordo com a cláusula 34ª do documento, a
Fundação comandada por Samarco, Vale e BHP Billiton vai criar uma Câmara de
Negociação para acertar o valor das indenizações com cada um dos atingidos.
Para isso, contará com negociadores com experiência na área jurídica e levará
em conta informações sobre os interessados em reparações e provas colhidas.
Aqueles que não puderem pagar por um advogado vão ter a assistência jurídica
gratuita patrocinada pela própria Fundação. Ou seja, terão de aceitar a ajuda
oferecida pelas empresas, que vão pagar as indenizações, para negociar ou
contestar as próprias mineradoras. Quem não concordar com os termos oferecidos
deverá entrar na Justiça.
O promotor de Justiça da Comarca de Mariana,
Guilherme de Sá Meneghin, afirma que não participou de nenhuma das reuniões que
resultaram no acordo. “Nunca houve qualquer tipo de diálogo comigo e também
nunca houve qualquer tipo de diálogo com os atingidos”, diz. “Nada disso que
está aí contempla o que de fato as pessoas precisam para ter o seu reassentamento
efetivado. Eles não têm condição de saber como os atingidos querem a
comunidade, eles não me consultaram e não consultaram os atingidos. Eles não
conhecem Bento Rodrigues.”
A cláusula 10ª da minuta estabelece as modalidades
de reparação socioeconômica. Para o promotor, o texto não tem validade. “Essa
cláusula, ao não contemplar a participação das vítimas, não pode ser
viabilizada. Ela viola não só a responsabilidade civil da empresa, que tem que
ser de acordo com o dano causado, como também viola diversos tratados
internacionais da área de direitos humanos”, afirma Meneghin. “A maioria das
casas de Bento Rodrigues eram casas coloniais, construídas no século 18.
Qualquer projeto que não leve em consideração características como essas não
tem condição de ser viabilizado. Essa é a nossa contestação.”
O promotor contesta ainda o modo como a Fundação
vai decidir sobre as indenizações, usando a Câmara de Negociação para tratar
individualmente cada caso. “A indenização não pode ser levada à cabo por essa Fundação.
Ela tem que ser feita na Câmara de Indenização aqui na Comarca com a
participação do governo dentro do processo da ação civil pública em que já
fixamos a primeira parcela da indenização. Cada comunidade tem um perfil muito
diferente”, afirma. De acordo com Meneghin, também não faz sentido que a
Fundação forneça advogados para quem não puder arcar com isso. “Uma empresa não
pode pagar advogado para uma pessoa que vai entrar com processo contra ela. O
estatuto da OAB proíbe essa atividade. Isso é ilegal.”
Sem garantias
A Fundação também deverá cadastrar todos os
atingidos, de acordo com a cláusula 8ª. Isso, no entanto, não garante o
recebimento das indenizações, uma vez que cada caso será decidido após acordo
na Câmara de Negociação. Essas negociações, segundo a minuta, poderão ser
acompanhadas pelo poder público. Logo, não existe a obrigação de que isso seja
fiscalizado de perto pelo governo.
O trabalho de cadastramento de todas as
pessoas e empresas atingidas pelo desastre deverá ser concluído em no máximo
seis meses após a assinatura do documento e será verificado pelo Comitê
Interfederativo.
As atribuições da Fundação são definidas na
cláusula 4ª da minuta do acordo. A entidade, instituída e patrocinada pelas
responsáveis pelo rompimento da barragem, cuidará da execução de todos os
programas e medidas necessários para a reparação, mitigação, compensação e
indenização pelos danos socioambientais e socioeconômicos causados pelo
desastre de Mariana. Os encargos financeiros serão cobrados primeiro da Samarco.
Somente se a empresa não tiver como cumprir os aportes de recursos exigidos por
essas iniciativas é que a Vale e a BHP Billiton deverão fornecer os valores
necessários.
“O acordo é bom para elas e ruim para as vítimas,
sejam elas as pessoas ou o meio ambiente”, diz Danilo Chamas, advogado da
organização Justiça nos Trilhos. Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil.
Para Danilo Chammas, advogado da organização
Justiça nos Trilhos, a proposta defendida pela minuta é perniciosa por
confundir ações voluntárias de responsabilidade social corporativa com medidas
para reparação de danos – que seriam obrigações devidas pelas empresas por
conta das violações de direitos. “As empresas têm medo de uma condenação
judicial. O acordo é bom para elas e ruim para as vítimas, sejam elas as
pessoas ou o meio ambiente”, diz. “Mesmo que esse acordo preveja multas
vultosas por descumprimento de suas cláusulas, é bastante provável que estas
não sejam suficientes para incentivar as empresas a cumprirem com as obrigações
assumidas. Atuo em processos em que a Vale tem descumprido sem o menor pudor
decisões judiciais que também impõem multas por descumprimento.”
Outro ponto polêmico do documento prevê que a
Fundação contrate uma empresa para identificar as áreas que sofreram impacto
social, cultural e econômico com o rompimento da barragem. Esse estudo
estabelecerá a relação entre causa e consequência, isto é, a cadeia causal que
vai relacionar o desastre aos danos causados, permitindo posteriormente a
definição das compensações. O problema é que as mineradoras terão influência
direta nesse trabalho, que depois precisará ser validado pelo poder público por
meio do Comitê Interfederativo.
Todas as decisões da Fundação serão analisadas e
aprovadas por um Conselho de Administração. Dos sete integrantes do órgão, seis
serão indicados pelas mineradoras: dois pela Samarco, dois pela Vale e dois pela
BHP Billiton. Apenas um dos membros será indicado pelo Comitê Interfederativo,
formado pelo poder público. Todos os integrante do Conselho, no entanto, devem
vir da iniciativa privada e ter experiência em gestão de grandes projetos. Não
há vagas, portanto, para qualquer representante dos atingidos pelo desastre.
Haverá também um Conselho Consultivo, com 14
membros, que poderá ser ouvido sobre os projetos e planos da Fundação. Mas nele
também não há espaço para as vítimas, para as entidades que as representam ou
para movimentos sociais. Haverá sete representantes do Comitê da Bacia
Hidrográfica do Rio Doce, dois da Comissão Interministerial para os Recursos do
Mar, cinco especialistas de instituições de ensino e pesquisa ou com notório
conhecimento – um deles será indicado pelo Ministério Público Federal, um pelos
Ministérios Públicos Estaduais de Minas Gerais e do Espírito Santo, dois pelo
Conselho de Administração da Fundação e um pelo Comitê Interfederativo.
Em nenhum ponto do documento é criado qualquer
mecanismo institucionalizado para garantir a participação efetiva dos atingidos
nas decisões da Fundação. Eles ou as entidades que os representam poderão
apenas ser ouvidos pelo Conselho Consultivo, segundo parágrafo único da
cláusula 247ª, em assembleias sem direito a voto. Segundo a minuta do acordo
extrajudicial, a Fundação criará uma Ouvidoria para manter o diálogo com a
população atingida. O documento, no entanto, deixa a cargo da entidade
comandada pelas mineradoras a indicação do ouvidor que deverá resolver
eventuais disputas que podem surgir ou apurar denúncias.
Os atos, projetos e programas da Fundação serão
fiscalizados pelo Comitê Interfederativo, que reúne membros do governo e do
Ministério Público. Entre os integrantes, porém, não está nenhum representante
da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, que poderia
defender os direitos dos atingidos pelo rompimento da barragem do Fundão. As
ações desse órgão também são sempre reativas, de acordo com a minuta, o que
pode tornar os procedimentos burocráticos e também dificultar o acompanhamento.
Indígenas atingidos
Na minuta do acordo está previsto um programa de
proteção e melhoria da qualidade de vida dos indígenas. As populações
contempladas são os Krenak, os Tupiniquim e os Guarani da região da foz do rio
Doce. Para as ações, o acordo prevê mecanismos de consulta e participação dos
povos em todas as fases do programa, mas não estabelece diretrizes para esses
mecanismos. A Fundação Nacional do Índio (Funai) e a Secretaria Especial de
Saúde Indígena do Ministério da Saúde (Sesai) deverão supervisionar e
participar das ações mas não têm funções de coordenação.
Na cláusula 44ª são estipuladas as ações de
responsabilidade da Fundação em relação aos indígenas. Entre elas está a
manutenção das medidas de apoio emergencial, estipuladas em um acordo feito em
novembro de 2015 com a Vale, e o monitoramento de situações como o
abastecimento e qualidade da água e apoio financeiro mensal às famílias. Também
consta a atualização das necessidades dos indígenas em virtude de diálogo com
essa população.
Para que o programa tome forma, porém, a Fundação
deve contratar uma consultoria independente, que irá elaborar um estudo para
apontar os impactos socioambientais e socioeconômicos sobre os indígenas. A
partir daí, será feito um Plano de Ação Permanente, que deve ser pactuado com
os indígenas. O prazo para que o Plano de Ação Permanente entre em operação é
de dois anos a partir da assinatura do acordo e ele deverá ser mantido por, no
mínimo, dez anos.
Plano de Ação Permanente para os indígenas
atingidos não foi discutido com os próprios índios.
Foto: Corpo de Bombeiros de
Minas Gerais.
“Essa definição do acordo já deveria estar
considerando a opinião e a demanda dos índios”, comenta Adriana Ramos,
coordenadora do Programa de Política e Direito Socioambiental do Instituto
Socioambiental (ISA). “O governo está, em nome da sociedade, estabelecendo uma
forma de lidar com os impactos sem consultar a sociedade pra saber se essa
forma é a forma que melhor atende.”
Ela aponta que as ações previstas no acordo também
deveriam ter sido alvo de consulta dos indígenas. “Você vai criar uma fundação
das empresas pra trabalhar em área indígena e quem deveria definir quem vai
gerir os recursos pra aplicar nas ações deveriam ser os próprios índios. Em que
organização que eles confiam?”
Ailton Krenak, liderança indígena do Vale do Rio
Doce, esclarece que são feitas reuniões periódicas com as empresas e com o
Ministério Público Federal, em virtude das medidas de emergência adotadas. Ao
ser questionado se os termos do acordo foram discutidos com a população Krenak,
Ailton afirma que não.
A Agência Pública entrou em contato com os governos
de Minas Gerais e do Espírito Santo, os ministérios de Minas e Energia e Meio
Ambiente – os dois últimos nos encaminharam, respectivamente, para o
Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) e para o Instituto Brasileiro
de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) – e a
Advocacia-Geral da União (AGU).
O DNPM informou que o assunto não é de sua alçada
e, por isso, não o comentará. Os governos do Espírito Santo e Minas Gerais
comunicaram que as negociações continuam ocorrendo e que só se pronunciarão
após a finalização do acordo. O Ibama informou que não participou das
discussões socioeconômicas, portanto, não tem como se pronunciar nesse sentido,
responsabilidade que seria da AGU. Esta, por sua vez, também pontuou que a
questão se encontra em discussão e que não comenta “cláusulas de acordo que
ainda não foi concluído/assinado”.
Atualização: após a publicação da reportagem, foram
incluídas as respostas do DNPM, governos do Espírito Santo e Minas Gerais,
Ibama e AGU.
Fonte: Agência Pública
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