O painel
do clima quer falar com você.
O australiano John Cook, editor do site Skeptical
Science, fala durante encontro do IPCC em Oslo. Foto: Claudio Angelo/OC.
IPCC faz sua primeira reunião sobre comunicação
disposto a mudar a cultura do segredo e a linguagem arcana de seus relatórios –
mas esbarra numa estrutura de governança conservadora.
Por Claudio Angelo, do OC, em Oslo –
Luís Bernardo Valença, protagonista do romance
Equador, do português Miguel de Souza Tavares, recebe do rei de Portugal uma
missão virtualmente impossível: assumir o governo de São Tomé e Príncipe para
convencer os compradores ingleses de cacau de que não existe trabalho escravo
nas ilhas – e, ao mesmo tempo, garantir que o sistema de trabalho escravo não
mude, de forma a não prejudicar a economia local.
A história guarda uma analogia com o momento pelo
qual passa o IPCC, o painel do clima da ONU, que na semana passada realizou em
Oslo, na Noruega, a primeira reunião de sua história dedicada à comunicação. O
comitê internacional de cientistas, agraciado com o Prêmio Nobel da Paz em
2007, reconhece que a forma como se comunica com seus diversos públicos precisa
mudar: os sumários de seus relatórios de avaliação são indecifráveis para
leigos e para os próprios formuladores de políticas públicas a quem
supostamente se dedicam; as decisões são tomadas em reuniões fechadas, o que
alimenta rumores de que o painel é ora uma conspiração de ambientalistas para
distorcer a ciência, ora uma vítima de ações de governos para aguar conclusões
impactantes sobre a gravidade das mudanças do clima; a maneira como a incerteza
e o risco são expressos pelo painel é bizantina.
A vontade de abrir-se mais ao público, porém,
esbarra no conservadorismo do próprio painel, que preserva um modo de operação
da década de 1990, quando lançou seu primeiro relatório de avaliação). Os
métodos, as regras e os rituais do IPCC precisam permanecer os mesmos – e seus
líderes parecem não querer abrir mão disso. Ao mesmo tempo, eles mesmos pedem
mais transparência e mais acessibilidade. Qual é a chance de isso dar certo?
O próprio encontro de Oslo pode ser um termômetro.
Foram convidados a participar cerca de 50 especialistas em comunicação do mundo
inteiro e mais duas dezenas de autoridades do próprio painel. A reunião foi a
primeira em toda a história do IPCC a ser transmitida ao vivo pela internet.
Mas isso que só aconteceu depois da cobrança de algumas personalidades da área,
como o jornalista americano Andrew Revkin. Ela foi aberta também pela internet
pelo presidente do painel, o sul-coreano Hoesung Hwang. Os co-presidentes dos
três grupos de trabalho que cuidam de avaliar os três grandes aspectos da
mudança do clima (a base física, impactos e vulnerabilidades e mitigação)
estiveram presentes o tempo todo, assim como dois dos três vice-presidentes, a
americana Ko Barrett e o malês Youba Sokona. Cientistas que coordenaram a
produção do AR5, o quinto relatório do IPCC, também estiveram nos dois dias de
encontro.
Um consenso importante formado em Oslo foi que a
comunicação precisa integrar o processo de produção dos relatórios desde o
início. O modelo atual seguido pelo IPCC consiste em preparar primeiro os
relatórios e então divulgá-los aos diversos públicos – tomadores de decisão,
imprensa e o público geral. É o que Paul Lussier, especialista em mídia da
Universidade Yale, chamou de “passar batom num porco” durante sua apresentação.
Enfeitar o suíno, até aqui, tem sido a receita para
o fiasco de comunicação do painel. Isso foi mais ou menos matematicamente
demonstrado pelo cientista ambiental português Suraje Dessai, professor da
Universidade de Leeds, no Reino Unido, e coautor do AR5 (Quinto Relatório de
Avaliação do IPCC, publicado entre 2013 e 2014). Uma análise dos sumários do
IPCC conduzida por Dessai e colegas com a ajuda de softwares que olham
simplicidade e legibilidade foi publicada no ano passado no periódico Nature
Climate Change. O trabalho mostrou que não apenas o IPCC é menos legível do que
outras publicações científicas, como também o grau de compreensibilidade dos sumários
despencou de 1990 para cá.
Uma das recomendações feitas ao final do encontro,
e que serão encaminhadas à plenária do IPCC em abril, é para que se incorporem
comunicadores profissionais, jornalistas de ciência, psicólogos e antropólogos
desde a chamada fase de “definição do escopo” dos relatórios. Isso começaria no
AR6, o Sexto Relatório de Avaliação do IPCC, que deverá ser publicado em algum
momento entre 2020 e 2022. Essa própria definição, que hoje é feita pelas
autoridades do painel e pelos governos, poderá vir a ser realizada numa espécie
de consulta pública – na qual diferentes atores, desde a sociedade civil até
empresários e mesmo crianças, digam o que querem que o painel avalie sobre a
mudança climática. Tamanha abertura seria uma revolução no IPCC, rompendo a
lógica professoral que impera hoje na definição das perguntas às quais os
relatórios tentam responder.
Outra sugestão, apresentada por um grupo que
discutiu as relações entre o IPCC e os meios de comunicação, foi para que os
rascunhos dos sumários executivos sejam abertos para o público antes da
aprovação final pelos governos. Cada sumário passa por uma série de rascunhos
até chegar ao formato final de revisão, que é enviado aos governos para
comentários. Os sumários são aprovados por governos e cientistas na plenária do
IPCC, onde recebem alterações finais. A regra é que os governos modifiquem
muito o texto, mas – e este é um “mas” importante, porque é o que define a
credibilidade do IPCC – a palavra final é sempre dos cientistas.
Os rascunhos hoje não são públicos, mas qualquer
pessoa pode solicitar ao IPCC fazer parte do comitê de revisores – e ganham,
assim, acesso aos documentos. Em 2013, um negacionista do clima vazou em seu blog uma
versão do AR5, alegando que o painel estava escondendo evidências de que o
aquecimento global se devia a raios cósmicos (não estava). A proposta
apresentada em Oslo foi para que os rascunhos de revisão fossem tornados
públicos, de forma a minimizar o impacto de vazamentos e a conter desinformação
na imprensa.
Outras recomendações feitas em Oslo vão de dar ao
site do IPCC uma nova interface pública até produzir infográficos animados da
ciência avaliada pelos relatórios.
Na prática, porém, a teoria é outra: um dos dogmas
do IPCC é que ele não pode produzir prescrições políticas, ou seja, precisa se
limitar a dizer aos países o que acontece com o mundo em cada cenário de
emissões e o que é preciso fazer para atingir níveis de emissão x, y ou z no
futuro. A rigor, o painel do clima não pode incitar as pessoas a combater a
mudança climática – isso seria uma posição de militância. Pior, entre os mais
de 150 governos que integram o IPCC e de fato mandam nele (daí a sigla
significar Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) há os que não
querem resolver o problema, porque vivem da sua causa – os combustíveis
fósseis. Essas são amarras importantes à comunicação.
Outro problema é que o IPCC ainda vive no século
XX, num sentido bem real. Enquanto a comunicação hoje é digital, o painel do
clima decidiu, por consenso, que seus relatórios são aprovados linha por linha
pelos governos – e isso significa caneta e papel. Não há nem sequer método para
submeter um infográfico animado à plenária, caso alguém ache que é o caso usar
esse tipo de recurso no AR6. Sugestões de ter uma equipe de vídeo acompanhando
o “making of” dos relatórios foram rejeitadas no passado, porque algumas
pessoas no painel não queriam que ninguém ficasse “espionando” seu trabalho. E
por aí vai.
O IPCC foi criado em 1988, mas só ganhou uma
estratégia de comunicação em 2012. Tem um longo aprendizado pela frente e
precisa começar de algum lugar. Pessoas com quem conversei em Oslo disseram
duvidar que a maior parte das recomendações seja acatada. Mas é auspicioso, num
momento em que o mundo se prepara para implementar o Acordo de Paris, que o
templo do conhecimento climático esteja disposto a embarcar na tarefa da
comunicação. Ela é mais necessária do que nunca agora.
* O jornalista viajou a convite do IPCC.
Fonte: Observatório do Clima
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