sábado, 26 de março de 2016

Lei de patrimônio genético: uma ‘leimonada’?
Povos indígenas são uns dos principais responsáveis pelos conhecimentos tradicionais sobre a biodiversidade. Roça do povo indígena. Foto: Tuiuka | Beto Ricardo – ISA.

Governo apresentou proposta de decreto para regulamentar legislação. 

Representantes de comunidades indígenas e tradicionais têm novo desafio para garantir seus direitos enquanto grandes empresas pretendem flexibilizar ao máximo qualquer tentativa de controle de suas atividades.

Por Nurit Bensusan*

Dizem que quando se tem em mãos um limão, metáfora para algo azedo e difícil de engolir, o melhor a fazer é transformá-lo numa limonada, uma bebida agradável e, portanto, mais fácil de engolir.

Talvez essa seja a intenção da Casa Civil, quando colocou em discussão uma minuta de decreto sobre a Lei 13.123/2015. Essa é a lei que trata do acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional. A lei reflete sua elaboração e tramitação: um processo desequilibrado, onde o setor privado, usuário do patrimônio genético e do conhecimento tradicional, teve grande parte de seus interesses contemplados, enquanto os detentores de conhecimentos tradicionais tiveram seus direitos desrespeitados e afrontados.

A lei remeteu um significativo conjunto de temas para a regulamentação, ou seja, para que ela fique de pé, apesar de já estar em vigor, há necessidade de um decreto que regulamente muitos de seus dispositivos. Após sucessivos adiamentos, na véspera do Natal, o governo, por meio da Casa Civil, apresentou uma minuta de decreto para discussão. A informação que circula é de que a minuta deverá entrar em consulta pública em março e assim deverá permanecer por cerca de um mês. Depois disso, o governo irá recolher as contribuições e fechar o texto final. Ainda não se sabe quando o decreto será publicado exatamente.

Em que pese os inúmeros problemas que o texto apresenta, é nítido o esforço que foi realizado no sentido de dar mais atenção aos clamores dos detentores de conhecimento tradicional – naturalmente muito insatisfeitos com a lei – e de tentar garantir alguns de seus direitos (para ajudar na análise da minuta de decreto, o ISA preparou um guia da minuta).

Os debates acerca da minuta, porém, dão conta que fazer da lei uma “leimonada”, isto é, transformá-la em algo mais palatável para os detentores de conhecimento tradicional e para aqueles preocupados em assegurar seus direitos, será uma tarefa difícil, quiçá impossível.

A Lei 13.123/2015 causou estragos que não podem ser revertidos com sua regulamentação. Por exemplo, ao separar o patrimônio genético do conhecimento tradicional, criando a possibilidade de sistemas distintos de acesso, a Lei estabeleceu uma forma de usar o patrimônio genético brasileiro, muitas vezes resultado das atividades das comunidades humanas que aqui viviam e vivem, sem nenhuma consulta, sem nenhuma autorização, de forma automática.

São limitados os avanços que a minuta traz no sentido de dar mais garantias aos povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores tradicionais de que seu conhecimento será acessado de forma apropriada e com a concordância deles. Ainda assim, o texto tem sido alvo de críticas do setor privado, que parece entender qualquer tentativa de verificação, fiscalização e controle por parte do governo como um obstáculo inaceitável às suas atividades.

É compreensível que as empresas queiram garantir que o novo marco legal crie um ambiente positivo para seus negócios, mas isso certamente não acontecerá sem que os direitos mais fundamentais dos detentores de conhecimento tradicional sejam garantidos. A almejada segurança jurídica, que contribuiria, segundo o setor privado, para fomentar o uso e a geração de inovação a partir de nossa biodiversidade, não virá sem o reconhecimento do papel dos povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores e do conhecimento tradicional nos processos que geram e mantêm a biodiversidade e consequentemente o patrimônio genético.

Limão ou limonada? Façam suas apostas…
(ISA/ #Envolverde)

* Nurit Bensusan, especialista em Biodiversidade e coordenadora adjunta de Política e Direito do ISA.


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