Aprender
com o índio, não tentar destruí-lo.
Por Washington Novaes*
Está muito difícil ser índio no Brasil. São cada
vez mais fortes e frequentes os ataques à sua cultura, às terras que ocupam, à
convivência com os “brancos”. As perdas são muitas. Embora de outra natureza e
inevitável, há poucos dias sobreveio a morte do professor Roberto Baruzzi, da
Universidade Federal (Escola Paulista de Medicina) em São Paulo e idealizador
do Projeto Xingu, que tantos benefícios trouxe às etnias dessa região em muitas
décadas.
Interessado nas notícias sobre esse caminho, o
autor destas linhas foi pela primeira vez ao Parque do Xingu ainda na década de
1970. E pôde verificar que nos grupos étnicos dali não havia casos de doenças
coronarianas, por não estarem presentes entre eles os chamados fatores de
risco, frequentes em nossa vida urbanizada, como estresse, obesidade, diabetes,
sedentarismo, hipertensão, fatores genéticos, simultâneos com alcoolismo,
tabagismo. Confrontados com grupos já urbanizados – guarani, caingangue e
terena, boa parte deles trabalhando como boias-frias –, verificava-se que era
muito forte a presença entre estes últimos de altas taxas de doenças
coronarianas e hipertensão, simultaneamente com o tabagismo e o alcoolismo,
alimentação inadequada e estresse.
A intenção do projeto do professor Baruzzi era
criar condições para a manutenção da saúde privilegiada entre os grupos do
Xingu, incluído o uso de medicamentos da natureza próxima. Para isso, a cada
ano os participantes do projeto iam ao parque e checavam o estado de saúde de
cada índio. As informações eram levadas para fichas individuais e confrontadas
com as de anos anteriores; se necessário, tomavam-se providências. Que
programas de saúde entre nós chegam a esses procedimentos? Mas a aculturação forçada
de índios em todo o País chegou também à proximidade com as etnias do Xingu – e
o quadro de hoje é muito diferente.
As consequências do projeto de aculturação
forçada dos grupos étnicos indígenas, acobertada por “falta de recursos”, têm
levado a uma situação dramática e ataques cada vez mais fortes. Agora mesmo,
tenta-se mudar no Congresso (mais de cem projetos) a legislação que transfere
do Executivo federal (Funai) para o Legislativo (com forte presença da bancada
ruralista) o processo de demarcação de terras indígenas.
São a cada dia mais frequentes as notícias de
violências contra índios: foram registrados 759 assassinatos de indígenas e
quilombolas em uma década, dos quais 390 em Mato Grosso do Sul. Diz o Conselho
Indigenista Missionário (21/1) que os índios são mais de 1 milhão, mas para 107
mil a questão é especialmente grave, pois há 228 áreas com a demarcação ainda
não homologada.
Tão grave quanto tudo isso é a decisão
presidencial de vetar, no âmbito da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, dispositivo
segundo o qual escolas indígenas não seriam obrigadas a usar os mesmos
critérios das escolas “brancas” no processo de alfabetização; idiomas indígenas
não seriam utilizados nesse processo de alfabetização. Porque esse uso de
idiomas indígenas no ensino fundamental, médio, profissionalizante e superior
foi considerado pelo Ministério do Planejamento como “contrário ao interesse
público”. Que seria, então, um idioma nacional, nessa visão? Aquele trazido a
partir do século 16 – quando já havia aqui milhões de indígenas – pelos
colonizadores, especialmente os portugueses, que dizimaram, escravizaram
índios?
As perdas com a condenação dos idiomas nativos
podem ser muito graves, principalmente neste momento em que costuma ter
consequências danosas o banimento das 160 linguagens nativas ainda faladas por
aqui. Só um exemplo: o povo matsés, da fronteira Brasil-Peru, criou uma
enciclopédia com mais de 500 páginas, com a descrição, em seu idioma, de cada
doença encontrada entre eles, com o relato de causas, forma de enfrentá-las,
onde encontrar os medicamentos das espécies naturais, foto de cada uma. Tudo
compilado por cinco xamãs. E só a linguagem local seria capaz de identificar as
particularidades do lugar e das espécies, pois os xamãs são os depositários
maiores do conhecimento em cada etnia. O uso da linguagem nativa impediria
também a apropriação dos conhecimentos por empresas da área farmacêutica.
A questão dos pajés e de seus conhecimentos é
crucial, por sua capacidade de enfrentar as “doenças de índio” com o
conhecimento tradicional. Doença de índio é diferente de doença de branco. E o
pajé ainda utiliza nessa prática os conhecimentos do mundo dos espíritos. Sem
xamãs pode desaparecer uma cultura indígena específica. Mas os jovens, cada vez
mais aculturados, quase só se interessam pelas roupas, por tecnologias, modos
de viver dos jovens brancos; não querem passar pelo longo período de reclusão
(pode ser de anos) e ganho de conhecimentos que lhes permitirá virem a ser
pajés. E sem eles se desvanecerá a cultura indígena.
Deveríamos repensar toda a questão da cultura
indígena e nossa relação com ela, como sugeria o antropólogo francês Pierre
Clastres, que viveu entre várias etnias no Brasil. Ele lembrava que nós,
“civilizados”, costumamo-nos referir a índios não pelo que eles têm, mas pelo
que não têm – não usam roupas, não têm dinheiro, não dominam nossas
tecnologias. Esquecemo-nos da força de culturas em que a sociedade não delega
poder a ninguém (o chefe não manda, não dá ordens; é o que mais sabe dessa cultura,
da divisão do trabalho; é o grande mediador de conflitos). Um índio na força de
sua cultura também não depende de ninguém: sabe fazer tudo de que precisa – a
casa, a roça, seus objetos do cotidiano. E a informação é aberta, o que um sabe
todos podem saber; como todos são autossuficientes, ninguém domina ninguém. É o
que Clastres chama de “democracia do consenso”.
Uma boa lição para quem está vivendo, hoje, os
dramas da relação da nossa sociedade com o poder.
* Washington Novaes
é jornalista. E-mail: wlrnovaes@uol.com.br
Fonte: O
Estado de S. Paulo
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