Olimpíada?
Não, obrigado.
Como uma campanha popular enfrentou um poderoso
lobby de empresários e ajudou a derrubar a candidatura de Boston para sediar os
Jogos Olímpicos de 2024.
Por Giulia Afiune, para a Agência Pública –
Faltando apenas seis meses para os Jogos Olímpicos
de 2016, o Rio de Janeiro chegou aos assuntos mais comentados no Twitter por
causa da poluição na baía de Guanabara – ao mesmo tempo em que pesquisadores da
Universidade de Nova York chegaram a pedir que a Olimpíada fosse adiada ou até
mesmo cancelada por causa da epidemia de Zika.
Sediar uma Olimpíada pode ter sido uma grande
glória no passado, mas tem se tornado um fardo político e econômico que cada
vez menos cidades estão dispostas a carregar.
Há um ano, Boston, no estado de Massachusetts,
costa leste dos Estados Unidos, contemplava a possibilidade de realizar os
Jogos Olímpicos de 2024 em sua região metropolitana. Parecia uma boa ideia
levar o megaevento para um local onde o amor pelos esportes é visível por todo
lado: em bares lotados durante partidas de futebol americano dos New England
Patriots, em outdoors que estampam o time de basquete Boston Celtics ou nos
incontáveis bonés de beisebol dos Red Sox vistos no metrô na hora do rush.
No entanto, a perspectiva de uma Olimpíada em Boston
teve vida curta. Em janeiro de 2015, o município foi escolhido pelo Comitê
Olímpico Americano (United States Olympic Committee, o USOC) para representar
os Estados Unidos no concurso global para a cidade-sede de 2024. Sete meses
depois, o USOC mudou de ideia.
O índice de apoio entre os moradores da região
havia caído de 51% em janeiro para 40% em julho. Já a rejeição tinha aumentado
de 33% para 53%, segundo pesquisas de opinião.
A intensa discussão que ocorreu na cidade nesse
período ficou cristalizada em um debate organizado no dia 23 de julho de 2015
pelo jornal Boston Globe e pela emissora de TV Fox25. De um lado, estavam
representantes do Comitê Olímpico americano e do Boston 2024, grupo privado de
influentes executivos que estava por trás da candidatura (confira aqui). Para eles, a
Olimpíada significava uma chance de criar empregos, atrair investimentos
privados e catalisar o desenvolvimento da cidade. Do outro lado, estava um
jovem membro do No Boston Olympics, o mais influente grupo de oposição ao
plano, e também um economista que estuda os meandros financeiros das Olimpíadas
(veja aqui). Ambos argumentavam
que não valia a pena sediar os jogos: os recursos públicos deveriam ser
investidos em áreas mais importantes para a cidade.
Quatro dias depois, ficou claro quem venceu o
debate. Era o fim da candidatura de Boston.
O plano do Boston 2024
A possibilidade de realizar a Olimpíada na cidade
começou a ser explorada em 2012. O plano ganhou fôlego no fim de 2013, quando
chegou às mãos do empresário John Fish, CEO da Suffolk Construction, a maior
empreiteira de Boston e uma das maiores empresas privadas dos Estados Unidos.
Sob a liderança de Fish, foi formado o Boston 2024, um grupo privado de altos
executivos ligados à construção civil, ao mercado financeiro e ao mercado dos
esportes, que elaborou e sustentou a proposta para a Olimpíada.
O Boston 2024 propôs um estadio olímpico temporário
para os Jogos em Boston. O objetivo era reduzir custos do plano. Foto:
Reprodução Boston 2024.
No começo, tinham apoio de figuras influentes como
o ex-governador de Massachusetts e candidato republicano à presidência em 2012,
Mitt Romney; a Massachusetts Competitive Partnership, que reúne CEOs de
diversas empresas do estado; e Steve Pagliuca, um dos donos do time de basquete
Boston Celtics – que mais tarde substituiu Fish como presidente do conselho do
grupo.
Segundo o Boston 2024, a Olimpíada em Boston seria
econômica, rentável e inteiramente financiada com recursos privados. O plano
iria reduzir o número de obras necessárias aproveitando estruturas esportivas e
alojamentos já existentes nas 35 universidades espalhadas pela cidade. Para
evitar “elefantes brancos”, o estádio olímpico e a vila dos atletas seriam
erguidos como estruturas temporárias e depois transformados em conjuntos
habitacionais.
Para sediar os jogos, eram necessárias algumas
melhorias em infraestrutura, como transporte público e obras viárias, mas o
Boston 2024 dizia que estas já estavam planejadas e financiadas com recursos
públicos.
Mudando a conversa
O que o Boston 2024 não antecipou foi o barulho
causado pela oposição, formada por acadêmicos e dois principais grupos de
ativistas: o No Boston 2024 e o No Boston Olympics, que se tornou mais
influente.
O No Boston Olympics nasceu no fim de 2013, em uma
conversa informal entre amigos na sala de um apartamento em um bairro nobre no
centro de Boston. Chris Dempsey, Conor Yunits e Liam Kerr, o dono do
apartamento, estavam incomodados com o discurso positivo que a mídia divulgava
sobre a Olimpíada – e decidiram se organizar para oferecer um contraponto.
Logo do No Boston Olympics fazia referência aos
anéis das Olimpíadas. Na foto, adesivos que a organização estava vendendo.
Foto: Crédito: printprincipal.com.
“A gente precisava fornecer um ponto de vista alternativo,
que não estávamos ouvindo de mais ninguém”, conta Kelley Gosset, de 35 anos,
que se tornaria codiretora do No Boston Olympics.
“Fomos tomar um café em uma
manhã de domingo para discutir estratégias, o que nós poderíamos fazer para
divulgar nossas ideias de forma mais efetiva e como argumentar de forma
persuasiva.”
O pequeno grupo trabalhou sem parar pesquisando os
efeitos dos Jogos Olímpicos em cidades-sede. “As pessoas não são
necessariamente especialistas nas Olimpíadas – nós também não éramos. Eu mesma
não sabia que não gostava das Olimpíadas”, conta Kelley. O principal objetivo
do grupo era oferecer ao público informações e análises qualificadas sobre os
jogos, para que tirasse as próprias conclusões. “As pessoas estavam sedentas
por informações que nós estávamos felizes em fornecer”, resume.
Ela conta que ouvia muitas críticas no começo. “As pessoas diziam ‘Você não devia fazer isso’, ‘Essa é uma má ideia’, ‘Isso vai prejudicar sua carreira’”. No entanto, isso não a impediu de seguir em frente. “Eu sentia que era a coisa certa a se fazer.”
O No Boston Olympics era contra o evento
principalmente por causa do alto custo pago pela população. “Todas as
Olimpíadas nos últimos 60 anos custaram mais do que o previsto no orçamento.
Esses são recursos públicos escassos e preciosos que poderiam ser mais bem
utilizados em áreas mais importantes, como educação, habitação e transporte, em
vez de em um evento de três semanas”, diz Kelley.
Cheque em branco
Ainda que o plano do Boston 2024 previsse só
recursos privados, o Comitê Olímpico Internacional exige que as cidades-sede
paguem pelos gastos acima do previsto – uma espécie de cheque em branco
assinado pelos contribuintes. A exigência do COI está no contrato firmado com a
cidade-sede e funciona como uma garantia de que a Olimpíada vai acontecer,
mesmo que à custa da população.
O economista Andrew Zimbalist, autor do livro
“Circus Maximus: O jogo econômico por trás das Olimpíadas e da Copa do Mundo”,
estimou em um artigo publicado na revista da Universidade Harvard que cada
Olimpíada custa, em média, 252% a mais do que o previsto. Os jogos de Londres
de 2012, por exemplo, custaram US$ 18 bilhões, e a previsão inicial eram U$S 6
bilhões. Segundo ele, isso acontece porque as cidades-sede apresentam propostas
com orçamentos baixos demais para ganhar o apoio do público – que irá pagar o
excesso depois.
“O orçamento foi pensado assim para parecer que os
jogos seriam acessíveis e que não haveria déficits para a população cobrir”,
avalia ele, sobre a proposta de Boston. “[O Boston 2024] precisava de apoio
político do governador e da atual legislatura e precisava que os cidadãos
fossem a favor do plano. Para convencê-los, tentaram fazer parecer que o plano
era economicamente viável, mas ele nunca foi”, analisa o economista em
entrevista à Pública. Ele criticava, por exemplo, a proposta de construir
estruturas esportivas temporárias. “Em teoria, a justificativa para sediar a
Olimpíada é que você gasta muito dinheiro, mas depois você fica com coisas que
você quer e precisa. Se elas são todas temporárias, não sobra nada”, resume.
O No Boston Olympics argumentava que o COI exigia
um cheque em branco assinado pelos contribuintes. A imagem acima foi usada em
campanhas da organização. Foto: Reprodução/Twiter No Boston Olympics.
Além dos US$ 4,7 bilhões de custos operacionais que
viriam do Boston 2024, eram esperados US$ 3,4 bilhões da iniciativa privada
para as obras, US$ 1 bilhão do governo federal para cobrir custos de segurança
e US$ 5,2 bilhões que seriam direcionados para obras de infraestrutura que já
estavam previstas no orçamento da cidade e do governo do estado. “Não dava para
acreditar nos números. Na primeira versão do plano, eles diziam que US$ 5,2
bilhões seriam gastos em infraestrutura. Mas o líder do comitê de transportes
da Câmara dos Deputados disse que seriam necessários cerca de US$ 13 bilhões”,
acrescenta Zimbalist.
Robert Boland, professor de Administração em
Esportes da Universidade de Ohio, acredita que o Boston 2024 não conseguiu
deixar claros os potenciais benefícios de sediar a competição. “Um dos desafios
para vencer o concurso e sediar um megaevento é identificar o bem público que
isso trará. E também é preciso constatar as vantagens concretas que isso trará
no longo prazo”, ele explica. No caso de Boston, diz, “claramente não havia um
plano atraente para as pessoas”.
“Outro grande problema foi que, quando Boston foi
escolhida pelo USOC, o plano para os Jogos Olímpicos não tinha sido divulgado.
Então ninguém sabia o que eles iam fazer. Era só ‘acredite na nossa palavra,
nós temos um bom plano que não vai custar dinheiro público’”, diz Zimbalist. Os
documentos que detalhavam o plano foram divulgados pouco a pouco, graças à
pressão da população, de políticos locais e da mídia, que fez vários pedidos
por meio da lei de acesso à informação americana.
No Boston Olympics: ativismo online e presencial
Enquanto o Boston 2024 escondia seus documentos, a
tática do No Boston Olympics era disponibilizar informações para jornalistas e
para o público.
Apoiadores do No Boston Olympics pedem habitação e
transporte, em vez de Olimpíadas. Foto: Reprodução/Twiter No Boston Olympics.
A conta no Twitter e a página no Facebook estavam
sempre repletas de dados e análises. “As mídias sociais ajudaram a amplificar
os argumentos que a oposição estava tentando trazer para um público maior”,
observa Jules Boykoff, professor da Pacific University Oregon e estudioso dos
movimentos sociais relacionados às Olimpíadas.
O grupo usou estratégias diversas para divulgar sua mensagem. “Nós ficamos associados com as mídias sociais, mas também escrevemos editoriais, fizemos comentários em rádio e em outros canais de comunicação, demos respostas para reportagens, demos informações para legisladores que tinham perguntas”, conta Gosset.
Boykoff diz que foi uma estratégia poderosa. “É
impressionante como eles influenciaram a discussão nos círculos midiáticos
tradicionais. Se você olhar a cobertura dos jornais Boston Herald, Boston Globe
e outros, percebe pelo jeito que os jornalistas escreviam as matérias que eles
estavam seguindo esses grupos no Twitter.” No entanto, essa estratégia foi
combinada com táticas mais tradicionais, como reuniões com a população,
prefeito, governador e até mesmo com o Boston 2024. “A mistura entre fazer
ativismo online e comparecer a reuniões é parte do nosso momento
contemporâneo”, diz Boykoff.
Walsh recua
A oposição vocalizada por ativistas, pelas redes
sociais e pela mídia tradicional cresceu tanto que o Boston 2024 não podia mais
ignorá-la. Em março de 2015, o grupo anunciou que faria um referendo sobre o
tema. Mas não deu tempo. Em julho, mais da metade da população se dizia contra
a realização da Olimpíada em Boston.
A falta de apoio deixou o prefeito Marty Walsh em
uma situação desconfortável. Inicialmente defensor da Olimpíada, ele estava
sendo pressionado para firmar o contrato de cidade-sede, o que selaria seu
compromisso de que a população arcaria com todos os custos extras dos jogos.
Em 27 de julho, Walsh se recusou a assinar o
contrato. “Eu não vou assinar um documento que arrisque nenhum dólar do
dinheiro dos contribuintes para cobrir custos excedentes na Olimpíada”, disse à
imprensa. Horas depois, o USOC e o Boston 2024 decidiram retirar a candidatura
de Boston.
Ativismo anti-Olimpíadas no mundo
Depois do que aconteceu em Boston, o Comitê
Olímpico Americano escolheu Los Angeles para representar os Estados Unidos no
concurso para sediar os jogos de 2024. Também competiam Hamburgo, Roma,
Budapeste e Paris.
No entanto, a oposição à Olimpíada está se
espalhando e ganhando fôlego também nessas cidades. E o sucesso tornou o No
Boston Olympics uma referência.
Moradores de Boston levantam cartazes contra as
Olimpíadas de 2024 em reunião do No Boston Olympics. Índice de rejeição aos
Jogos chegou a 53% da população. Foto: Reprodução/Twiter No Boston Olympics.
Em novembro do ano passado, Hamburgo decidiu que
não iria mais ser a candidata alemã após um referendo mostrar que 52% da
população era contra. O No Boston Olympics esteve lá em outubro de 2015, a
convite dos ativistas alemães. “Foi maravilhoso. Nós discutimos a importância
das mídias sociais, da pesquisa que nós criamos”, conta Kelley Gosset.
Já em Roma, o grupo de esquerda Radicali Italiani
começou uma campanha no início deste ano para levar a questão para as urnas. Ativistas
em Budapeste buscam o mesmo. “Eles entraram em contato com a gente”, revela a
codiretora do No Boston Olympics. “Por enquanto, é uma conversa preliminar, e o
interesse deles é no nosso trabalho, na nossa história e nas lições aprendidas.
Essa conexão é importante porque dá continuidade a um mergulho nas análises
sobre as Olimpíadas que permite um olhar crítico para os custos e benefícios
para as cidades-sede.”
Para Jules Boykoff, a “atmosfera” que envolve os
jogos tem mudado. “Esse é o legado da Olimpíada de inverno em Sochi, na Rússia,
em 2014, quando o custo ultrapassou US$ 50 bilhões”, diz. “Há uma tendência
clara de populações em potenciais cidades-sede de estarem mais conscientes dos
possíveis lados negativos de sediar as Olimpíadas. As pessoas estão falando
sobre isso. Mais pessoas estão tendo a chance de dizer: obrigado, mas não,
obrigado.”
Fonte: Agência Pública
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