Aprender
com índios, uma boa experiência.
Menino Munduruku durante reunião do povo. Foto:
©Fábio Nascimento/Greenpeace
Por Washington Novaes*
Há alguns anos, o chefe indígena Atamai, que morava
na aldeia waurá, no Xingu, deslocava-se, como passageiro de um carro, por uma
via pública de Goiânia (episódio que talvez já tenha sido narrado neste mesmo
espaço, mas que vale a pena rememorar). Em certo momento, voltou-se para o
autor destas linhas e perguntou: “Por que caraíba (homem branco) cobre de
asfalto todo o piso de ruas e não deixa lugar pra terra respirar?”. Foi-lhe
dito que o asfalto servia para nivelar a terra, remover buracos e permitir mais
velocidade aos veículos. Mais adiante, ao passar por uma lombada na pista,
Atamai quis saber para que ela servia. E, ante a resposta de que servia para
obrigar motoristas a reduzirem a velocidade, de modo a não ameaçar pedestres e
evitar colisões, foi fulminante: “E por que caraíba, primeiro, cobre a terra
pra aumentar a velocidade dos carros e, depois, constrói calombos no chão e
obriga a reduzir a velocidade dos carros?”. Felizmente, chegávamos ao destino e
ele ficou sem resposta.
Respostas como essa, capazes de esclarecer
complexidades do nosso mundo, continuam sendo buscadas em todos os lugares, por
estudiosos de todos os setores do conhecimento, além de fazerem parte dos
questionamentos de todas as pessoas. Ainda há pouco tempo, o Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) lançou o livro Megatendências Mundiais 2030,
em que reúne o pensamento de entidades e personalidades internacionais sobre “o
futuro do mundo” daqui a uma década e meia. E ali está dito o que neste tempo
deve moldar o panorama mundial nas áreas de população, geopolítica, ciência e
tecnologia, economia e meio ambiente. “Muitos dos problemas que enfrentamos
hoje é porque no passado não olhamos para o futuro no longo prazo. Ou não nos
preparamos para evitar que ocorressem ou para que estivéssemos mais bem
preparados para essa ocorrência”, escreveu a professora Elaine Coutinho
Marcial, que organizou a edição (Eco-Finanças, 16/10/2015).
O pensamento e a ação concreta dos colonizadores, a
pequena escala dos problemas, certamente, os levaram a desconsiderar o modo de
se organizar e de viver das culturas indígenas em todo o território brasileiro.
E chegamos aonde chegamos. O fato é que, como lembra o Ipea no livro sobre as
megatendências mundiais, “o modelo econômico vigente, associado ao
comportamento dos cidadãos e dos países, é agressivo ao meio ambiente, provoca
a poluição do ar, desmatamento, perdas ecossistêmicas nos meios marinho e da
costa, enfim, degradação, de forma geral”. Pensam os autores do livro que, “se
não houver ruptura nos padrões de consumo e diminuição na geração de resíduos,
esse modelo continuará conduzindo à escassez de recursos naturais nos próximos
anos”.
É um bom momento, então, para que nos debrucemos
sobre os formatos de vida entre povos indígenas – há muita documentação sobre o
passado e ainda se encontram no Brasil cerca de 1 milhão de índios, de 305
etnias, falando 274 línguas em mais de 500 terras reconhecidas. No mundo são
mais de 5 mil povos.
E, de fato, no Brasil as perdas são gigantescas.
Produzimos mais de 250 mil toneladas diárias de lixo, que são inteiramente
desperdiçadas. O lixo orgânico (metade do total) poderia ser reaproveitado de
muitas formas, a começar pela compostagem que o transforma em adubo. Os
resíduos da construção civil, dos quais quase nada se fala, têm um volume
superior ao dos domiciliares. A reciclagem é ínfima. Valeria a pena, nesta
hora, visitar uma aldeia indígena que, isolada, ainda mantenha os modos de vida
dos antepassados – para ver se ali se produz lixo. Ou o que acontece quando uma
aldeia cresce muito e decide se separar em duas, também para não ameaçar os
modos de vida – e assim aconteceu, por exemplo, no Xingu, com os waurá. Também
se poderá ver a questão do poder: o chefe não dá ordens; ele é o que mais sabe
da cultura de seu povo e é procurado sempre para saber o que pensa – mas não dá
ordens a ninguém. Cada morador da aldeia planta e colhe alimentos e pesca para
os que com ele vivem. Mas, se alguém lhe der ordens, vai achar graça. O
conhecimento é aberto: o que um sabe todos podem saber. São questões descritas
e estudadas com muita competência por Pierre Clastres em seu livro A sociedade
contra o Estado.
Mesmo que se saiba de tudo isso, continuamos a
colocar como centro de tudo o cálculo do chamado Produto Interno Bruto (PIB) –
a soma, em valores monetários, dos bens e serviços finais produzidos em certo
período (ano, em geral) – e compará-lo com outro ano, ou com outro país. E isso
determinaria se um país é rico, médio ou pobre. Não leva em conta nada do meio
ambiente, nada da cultura. E isso tem implicações fortes na política e na
relação entre países ou regiões.
Um país como o Brasil tem muitos privilégios –
território continental (só na Amazônia, milhões de quilômetros quadrados), sol
durante todo o ano, quase 12% dos recursos hídricos do planeta, biodiversidade
extraordinária, clima ameno, mais de 7.300 quilômetros de costa marítima, possibilidade
de matriz energética “limpa”, sem emissão de gases que acentuam mudanças
climáticas, etc. Mas nada disso é considerado para o PIB. O desmatamento
amazônico voltou a crescer no ano passado (474 quilômetros quadrados).
Desperdiçamos uma fatia considerável dos alimentos que produzimos, embora
tenhamos em torno de 40 milhões de brasileiros que vivem na pobreza extrema – a
renda é fortemente concentrada. A população junta-se cada vez mais em grandes
cidades, onde os problemas crescem exponencialmente. Multiplicam-se os
conflitos com populações indígenas, quase sempre em disputa de suas terras.
É claro que não faz sentido propor que voltemos
todos a viver como índios. Mas pelo menos veremos com clareza os nós que nos
engasgam.
* Washington Novaes é jornalista.
Fonte: O Estado de S. Paulo
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