Costura
de retalhos.
Imagem: Flávia Sakai
A visão que separa a natureza da agricultura
apresentou sua conta. Para não retroceder, a produção convencional aos poucos
se aproxima de técnicas mais amigáveis ao ambiente.
Por Janice Kiss, da Página 22 –
Desde que o homem interveio na natureza e inventou
a agricultura, essa atividade somou importantes conquistas em sua trajetória
milenar, com plantas mais produtivas, colheitas fartas e sofisticadas
tecnologias. Mas qual o preço do sucesso?
No Brasil, esse custo ficou mais claro em 2006,
segundo o sociólogo Ricardo Abramovay, professor sênior do Instituto de Energia
e Ambiente da Universidade de São Paulo (IEE, na sigla em inglês). “Foi quando
a sociedade se deu conta do avanço das lavouras de soja na Amazônia”, comenta.
O professor se refere à moratória da soja, acordo
entre o setor produtivo e ambientalistas para barrar os embarques
internacionais da oleaginosa cultivada na região. Dois anos antes do pacto, a
Amazônia havia atingido seu recorde de desmatamento em razão da expansão desses
plantios.
A partir daí, os agricultores passaram a lidar com
o surgimento de várias “pontes” criadas para aproximar e compatibilizar
agricultura e conservação ambiental. “Até porque não existe atividade humana
mais inserida no meio ambiente que a agricultura”, lembra José Eli da Veiga,
professor sênior do IEE-USP.
A mais recente delas é o Cadastro Ambiental Rural
(CAR), instituído no âmbito do novo Código Florestal e que prevê o mapeamento
georreferenciado de todas as propriedades rurais brasileiras, independentemente
do tamanho. O prazo para a inscrição dos imóveis termina em maio. A ferramenta
é considerada um avanço na gestão territorial do País, porque associa o
cadastro à regularização ambiental da propriedade. “É uma segurança para o
produtor, que tem sua área reconhecida e chances de se programar em casos de passivo
ambiental, o que não pode ser feito do dia para a noite”, comenta Gustavo
Junqueira, presidente da Sociedade Rural Brasileira (SRB).
Até o momento, cerca de 2,25 milhões de imóveis
rurais do País (65% das propriedades) inscreveram-se no CAR, que conta com
menor adesão das propriedades do Sul e do Nordeste. “Avalio esse dado mais como
dificuldade de preenchimento do que resistência ao cadastramento”, afirma
Junqueira.
Novos tempos, novas cobranças
O presidente da SRB faz parte da nova geração de
produtores rurais que soube entender as influências de temas socioambientais no
campo e procurou conciliar-se com eles. “A velha narrativa de ocupação de
território não cabe mais nesse modelo”, afirma.
Outra dessas “pontes” aconteceu há seis anos, com a
criação do Plano ABC (Agricultura de Baixo Carbono), do governo federal. O
plano permite que o produtor tenha acesso a tecnologias agrícolas que
interferem de forma benéfica no clima – a atividade é considerada uma das
principais emissoras de gases de efeito estufa –, como a recuperação de
pastagens degradadas, integração entre lavoura, pecuária e floresta em oposição
às monoculturas, tratamento de dejetos animais etc.
Mesmo com percalços, como as taxas de juro que
subiram de 5% para 8%, e as dificuldades em extensão rural para uma melhor
orientação do produtor sobre essas tecnologias, o programa atingiu R$ 3,65
bilhões (8 mil contratos) no ciclo 2014/2015: 35,67% maior em relação à safra
2013/2014.
“O ABC é de longe o mais bem-sucedido modelo de agricultura tropical
do mundo, mas falta avançar”, reconhece Roberto Rodrigues. O ex-ministro da Agricultura está à frente do Centro de Estudos do
Agronegócio da Fundação Getulio Vargas (GVAgro), que coordena o Observatório
ABC.
Ainda não foi possível averiguar o impacto dos
recursos contratados na redução das emissões de gases-estufa por falta de
monitoramento. Porém, o Observatório estima que, de 2012 até 2023, o potencial
de mitigação da agropecuária brasileira pode chegar a 1,8 bilhão de toneladas
de CO2 equivalente. O número é dez vezes maior do que a meta de
redução de emissões estipulada pelo Plano ABC e inclui apenas a adoção de três
tecnologias de todo o plano – recuperação de pastagens; integração
lavoura-pecuária; e lavoura-pecuária-floresta.
Do seu escritório em Cingapura, Marcos Jank,
especialista global em agronegócio, avalia essas evoluções como um caminho
natural da atividade. “Uma agricultura de alta tecnologia, sem deixar de lado a
conservação, é a saída para produzir alimentos para um mundo cada vez mais
populoso”, diz.
Ele cita como exemplo a fazenda da família,
produtora de leite tipo A, em Descalvado (SP). Na propriedade, o esterco do
gado é tratado de forma adequada para adubar áreas de pastagens e grãos. Os
cultivos de milho, soja e laranja são irrigados apenas quando os termômetros
acusam a necessidade de água. “Usamos a tecnologia para o melhor uso da terra”,
comenta.
Na sua opinião, há tempos o agronegócio tem dado sinais
de que se utiliza de “pontes” com o meio ambiente para conseguir resolver a
equação de escala de produção sem ampliação de área. “O país investiu muito em
melhoramento genético de grãos e animais para alcançar eficiência”, diz Jank.
O diretor do GVAgro Roberto Rodrigues corrobora o
argumento do executivo ao exemplificar que, nos últimos 25 anos, a área de
grãos no País cresceu 53% e a produção 250%. O mesmo aconteceu com a produção
de carnes – a bovina, por exemplo, aumentou em 100%, enquanto a área de
pastagem diminuiu 20%.
Embora esses índices sejam caros ao agronegócio, o
professor José Eli da Veiga atenta que o alcance da maior produtividade tem
alicerces em uma agricultura baseada no uso excessivo de agrotóxicos (o Brasil
é o maior consumidor global desses produtos) e de fertilizantes nitrogenados
(principal nutriente das plantas) nas lavouras. “A presença excessiva de
nitrogênio no solo já se tornou um problema ambiental em muitos países,
inclusive com a poluição de lençóis freáticos”, informa.
A pecuária também é um assunto delicado para o
setor, pois é apontada como uma das principais razões para a intensificação do
desmatamento ilegal. A atividade ocupa hoje 200 milhões de hectares do
território nacional, e destes 70 milhões de hectares estão localizadas na
Região Amazônica. Na avaliação de Abramovay, do IEE, “são traços de um velho
Brasil que nem de longe despareceu”, afirma.
Esse país arcaico, que restringe a ligação entre
produzir e conservar, mostrou-se presente no novo Código Florestal, segundo o
engenheiro agrônomo José Carlos Pedreira de Freitas, diretor da Hecta
Desenvolvimento Empresarial nos Agronegócios. “O Código Florestal, ao
diferenciar áreas de exploração de áreas de conservação, aprofundou a atual
cisão que erroneamente existe entre produzir e conservar. Deveria ter
construído pontes entre as duas e não individualizar os dois territórios”, diz.
O clima no meio do caminho
Enquanto o Plano ABC procura alcançar mais espaço
no campo, o programa recebe reforços de outras frentes. Criada há quase um ano
e meio, a Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura tem por
objetivo tornar a agropecuária de baixo carbono majoritária em todo o País.
“Vivemos o momento da segunda onda da agricultura, voltada para a
sustentabilidade e a integração das atividades”, diz Luiz Cornacchioni,
diretor-executivo da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag) e membro da
Coalizão.
Na avaliação de Juliana Cibim, professora de MBA de
Meio Ambiente e Agronegócio na Fundação Getulio Vargas (FGV), os produtores rurais
de hoje enfrentam muito mais cobranças e situações complexas que as gerações
anteriores. “Eles fazem uma agricultura inserida em um cenário de mudança
climática”, diz ela, que também é coordenadora-executiva do Instituto
Democracia e Sustentabilidade (IDS).
Eduardo Assad, pesquisador da Embrapa, trata desse
tema desde 2008, quando coordenou o primeiro relatório da empresa sobre os
efeitos do clima na agricultura. Ele contribuiu também com o documento que
avaliou os reveses das mudanças nas temperaturas: Brasil 2040 – Alternativas de
Adaptação às Mudanças Climáticas, feito em parceria por diversos grupos de
pesquisa e encomendado pela Secretaria de Estudos Estratégicos da Presidência
da República (SAE).
A meta do trabalho é entender como o clima pode
afetar o Brasil no futuro e servir como ferramenta para embasar políticas
públicas de adaptação nas áreas da saúde, recursos hídricos, energia,
agricultura e infraestrutura.
Publicado no fim de 2015, o estudo revela que
importantes cultivos como soja, milho, arroz e feijão tendem a sofrer mais que
outras plantações por causa do aquecimento do clima daqui a 25 anos, quando as
altas temperaturas podem não poupar as fases de floração e enchimento dos
grãos, primordiais para boas colheitas. “Os impactos recairão sobre produtores
e consumidores”, comenta Assad, um dos principais especialistas em mudança
climática no País e também envolvido com o Plano ABC.
Mas não é apenas isso. As terras no Mapitoba
correm o risco de desvalorização em decorrência da possibilidade de os cultivos
migrarem de altas temperaturas, já típicas da região, para lugares mais frios.
As perdas nacionais no campo decorrentes da reviravolta no clima já foram
calculadas em US$ 4 bilhões em 2050, conforme outro levantamento, Impactos
das Mudanças Climáticas na Produção Agrícola Brasileira, coordenado por
Assad.
O setor de soja arcará com cerca de 50% delas. Por
sinal, a oleaginosa apresenta sinais de não aguentar tanta secura. O Mato
Grosso – principal produtor do grão – perdeu 1 milhão de toneladas na safra
2015/16 por causa da estiagem. “O levantamento se baseia no cenário atuatual,
caso nada seja feito para alterá-lo”, diz Assad.
Tudo junto e misturado
O diretor da Hecta entende que os temas que dominam
a agricultura têm mudado não apenas porque os tempos são outros. “Há uma
pressão do consumidor sobre a origem dos produtos”, afirma Pedreira. O
consultor cita como exemplo o turismo rural, como os da Fazenda da Toca, em
Corumbataí (SP), e da Fazenda Santa Adelaide, em Morungaba (SP), que abrem suas
porteiras para mostrar a rotina no campo para quem vive distante dele.
Segundo Pedreira, a evolução da agricultura
orgânica, vista com certo descrédito décadas atrás, tem a ver com esse
comportamento. “Por trás do produto sem agrotóxico há uma relação bem-sucedida
entre cultivo de alimentos e meio ambiente. Conforme dados do Organics Brasil,
esse mercado cresceu 25% no ano passado, em comparação a 2014, movimentando R$
2,5 bilhões. “Ainda é um nicho por uma questão de falta de renda no País”, diz
o diretor.
E uma coisa puxa a outra. Segundo a Associação
Brasileira das Empresas de Controle Biológico (ABC Bio), a indústria de
defensivos agrícolas biológicos cresce entre 15% e 20% ao ano.
A entidade aponta como principal razão uma nova
mentalidade dos produtores, que buscam uma agricultura mais sustentável e
valorizam o manejo integrado de pragas.
Há 25 anos, quando começou a trabalhar com
agrofloresta, o pesquisador Marcelo Arco-Verde, da Embrapa Florestas, sabia que
resistência era o principal obstáculo a ser enfrentado ao apresentar essa forma
de cultivo para o agricultor. “Plantar em meio a árvores era coisa de maluco na
época”, relembra.
Arco-Verde entende que a agrofloresta tem ainda
outra vantagem: a de poder ser instalada em áreas de Reserva Legal. “É um modelo
perfeito para entrar na recomposição de 57 milhões de hectares exigida pelo
Código Florestal”, diz.
Embora não existam estatísticas que possam
dimensionar a extensão desse cultivo, o pesquisador explica que esse modelo
agrícola está espalhado por todo o País, de forma mais acentuada na Amazônia.
“Nunca vai concorrer com a agricultura de escala. Mas a diversificação faz bem
a todo mundo, à terra e ao produtor”, afirma.
Fonte: Página 22
Nenhum comentário:
Postar um comentário