A arte de redesenhar a paisagem perdida.
Esta é a segunda de uma série de reportagens
sobre restauração florestal, em parceria da Página 22 com o projeto MapBiomas.
Por Sérgio Adeodato, da Página 22 –
Castigada desde o período colonial, a Mata
Atlântica reinventa-se por meio da restauração florestal voltada para a oferta
de recursos hídricos.
Ao alto, as imagens de satélite processadas por
tecnologia do Google retratam a Represa de Itaipu e seu entorno em 1985 e 2015.
Abaixo, mostram a região Noroeste do Paraná e a cidade de Umuarama. São
exemplos de como o projeto MapBiomas estudará as várias paisagens brasileiras,
ano a ano. “O objetivo é entender de forma mais clara e rápida a relação entre
o uso do solo e as emissões de carbono, estimando, por exemplo, os impactos da
perda ou recuperação de floresta”, explica Marcos Rosa, diretor da empresa de
geoprocessamento ArcPlan. O método permite detectar áreas de solos expostos e o
nível de qualidade da floresta.
As imagens de satélite não deixam dúvidas. No
pedaço mais a oeste do território paranaense, na fronteira com o Paraguai, o
tom verde que contorna os meandros de um grande lago de 1,3 mil quilômetros
quadrados tornou-se bem mais intenso e robusto, em relação ao que se via há 30
anos. O atual traçado encorpado retrata o esforço de reconstrução da paisagem
natural em território já bastante alterado pelo agronegócio – um exercício que
tende a avançar no País, em razão do cumprimento do Código Florestal e das
metas decorrentes do combate à mudança climática, e tem na Mata Atlântica, o
mais rico e populoso bioma brasileiro, uma peculiaridade vital: a conservação
da água.
Em campo, constata-se de perto a realidade dos
dados de satélites, processados pelo projeto MapBiomas [1]
para o entendimento sobre as dinâmicas de uso da terra nas diferentes regiões
do País. Estamos na margem da Represa de Itaipu, a principal usina hidrelétrica
[2] brasileira, situada no Rio Paraná, em Foz do Iguaçu (PR), ponto
central de uma iniciativa de restauração florestal que abrange 29 municípios e
comprova que o desafio vai muito além do plantio de mudas em larga escala.
De lado a lado nas estradas percebe-se o
resultado de um trabalho de visão holística em silvicultura, integrado à
mobilização de prefeituras e da sociedade civil, com planejamento baseado em microbacias
hidrográficas [3]. “A estratégia a partir desses territórios permite
recuperar nascentes e reflorestar a beira de rios de forma mais eficiente,
respeitando o modo natural de como a paisagem está originalmente planejada para
manter o equilíbrio ecológico”, explica Nelton Friedrich, diretor de
coordenação e meio ambiente da Itaipu Binacional.
No projeto “Cultivando Água Boa [4]”,
foram plantados até o momento cerca de 20 milhões de árvores nativas da Mata
Atlântica para a reposição de uma faixa de 1,4 mil quilômetros de mata
ciliar [5], em parceria com municípios e produtores rurais, grande
parte da agricultura familiar, dentro do princípio de que a responsabilidade
deve ser compartilhada por todos. “Não se trata apenas de plantar, mas de
quebrar paradigmas da educação formal, desenvolver valores éticos e compreender
o contexto e o potencial da restauração”, ressalta o diretor. “Mais do que
conquistar e acumular, é preciso cuidar.”
Construída entre 1975 e 1982 durante o governo
militar, Itaipu alagou uma extensa área onde existia floresta, fez desaparecer
o belíssimo Salto de Sete Quedas e toda ação para compensar esses e outros
impactos pode parecer pouca. Mas os olhares estão no futuro. Diante dos riscos
da mudança climática, proteger a água pode ser garantia de sobrevida para o
próprio negócio da geração hidrelétrica no longo prazo. Em paralelo, benefícios
são gerados para toda a região, inclusive na geração de renda por pequenas atividades
produtivas [6]. “Sem conflitos, estamos fazendo um resgate histórico
frente os danos causados pelo modelo de desenvolvimento, principalmente o
agrícola, que devastou o Paraná desde as décadas de 1960 e 1970”, diz
Friedrich.
O agricultor Arnaldo Gamba, dono de 682 hectares
de soja e milho no município de Santa Terezinha de Itaipu (PR), se recorda:
“Quando comprei a terra já com os cultivos, em 1985, os vizinhos queimavam
floresta e nem sequer aproveitavam a madeira; era um fogo só”. Nos últimos
anos, o fazendeiro deixou a mata se regenerar para a recuperação de seis
nascentes e espécies como jacu e jaguatirica retornaram à propriedade. “Antes
tínhamos gado até na beira do rio”, conta Gamba, ao mostrar, ali ao lado, a
torre do abastecedor comunitário de água.
Na lógica do ganha-ganha, os municípios fornecem
o sistema hídrico e, em troca, os produtores abrem mão de terras produtivas
para a regeneração do ambiente natural ou para o plantio de árvores, formando
conexões entre fragmentos florestais. Dessa forma, com apoio de viveiros locais
e o de Itaipu, que produz 900 mil mudas por ano, foi construído um corredor
verde de 37 quilômetros interligando reservas ambientais e áreas recuperadas ao
Parque Nacional do Iguaçu, com seus 1,8 mil quilômetros quadrados de Mata
Atlântica. O objetivo é proteger nascentes que drenam para a unidade de
conservação e favorecer tanto o trânsito da fauna como a dispersão vegetal, por
meio dos polinizadores. “Há um potencial muito maior para ampliar a junção
dessas peças”, afirma Veridiana Costa, engenheira florestal responsável pelo
projeto. Falta ainda plantar entre 8 milhões e 10 milhões de árvores para
recobrir o total do passivo rural mapeado na região.
Modelos de parcerias para a restauração florestal
se multiplicam no Sul do País. “Em decorrência do Cadastro Ambiental Rural
(CAR) e do debate sobre o Programa de Regularização Ambiental (PRA) [7],
a procura por mudas cresceu muito por parte de produtores antes resistentes,
mas a onda poderia ser maior se houvesse maior estímulo por políticas
públicas”, enfatiza Miriam Prochnow, secretária-executiva do Diálogo Florestal,
rede que agrupa empresas, organizações ambientalistas e movimentos sociais para
ampliar a escala da conservação e da restauração de ambientes naturais. No
Paraná e em Santa Catarina, uma área total equivalente a 320 campos de futebol
recebeu mudas nativas do projeto Matas Legais [8], grande
parte em terras de pequenos produtores que fornecem eucalipto para uma
indústria de papel, a Klabin.
O tema avançou na agenda climática global
[9]. “Além disso, o atual cenário brasileiro, com leis e regras mais
claras, é favorável a uma mudança de escala na reposição de florestas”, avalia
Beto Mesquita, diretor de estratégia terrestre da Conservação Internacional e
integrante do Pacto pela Restauração da Mata Atlântica. A iniciativa, lançada
há seis anos, tem meta de recobrir 15 milhões de hectares até 2050. Até o
momento, foram alcançados apenas 60 mil hectares, o que indica o grau do
desafio pela frente. A falta de capacitação dos viveiros, na visão de Mesquita,
é uma barreira. Ferramentas técnicas foram desenvolvidas como suporte à
empreitada e agora, diante do potencial de crescimento, está sendo criado um
protocolo de monitoramento para as áreas de restauração – referência destinada
a instituições, promotorias de meio ambiente e governos estaduais, como o do
Espírito Santo, que se destaca na atividade.
No Programa Reflorestar, voltado para a
conservação do solo e da água, o governo capixaba aumentou a cobertura de
vegetação nativa de 12% para 16% do território, em quatro anos, e pretende
atingir 18% até 2018. A iniciativa tem como pilar o Pagamento por
Serviços Ambientais (PSA) [10], em que os produtores rurais recebem
insumos e são remunerados por restaurar e conservar a floresta em pé em áreas
de importância ecológica, como a Bacia do Rio Doce, atingida pela lama da
mineradora Samarco.
O método prevê plantio de mudas, adoção de
sistema que alia silvicultura e pastagem e enriquecimento de capoeira, a
vegetação secundária composta por gramíneas e arbustos. Os recursos provêm do
Fundágua, fundo estadual que hoje tem R$ 60 milhões de royalties do petróleo
para investimento em floresta. “Trata-se de uma importante referência para o
País atingir suas metas climáticas e avançar na economia verde”, destaca Rubens
Benini, coordenador de articulações em restauração da The Nature Conservancy
(TNC), instituição que dá apoio técnico à iniciativa.
No Rio de Janeiro, o governo estadual mapeou
neste ano as áreas estratégicas para o desenvolvimento da economia florestal.
Hoje apenas 0,4% do território fluminense está coberto por árvores plantadas.
Na Bacia do Rio Guandu, responsável pelo abastecimento da capital, 600 hectares
estão em restauração. Há, no entanto, a necessidade de se encontrar métodos
mais baratos e eficientes. Não há uma receita única e pronta; tudo depende do
tipo de paisagem e do grau de degradação. “É alta a complexidade e, para ter
sucesso financeiro e ambiental, o trabalho deve estar integrado à produção
agrícola”, adverte Ricardo Rodrigues, professor da Esalq (USP), em Piracicaba
(SP). Para o pesquisador, “a Mata Atlântica, ocupada sem nenhum planejamento
ambiental e agrícola, deve agora contar uma nova história”.
E tudo indica que a ideia já chegou ao setor
empresarial há algum tempo. Em Itu (SP), a fabricante de bebidas Brasil Kirin
escapou da recente crise hídrica após reflorestar mais de 300 hectares ao redor
de seus mananciais, nos últimos oito anos. O plantio de mudas, de quase 100
espécies nativas, produzidas no viveiro mantido na área pela Fundação SOS Mata
Atlântica, recuperou 19 nascentes, aumentando em 5% a oferta de água
superficial e em 20% a subterrânea. Também naquele município, as fazendas
Ingazinho, Jequitibá e Capoava substituíram a pecuária de baixa produtividade
por 300 hectares de floresta para exploração econômica de espécies frutíferas,
ornamentais e, principalmente, madeireiras – caso em que a taxa de retorno do
investimento chega a 12%, quatro vezes mais que a antiga criação de gado. Em
quatro anos, o projeto, sob a liderança da empresária e socióloga Neca Setubal,
mudou a paisagem da região e agora parte da área está sendo loteada e
estruturada como um inédito condomínio florestal, destinado a moradores que
queiram utilizar a madeira com fins econômicos.
Os investimentos em plantios florestais tendem a
aumentar, devido ao apelo da mudança climática e às perspectivas de retomada do
mercado voluntário de carbono. Em Porto Seguro, no Sul da Bahia, a novidade
está na iniciativa financiada com recursos da loteria oficial da Suécia para a recuperação
de 20 hectares em área de pecuária e eucalipto, em parceria com uma ONG local,
a Natureza Bela.
Embora pequena, a ação se integra à retomada do plano de
formar um corredor ecológico ligando dois parques nacionais históricos: o do
Monte Pascoal e do Pau-Brasil. Assim, quem sabe, a região onde no século XVI os
portugueses começaram a ocupar – e a devastar – o território conquistado poderá
tornar-se conhecida menos pelo “descobrimento” e mais pelo “recobrimento” do
Brasil.
Referências
[1] Iniciativa do SEEG/Observatório do Clima que
produzirá mapas anuais da cobertura do solo no Brasil, com dados desde 1985.
[2] A Itaipu Binacional é a segunda maior
geradora de energia hidrelétrica do mundo (2,3 bilhões de MWh), atrás da Usina
Três Gargantas, na China. Fornece 15% da energia consumida no Brasil e 75% no
Paraguai.
[3] A Bacia Hidrográfica do Rio Paraná III
abrange 194 mil microbacias em 8 mil quilômetros quadrados, com 1 milhão de
habitantes.
[4] O projeto instalou mais de 1,3 mil
quilômetros de cercas para proteção de nascentes e plantou 3,5 milhões de mudas
em propriedades rurais da região, sem contar as cultivadas na borda da represa,
o que representa a captura 733 mil toneladas de carbono por ano.
[5] Vegetação nativa da beira dos rios que regula
a erosão e tem a função de proteger a água, assim como os cílios em relação aos
olhos.
[6] Baseado na promoção do associativismo,
assistência técnica e extensão rural, o projeto resultou em 103 arranjos
produtivos, como a produção de mel de abelhas que povoam as matas recuperadas.
[7] Regulamentado pelo Decreto nº 8.235/2014,
trata da regularização das Áreas de Preservação Permanente e de Reserva Legal
mediante recuperação, recomposição, regeneração ou compensação.
[8] Participam do projeto 931 produtores rurais
paranaenses e catarinenses que recebem mudas e assistência técnica da
Associação de Preservação do Meio Ambiente e da Vida (Apremavi).
[9] A mudança de uso da terra emitiu cerca de 30
bilhões de toneladas de carbono (51% do total nacional de emissões) entre 1990
e 2014, segundo o SEEG Brasil.
[10] Cada produtor recebe até R$ 220 por hectare
ao ano, além do apoio para insumos que podem totalizar R$ 8 mil por hectare.
Foram cadastrados 1,5 mil proprietários, o que representa 6 mil hectares de
restauração.
Fonte: Página
22
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