Posse da
terra, difícil para mulheres.
Blanca Molina mostra algumas ervilhas orgânicas
recém-colhidas, em uma das quatro estufas que construiu com suas mãos em sua
pequena propriedade familiar em Villa Simpson, região de Aysén, no sul
patagônio do Chile. Foto: Marianela Jarroud/IPS.
As mulheres rurais da América Latina ainda
enfrentam grandes dificuldades com relação à posse da terra, o que as mantém em
uma situação de vulnerabilidade, apesar de seu peso crescente na produção de
alimentos e na segurança alimentar.
Por Marianela Jarroud, da IPS –
Santiago, Chile, 13/4/2016 – “As mulheres são o
grupo de pessoas com a maior vulnerabilidade diante da questão da posse da
terra”, afirmou à IPS a especialista Soledad Parada, assessora de Gênero do
escritório regional da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a
Agricultura (FAO), com sede na capital chilena.
Parada acrescentou que “durante longo tempo todas
aquelas atividades realizadas para melhorar a situação da posse da terra, em
geral, não levaram em consideração as mulheres”. Em consequência, “as mulheres
têm acesso à terra por herança ou porque lhe foi destinada por meio dos
programas de reforma agrária, mas em todos os casos saíram prejudicadas”,
acrescentou.
Como em outras regiões em desenvolvimento, a
agricultura familiar é a principal fornecedora de alimentos na América Latina,
e são as mulheres que entregam cerca de metade do que comem os 600 milhões de
habitantes da região. Estima-se que a América Latina acolhe aproximadamente 58
milhões de mulheres que vivem no campo, porém, apenas entre 8% e pouco mais de
30% delas possuem terras agrícolas.
Um estudo da FAO, realizado em seis países da
região, indica que a porcentagem de proprietárias chega a 32% no México, 27% no
Paraguai, 20% na Nicarágua, e apenas 14% em Honduras. Além disso, as mulheres
proprietárias possuem terrenos menores e terras de menor qualidade, têm menos
acesso a crédito, assistência técnica e capacitação.
“Para 98% dos que trabalham em assistência técnica
não ocorre visitar mulheres”, pontuou à IPS o especialista em posse da terra,
Sergio Gómez, consultor da FAO. E mais:“todos os processos formais devem ter a
assinatura do homem, do contrário a visita não vale, pois a propriedade está no
nome dele”, acrescentou.
A brecha de gênero na propriedade da terra está
historicamente relacionada com fatores como a preferência pelo masculino na
herança, os privilégios dos homens no casamento, a tendência a favorecer os
homens na distribuição da terra por parte das comunidades camponesas e indígenas,
e também dos programas estatais de redistribuição.A isto se somam os vieses de
gênero no mercado de terras.
Aura Canache, diante de um estábulo de ovelhas, em
seu pequeno terreno de menos de um hectare, a 130 quilômetros de Caracas, na
região agrícola de Barlovento, na Venezuela. A dificuldade de acesso a crédito
faz com que toda sua renda seja usada para manter sua propriedade. Foto:
Estrella Gutiérrez/IPS.
As mulheres, por todos esses motivos, “ficam
explicitamente de fora” quando o assunto é a propriedade da terra,destacou
Parada. No México, por exemplo, as mulheres das zonas rurais trabalham 89 horas
semanais, enquanto os homens trabalham apenas 58, uma situação que se repete na
região. Apesar disso, quase 40% dessas mulheres não têm renda própria, enquanto
somente 14% dos homens estão na mesma condição.
Essa desvantagem se agravou nos últimos anos,
quando a região experimentou um considerável aumento na porcentagem de
explorações agropecuárias a cargo de mulheres. Neste processo de feminização do
campo, o Chile está na liderança dos países latino-americanos e caribenhos, com
30% de suas explorações agrícolas nas mãos de mulheres, seguido de Panamá
(29%), Equador (25%), e Haiti (25%).Os países onde há um número menor de
explorações agropecuárias a cargo das mulheres são Belize (8%), República
Dominicana (10%), El Salvador (12%), e Argentina (12%).
Parada explicou que, nas últimas décadas, muitos
países da região realizaram modificações legais em relação ao acesso à terra,
com avanços para uma melhor e maior igualdade. É o caso da Nicarágua, onde
existe uma lei especial de destinação de terras para mulheres.“Em outros países
se avançou na legislação, em termos de colocar como condição que, se uma pessoa
é casada, os dois cônjuges devem ficar encarregados da terra, e que é
necessária a autorização de um e outro para realizar qualquer transação”,
detalhou a assessora da FAO.
Mas os avanços não foram suficientes,
principalmente devido ao fato de os direitos efetivos da terra levarem em conta
não apenas o aspecto legal, mas também o reconhecimento social desses direitos,
âmbito no qual persiste a desigualdade. “Tudo isso tem consequências
tremendas”, ressaltou Parada. “O fato de a terra estar majoritariamente em nome
dos homens, especialmente na agricultura familiar, na pequena agricultura,
significa uma barreira enorme para as mulheres terem acesso a outros tipos de
benefícios”, ressaltou.
A chilena Alicia Muñoz, líder da Associação
Nacional de Mulheres Rurais e Indígenas (Anamuri), indicou à IPS que o direito
à posse da terra “é uma das lutas mais longas e maiores que temos. Buscamos o
reconhecimento do trabalho das mulheres, porque são as que lideram no campo, na
agricultura camponesa. O acesso à posse da terra é uma reclamação, uma
exigência de sempre das mulheres camponesas”.
As mãos laboriosas de Ivania Siliézar, com as
sementes melhoradas de feijão colhidas em seus três hectares no departamento de
San Miguel, no leste de El Salvador. Graças a essas sementes crioulas conseguiu
duplicar sua produção. Foto: Edgardo Ayala/IPS.
Para Muñoz, essa é uma “questão cultural” que os
países da regiãoenfrentam, e até agora não há solução. Assim, apesar do
trabalho para reduzir a brecha de gênero nos diferentes países
latino-americanos, “na agricultura são os homens que falam pelas
mulheres”.Nesse contexto, as diretrizes voluntárias sobre a governança
responsável da posse da terra, da pesca e das florestas no contexto da
segurança alimentar nacional, impulsionadas pelo Comitê de Segurança Alimentar
Mundial (CSA) para facilitar o diálogo e a negociação, propõem como um dos
princípios de aplicação o tema da igualdade de gênero.
De concreto, o documento aprovado em 2012 dentro do
órgão intergovernamental, afirma que os Estados deveriam assegurar que as
mulheres e as meninas tenham os mesmos direitos de posse e acesso à terra
independente de seu estado civil ou sua situação marital.Também diz que os
Estados “deveriam considerar os obstáculos concretos que as mulheres e as
meninas encontram com relação à posse da terra e aos direitos associados e
tomar medidas para garantir que os marcos jurídicos e de políticas proporcionem
uma proteção adequada a elas, bem como a aplicação e o cumprimento das leis que
reconhecem os direitos de posse das mulheres”.
Para o CSA é essencial garantir a participação das
mulheres em todos os processos de tomada de decisões, bem como o acesso delas,
em condições de igualdade, a terra, água e outros recursos naturais.Porém, para
que isso se concretize, é necessário que se promova a presença das mulheres nas
negociações, “seja pelo Estado ou pelos que se colocam de acordo para aplicar
as diretrizes, e aí a FAO tem um papel a desempenhar”, opinou Parada.
Muñoz concordou e afirmou que tanto “os governos de
plantão como a FAO têm que promover a participação das mulheres, do contrário
continuaremos na mesma”. E concluiu: “nós mulheres amamos a terra e a natureza,
somos muito positivas e responsáveis. O conhecimento da agricultura familiar
camponesa está nas mulheres, são elas que levam o campo no ombro. Já é tempo de
serem reconhecidas”.
Fonte: ENVOLVERDE
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