Minas
abandonadas ameaçam comunidades e ambiente.
Legislação e fiscalização ineficientes deixam o
maior estado minerador do país vulnerável à irresponsabilidade das empresas;
cinco minas, entre elas algumas abandonadas, estão classificadas como de risco
ambiental “muito alto”.
Por Thiago Domenici, da Agência Pública –
Minas abandonadas e paralisadas. Centenas delas.
Algumas com alto risco ambiental. O caso da Engenho D’Água, em Rio Acima (MG),
expõe a negligência em relação ao fechamento das minas, também chamado de
“descomissionamento”. A empresa Mundo Mineração Ltda. simplesmente abandonou a
exploração em 2012. Sem tomar nenhuma atitude para mitigar os impactos sociais
e ambientais do empreendimento.
Um levantamento divulgado em
janeiro pela Fundação Estadual de Meio Ambiente (Feam) coloca a Engenho entre
as cinco minas classificadas como de risco ambiental “muito alto”. Ou seja,
passíveis de causar impactos “muito expressivos” ao ambiente e à saúde humana e
de potencializar “os danos da atividade e de ocorrência de acidentes”. Estão na
mesma categoria a mina de ferro da Mutuca, em Nova Lima, da Vale S.A.; a mina
de areia Areial Três Munhos Eireli, em Ouro Preto; a mina de diamante da
Mineração São Geraldo do Barro Duro, em Diamantina; e a Mineração de Ferro
Geral do Brasil (ex-extrativa Paraopeba), no município de Brumadinho.
O documento registra 400 minas abandonadas ou
paralisadas, número que não se refere ao total do estado, podendo haver outras
tantas centenas. Com base nesses dados, a Pública elaborou um mapa interativo
onde estão indicadas as áreas definidas como de muito alta, alta, média, baixa
e muito baixa vulnerabilidade ambiental. Um mosaico preocupante da situação
minerária do estado, palco do rompimento da barragem de Fundão, da empresa
Samarco, que pertence à Vale S.A. e à BHP Billiton, em novembro do ano passado.
Do total de áreas vistoriadas entre 2014-2015, 169
foram confirmadas como abandonadas e 231 como paralisadas, e 134 foram
classificadas como paralisadas sem controle ambiental, muitas na categoria de
baixo e médio risco. Outras 97 estão paralisadas com controle ambiental, o que
equivale a 24% das minas. “É um modelo que não considera o ambiente, só a
economia; e o fechamento de minas é o problema que menos interessa”, critica
Maria Tereza Corujo, ambientalista do Movimento pelas Serras e Águas de Minas.
No caso da Vale S.A., são nove os empreendimentos
registrados no documento. Além da mina da Mutuca, de risco “muito alto”, outras
cinco são de risco final “alto”, e duas estão localizadas no município de
Mariana: a mina Del Rey e a Morro da Mina, nas imediações da tragédia mais
recente. O relatório afirma, no entanto, que as minas da multinacional estão
sob controle da empresa, o que significa que a vistoria identificou “a execução
de medidas de monitoramento ambiental”, embora essas medidas não estejam detalhadas
no documento.
Falhas na legislação
“Durante séculos, as minas foram simplesmente
abandonadas sem que seus efeitos fossem percebidos como merecedores de
preocupação”, diz Luis Enrique Sánches, professor titular de Engenharia de
Minas na Universidade de São Paulo. Segundo ele, as consequências ambientais e
socioeconômicas do fechamento de minas vêm sendo objeto de estudos e
regulamentação em várias partes do mundo. No Brasil, avalia, tanto a legislação
de mineração quanto a legislação ambiental são falhas ao tratar da questão.
“Ambas foram pensadas para abrir novos empreendimentos e para a fase de
instalação e funcionamento, e na fase de desativação e de fechamento definitivo
não existem orientações claras e detalhadas”, diz.
Na esfera estadual, Minas Gerais é o único ente
federativo a dispor de regulamentação sobre o tema. Desde 2008, a Deliberação
Normativa 127 obriga que um Plano Ambiental de Fechamento de Mina (Pafem) seja
apresentado dois anos antes da data programada para encerramento. Também dá
prazo de 180 dias para que o minerador apresente um Relatório Circunstanciado
sobre a paralisação da atividade minerária, mas nesse caso a empresa deve
apenas comunicar o fato e apresentar uma relação de medidas de proteção. Como
reconhece a Feam, porém, a legislação não tem sido respeitada. “Esta diretriz
não vem sendo cumprida pelos empreendedores, bem como o correto encerramento
das atividades minerárias com a execução do Pafem ou do Plano de Recuperação de
Áreas Degradadas (Prad)”, afirmou o órgão estadual em nota.
A pedido da Pública, a Feam realizou uma consulta
de quantos Pafem foram registrados no Sistema Integrado de Informações
Ambientais (Siam), do governo de Minas Gerais, o que revelou que somente cinco
empresas o fizeram desde 2008. São dois processos de fechamento de mina e três
protocolos de planos de fechamento. Em relação aos relatórios de paralisação da
atividade minerária, “não existe um procedimento de consulta no Siam que
permita identificar, de maneira ágil, quantos empreendimentos já protocolaram
estes estudos”, informou a Feam. Segundo a fundação, seria preciso dispor de
pelo menos um mês para buscar outras informações sobre protocolização, análise
e aprovação de Planos de Fechamento.
O relatório diz que “a análise do processo de fechamento
de mina, do ponto de vista ambiental e social, em Minas Gerais, tem ficado a
cargo do órgão ambiental estadual” e, como não existe um acordo com o órgão
federal responsável pelas análises de fechamento, o Departamento Nacional de
Produção Mineral (DNPM), o minerador é obrigado a apresentar dois relatórios
conforme as especificações de cada entidade.
DNPM: “No olho do furacão”
Como autarquia ligada ao Ministério das Minas e
Energia (MME), o DNPM é responsável por autorizar lavras e fiscalizar as atividades
mineradoras do país. Em termos de missão, é seu dever “gerir o patrimônio
mineral brasileiro, de forma social, ambiental e economicamente sustentável”.
A tragédia em Mariana, porém, expôs as deficiências
do órgão, ignoradas pelos brasileiros em geral, mas sobejamente conhecidas
pelos funcionários. O DNPM então ficou no “olho do furacão”, na expressão de
A.A.R., servidor de fiscalização em Minas Gerais, que assim como outros
funcionários do DNPM entrevistados pela Pública, falou sob a condição de não revelar
seu nome. Para ele, a tragédia evidenciou que “a demanda do órgão é muito maior
do que sua capacidade produtiva”.
A precariedade da DNPM em São Paulo, onde arquivos
são armazenados em sala abafada sem proteção contra poeira e insetos. Foto:
Thiago Domenici.
Segundo o professor Sánches, isso acontece porque o
DNPM “foi relegado” pelos sucessivos governos federais a uma entidade de menor
importância e perdeu espaço para os órgãos ambientais nas últimas décadas. “A
abertura de novas minas, por exemplo, passou a ser condicionada muito mais ao
licenciamento ambiental do que à emissão de um título de lavra”, avalia.
As Normas Reguladoras da Mineração (NRM) nºs 20 e
21 dão diretrizes sobre a suspensão e fechamento da mina e reabilitação das
áreas impactadas. É obrigatório, por exemplo, que o Plano de Fechamento de Mina
(PFM) faça parte do Plano de Aproveitamento Econômico (PAE) da jazida, sendo,
portanto, uma etapa a ser considerada desde a concepção do empreendimento. “O
problema é que, quando o empreendedor para de lavrar, ele dificilmente faz o
pedido de suspensão ou de fechamento da mina, mas tem alguns que pedem e o DNPM
demora a analisar, e tem os que simplesmente abandonam”, diz a engenheira de
minas D.L., também servidora do órgão em Minas.
“Já aconteceu muitas vezes de eu ver que a área não
está produzindo, vou lá e faço uma fiscalização. Se a gente realmente comprovar
o abandono, vamos pedir a caducidade daquele título e colocar em
disponibilidade para outras empresas, mas essa caducidade demora porque tem
recurso, e tudo é decidido lá em Brasília. O desfecho pode demorar anos”,
explica a engenheira. Ela conta que depois da tragédia “ficou todo mundo muito
desesperado” e que o enfoque atual tem sido a segurança das barragens do
estado. “Chegou muita pressão em cima da gente, não só política, mas do
Ministério Público, Polícia Federal”, diz.
Há seis anos esses dois servidores realizam, entre
outras tarefas, a análise de Relatório Anual de Lavra (RAL) das empresas, uma
espécie de Imposto de Renda do minerador. Além disso, eles precisam ir a campo
vistoriar esses empreendimentos. “Semana passada mesmo, tivemos que cancelar
vistoria porque não tinha verba”, diz A.A.R. “Estamos passando por um perrengue
tal…
Para você ter ideia, nós estávamos com oito carros aqui, e foram
solicitadas outras viaturas para trabalhar na força-tarefa de fiscalização de
barragens, mas quatro estão fora de combate”, lamenta. Ele conta que a internet
falha constantemente e que o sistema de informática não é estável,
inviabilizando por dias o trabalho de análise dos relatórios de RAL e outras
tarefas.
Em todo o país, as 25 superintendências da
autarquia têm de lidar com um universo fiscalizável de mais de 30 mil títulos
de empreendimentos de lavra mineral, 29 mil alvarás de pesquisa em vigor, com
necessidade de fiscalização in loco, dos quais anualmente ingressam em média 2
mil relatórios parciais solicitando prorrogação do prazo de pesquisa e 6 mil
relatórios finais para análise e decisão.
A complexidade da tarefa é ainda maior porque
existem empresas de mineração de todos os portes, de familiares a
multinacionais. E se explora uma grande variedade de recursos, com muitas
aplicações, tais como: água mineral; areia, brita, cascalho e argila para
construção civil; rochas ornamentais, como granito, mármore e ardósia; calcário
para cimento; caulim; metais preciosos como ouro, prata e platina; minérios
metálicos como ferro, manganês, cobre e alumínio; insumos para fabricação de
fertilizantes e condicionadores de solos, tais como fosfato, potássio, calcário
agrícola; terras raras, tântalo e nióbio com amplas aplicações industriais e
tecnológicas; energéticos, como carvão mineral; gemas como diamante, esmeralda
e topázio imperial.
A superintendência mineira conta com
aproximadamente 80 servidores e recebeu uma força-tarefa para atuar nas
barragens de mineração depois da tragédia em Mariana. “Veio muita gente de
outros estados, colegas da Bahia, Paraná, mas é uma situação emergencial”, diz
A.A.R. Ele conta que são poucos servidores para fazer os trabalhos de vistoria
in loco, isso quando os próprios trabalhadores não arcam com hotel e
combustível. “Se dobrássemos o pessoal, a gente só conseguiria terminar essas
fiscalizações sei lá em quantos anos, estamos muito atrasados”, revela.
D.L. corrobora a opinião do colega. “Tinha que ter
muito mais gente para o trabalho, porque ali é até desumano dependendo da
coisa, tem que fazer tudo, pouco tempo, meta para cumprir”, diz. Atualmente,
existe um passivo de 6 mil processos do DNPM em Minas. Para fiscalizar somente
as áreas de barragens de rejeitos, existem apenas quatro fiscais para todo o
estado, ou seja, há 184 estruturas por fiscal. “O DNPM arrecada muito dinheiro,
mas a gente não vê esse dinheiro voltar pra gente, né? 2014 já foi complicado.
2015 eu não viajei quase nada, não consegui fazer quase nenhuma vistoria”, diz
D.L. “Um problema leva ao outro”, explica A.A.R. “Se você deixa de fiscalizar,
você deixa de arrecadar também.”
Além das condições de segurança dos
empreendimentos, as fiscalizações verificam eventuais sonegações das empresas
na arrecadação da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais
(CFEM), conhecido como os royalties da mineração. O preço pago pelo
empreendedor ao proprietário do recurso natural, no caso a União, é o que
garante o direito de produzir e comercializar o recurso. Segundo um estudo
técnico sobre mineração e tributação do Instituto de Estudos Socioeconômicos
(Inesc) publicado em setembro passado, uma auditoria do Tribunal de Contas da
União (TCU) de 2014 constatou que apenas uma a cada quatro áreas de extração de
minérios paga os royalties de mineração. De acordo com o TCU, em 2012, dos 20,7
mil títulos de mineração (autorizações) ativos no país, apenas 5,4 mil fizeram
o devido recolhimento do tributo. Em 2015, foram arrecadados R$ 1,5 bilhão em
todo o país. A superintendência mineira é uma das mais importantes do país e
costuma representar 50% da arrecadação total.
Da arrecadação realizada pelo DNPM, a distribuição
da CFEM se faz na proporção de 65% para o município produtor, 23% para o estado
onde for extraída a substância mineral e 12% para a União (com percentuais de
divisão entre o DNPM, Ibama e Ministério da Ciência e Tecnologia). O ferro,
cobre e zinco, por exemplo, pagam 2% do faturamento líquido das mineradoras. O
ouro, 1% e o diamante, 0,2%.
A avaliação mais geral dos entrevistados pela
Pública é que o governo federal tem contingenciado há algum tempo a parcela de
recursos da CFEM que seria destinada ao DNPM. Entre 2009 e 2014, foi repassado
0,8% à autarquia, quando a determinação legal seria de 9,8%. Em 2014, por
exemplo, o valor da produção mineral brasileira foi de R$ 99,4 bilhões; já a
arrecadação de CFEM atingiu R$ 1,7 bilhão. O repasse legal ao órgão deveria ser
de R$ 166,7 milhões, ou seja, menos de 10% foram destinados à autarquia.
O ministro de Minas e Energia, Eduardo Braga,
admitiu publicamente que, por causa do contingenciamento, o DNPM só executou
13,2% do valor previsto em fiscalização em 2015. Segundo o ministro, os cortes
“não comprometeram a fiscalização”, declaração rechaçada pelos servidores
entrevistados em São Paulo, Brasília e Minas.
Em visita à superintendência paulista, a reportagem
deparou com um grupo de servidores mobilizados. Em dezembro, esses servidores
publicaram uma carta tratando das questões
mais urgentes, entre elas a “redução orçamentária” e “a falta de recursos para
pagamento de despesas fixas como água, luz, telefone, combustível e manutenção
de viaturas, essenciais à realização da atividade-fim”. A reportagem constatou
também problemas no arquivo, uma sala abafada onde estão os 20 mil documentos
que contam a história de todo o processo minerário desde 1934. “Não há nada
digitalizado, e as coisas estão se deteriorando e sofremos com falta de
espaço”, diz A.L., servidora. “Nada é climatizado, tem muita poeira, e acabamos
tendo problemas respiratórios”, critica.
Além de São Paulo, servidores que trabalham com
barragens em todo o país divulgaram uma carta em novembro em que afirmam que o
governo federal é “negligente” com o setor mineral. O DNPM, segundo a carta,
tem somente 220 fiscais entre 430 técnicos. “Devido às limitações de recursos
(materiais, tecnológicos, financeiros e humanos), as atividades de fiscalização
ocorrem por amostragem”, escreveram. O que não surpreendeu D.L.: “Todo tipo de
fiscalização do DNPM é mais ou menos por amostragem”, ela diz, explicando que,
dentro da demanda, seleciona o que é mais crítico. “Não tem como fazer tudo, é
impossível”, afirma.
O relatório de gestão 2014 do DNPM, por exemplo,
declara que, “diante da inconstância na descentralização de recursos
financeiros, priorizou-se a análise de processos e documentos que podem ter
decisão sem a fiscalização presencial no empreendimento/área”.
Para os servidores entrevistados, a solução passaria
pela criação de uma agência reguladora com mais autonomia, mais recursos e mais
pessoal. Isso significaria a extinção da autarquia. Uma possibilidade que
consta do projeto do Novo Código da Mineração (PL 5.807/13), enviado ao
Congresso pelo governo federal há cinco anos. Na Câmara, o relator da matéria,
deputado Leonardo Quintão (PMDB-MG), fez várias mudanças no texto, e após a
análise, ainda sem previsão, o projeto será analisado no Senado Federal.
A Comissão de Minas e Energia da Câmara, que se posicionou
a respeito, também vê a transformação da autarquia em agência como forma de
minimizar a influência política, situação já reportada pela Pública.
Mônica Beraldo, economista aposentada do órgão e
atual vice-presidente da Federação Nacional dos Economistas, diz: “Só com
tragédias é que lembram que o DNPM existe”. Mônica trabalhou no DNPM-sede, em
Brasília, por mais de 30 anos, e avalia que a paulatina degradação do órgão se
deve a inúmeros fatores, mas o principal deles reside na questão da política de
cargos, que tornou a autarquia uma gangorra de interesses partidários, sem
valorizar a capacitação do corpo técnico.
Oficialmente, o DNPM em Brasília não retornou os
pedidos de entrevista com o diretor de fiscalização do órgão, Walter Arcoverde,
nem forneceu informações pedidas sobre a situação de minas abandonadas e
paralisadas no país, e qual o posicionamento da autarquia em relação à situação
retratada em Minas Gerais no relatório da Feam.
Somente por meio da Lei de Acesso à Informação, a
Pública obteve a lista das minas paralisadas em Minas Gerais entre 2015-2016,
mas sem detalhamentos se estão ou não controladas ambientalmente. De acordo com
a listagem, 755 áreas estão paralisadas no estado, entre elas a mina Alegria,
da Samarco S.A., na região de Mariana. Outras demandas de acesso à informação
foram negadas à Pública com base no Art. 13 da lei. Veja aqui a resposta.
A tragédia espreita
De Belo Horizonte até Rio Acima são 35 km. Com
pouco mais de 9 mil habitantes, a história do município está ligada à rota de
exploração do ouro. É lá que fica a mina do Engenho D’Água, de responsabilidade
da Mundo Mineração Ltda., uma subsidiária brasileira da australiana Mundo
Minerals Ltd., que chegou para explorar o minério em 2008, quando obteve a sua
primeira licença de operação, válida até 2012. Foi quando os donos sumiram,
deixando para trás duas barragens de rejeitos num cenário com carros
enferrujados e produtos químicos mal armazenados.
A primeira das bacias de rejeitos, que fica acima
da segunda, está com a capacidade de armazenamento esgotada e assoreada até a
borda faz três anos. A segunda tem segurado os rejeitos da primeira, sobretudo
no período chuvoso, mas também é motivo de preocupação, já que o potencial de
risco contaminante da mineração de ouro é muito maior que a do ferro.
“O ouro possui resíduos muito mais perigosos, como
o cianeto de sódio, ácido cianídrico, arsênio e mercúrio”, explica a
ambientalista Daniela Campolina, do Movimento pelas Serras e Águas de Minas. “O
cianeto de sódio usado no beneficiamento do ouro tem padrões de toxidade
elevado, e a ingestão de 1 mg por quilo é suficiente para matar uma pessoa”,
afirma.
Em setembro de 2014, o MPF recomendou ao DNPM e à
Feam a adoção de medidas para conter o problema, já que a mineradora não
cumpria suas obrigações legais mesmo recebendo autos de infração em razão de
descumprimento de condicionantes e afronta à legislação ambiental.
À época, o procurador da República José Adércio
Leite Sampaio, atualmente na força-tarefa que investiga os acontecimentos do
rompimento da barragem da Samarco, esclareceu que os “acionistas majoritários
da Mundo Mineração simplesmente desapareceram do território nacional”. O
procurador afirmou que, “diante da ausência do empreendedor”, caberia ao DNPM e
à Feam a manutenção do sistema de contenção da mina, “sob pena de nos
depararmos em breve com outra tragédia”.
Ele se referia ao rompimento do talude da barragem
B1, na mina Retiro do Sapecado, da Herculano Mineração, que deixou três mortos
e um ferido dias antes de a vistoria do DNPM apontar o sucateamento da Engenho.
O acidente da mina Retiro aconteceu quando seis funcionários trabalhavam na
manutenção da barragem e foram surpreendidos pela lama e rejeitos de minério. A
Herculano Mineração já havia sido autuada uma dúzia de vezes pelo Ministério
Público, inclusive por falta de programas de gerenciamento de risco.
No caso da Engenho, o pedido do MPF parece não ter
surtido o efeito necessário, tanto que em janeiro deste ano o Movimento pelas
Serras e Águas de Minas reforçou as denúncias de abandono junto ao próprio
Ministério Público, Feam e DNPM. Os ativistas enviaram fotos e vídeos do local, que mostram que após dias de
chuva na região a situação das barragens se deteriorava ainda mais. Além disso,
a área abriga produtos de alto risco, “no mesmo estado de abandono que o
restante do empreendimento”, afirmou a Feam. A lista inclui tanques de gás
(GLP), galões de ácido clorídrico, cianeto e soda cáustica, hidróxido de sódio,
peróxido de hidrogênio, metabissulfito de sódio e sulfato de cobre.
Fazenda Velha: região tombada em Rio Acima (MG)
onde a Vale quer fazer nova barragem de rejeitos. Foto: Reprodução.
A última vistoria, em janeiro, registrou o que já
se sabia: abandono e risco ambiental iminente. A barragem “encontrava-se com
acúmulo de água devido às constantes chuvas ocorridas nos dias anteriores”,
disse o órgão, que constatou que “não havia bordas livres” em alguns trechos do
talude da barragem, o que significa que a água não poderia ser contida, o que
causaria “transbordamento”.
Em nota enviada à Pública, a Feam disse que serão
feitas obras emergenciais de reforço da drenagem entre a primeira barragem e a
segunda. “Esta intervenção visa reforçar a segurança das estruturas até o fim
do período chuvoso”, previsto para o fim deste mês. O cronograma para a
realização das obras e o fechamento da mina será definido também em março.
O mais grave é que as barragens da mina de Engenho
ficam próximas ao córrego do Vilela, afluente da bacia do rio das Velhas,
localizado a 8 km do ponto de captação de água da Bela Fama, da companhia de
saneamento (Copasa) que abastece 70% de Belo Horizonte e 40% da região
metropolitana. “Os impactos nos recursos hídricos, com potencial de alteração
da qualidade das águas, seria muito grande”, afirma a ambientalista Daniela
Campolina.
Na recomendação do Ministério Público, José Adércio
já alertava para o “risco à vida das pessoas que moram a jusante [termo técnico
para “abaixo”] das barragens, especialmente na localidade denominada Honório
Bicalho”. Além disso, uma auditoria técnica feita
três anos antes recomendava “executar urgente um plano de descomissionamento e
paralisação imediata de lançamentos de rejeitos no reservatório”.
No mesmo distrito de Nova Lima, a região de Honório
Bicalho, a 10 km de Rio Acima, já tinha sofrido com o rompimento da barragem
Rio das Pedras em 1997, que contaminou com lama o rio das Velhas ao longo de 82
km. A região fica no chamado quadrilátero ferrífero, dominada pela Vale S.A.,
que planeja construir uma nova barragem de rejeitos de minério de ferro na área
da “Fazenda Velha”, zona de mil hectares que faz a transição entre os biomas da
Mata Atlântica e do Cerrado. O local foi tombado provisoriamente pelo município
de Rio Acima por seu valor paisagístico, arqueológico e natural, o que tem
canalizado disputas acirradas pela liberação da área para a mineração.
Se o plano da Vale S.A. se concretizar, a
capacidade da megabarragem pode ser de 600 milhões de metros cúbicos, ou seja,
muitas vezes maior que a de Fundão. Esse empreendimento faria parte do complexo
minerador Vargem Grande, que possui atividades em Nova Lima e em Itabirito, na
região central. “A área tombada pode ser revertida por pressões da Vale S.A. e
de políticos do município, então estamos acompanhando de perto”, diz o
ambientalista Paulo Rodrigues, do Movimento pela Preservação da Serra do
Gandarela.
Serra do Gandarela ameaçada
Uma das hipóteses do sumiço dos responsáveis da
Mundo Mineração Ltda. remete justamente à disputa travada pela criação do
Parque Nacional da Serra do Gandarela, movimento do qual Rodrigues faz parte.
“Quando soubemos da existência de outro megaprojeto da Vale S.A., chamado mina
Apolo, criamos em 2007 o movimento de preservação da serra do Gandarela, por
causa da sua importância hídrica fundamental não só por conta da região metropolitana
de Belo Horizonte, mas também para a outra vertente, que é o rio Doce”,
explica.
Localizado nos municípios de Caeté, Santa Bárbara,
Barão de Cocais, Rio Acima, Itabirito e Raposos, o Gandarela integra o conjunto
da Reserva da Biosfera do Espinhaço, uma das últimas grandes reservas naturais
intactas de Minas. Segundo Rodrigues, a região é “a última de grande relevância
hídrica que ainda não foi degradada pela mineração de ferro”. Em 2014, a
presidenta Dilma Rousseff decretou a criação do Parque sob críticas de que o
projeto que norteou os limites da área atenderia muito mais aos interesses
econômicos das mineradoras do que aos ambientais de preservação.
Já em 2001, uma notícia se referia à “demora” dos
governos estadual e federal em definir a área de abrangência do parque como
entrave aos negócios da Mundo Mineração de obter a licença para uma nova mina
em Rio Acima, denominada Crista, que ajudaria a diluir os altos custos
operacionais da Engenho, viabilizando a operação conjunta.
Ronisdalber Bragança, ex-gerente administrativo financeiro da Mundo, deixou o posto em 2010. Ele contou à Pública que a Engenho fora a primeira operação do grupo australiano no Brasil, que teve as negociações iniciadas em 2006, com investimentos de US$ 28 milhões, sendo R$ 11 milhões na mina e US$ 17 milhões na planta metalúrgica de tratamento do minério. Antes, o local havia sido objeto da exploração da sul-africana AngloGold Ashanti. À época, a estimativa é que fossem extraídas 2,8 mil onças por mês, o equivalente a 80 kg, o que garantiria um faturamento de US$ 45 milhões anuais. O ex-gerente diz que toda a produção era destinada ao mercado externo.
Segundo Bragança, a mina da Crista era apenas uma
forma de compensar perdas econômicas na Engenho, e a questão do Parque
Gandarela era um empecilho, mas não a causa da inviabilidade do negócio. Por
pressão da Mundo Mineração, que alegava ter de demitir funcionários
imediatamente, a região da Crista não foi incorporada à área final do
Gandarela. “Na realidade o que se extraía de ouro, na prática, não chegou a ser
igual àquilo que se tinha no papel em termos de projeto. Se imaginou que fosse
ter uma extração maior do produto final, mas o teor era baixo”, diz o
ex-funcionário. Ele não sabe precisar, mas exemplifica: “Imagine que o projeto
prevê 4 gramas de ouro por tonelada de minério, mas na prática você tinha 2,5
gramas por tonelada. É prejuízo”.
Outro ex-funcionário da empresa ligado ao alto
escalão, o australiano Michael Schmulian, era o engenheiro responsável técnico
pela Engenho até o final de 2009. Ele recorda que os donos “eram 4 mil”
acionistas da empresa na Bolsa de Valores da Austrália. “Tipo a Vale, só que
bem menor”, compara. Ele não sabe dizer, no entanto, o que aconteceu depois de
sua saída. “Eu fiquei totalmente por fora, soube que por causa de dívidas altas
a mina fechou.”
Além do Brasil, a Mundo Minerals fazia mineração de
ouro no Peru e até o ano passado mantinha suas atividades minerárias sob novo
nome, alterado em 2012, quando passou se chamar Minera Gold Ltd. No entanto, os
controladores do empreendimento são os mesmos, em especial o australiano Asley
Pattison, CEO da Minera Gold até o ano passado.
Em 2014, ou seja, dois anos após o abandono da mina
do Engenho, um documento direcionado a
potenciais investidores da Minera Gold Ltd. dizia que foram investidos US$ 50
milhões no Brasil e as minas do Engenho e da Crista ainda eram usadas como
chamariz para atrair os interessados. “Todos os obstáculos políticos e
regulatórios foram superados”, afirmava um dos itens da apresentação de Asley.
Por outro lado, o relatório anual da empresa
de dezembro de 2013 afirmava que, naquele ano, a Minera Gold assinara um acordo
de joint venture com um novo investidor privado. O novo sócio aportaria perto
de US$ 5 milhões ao longo de 12 meses para ganhar uma participação de até 60%
na Mundo Mineração Ltda. O texto anunciava ainda que “o investimento irá
fornecer fundos suficientes para cumprir as obrigações de pagamento do processo
de recuperação judicial” e que “desde junho de 2013 a companhia não era mais
responsável pelo financiamento de capital de giro brasileiro”, portanto já não
“consolidava a entidade brasileira” para os seus resultados financeiros.
Em um documento mais recente, de
setembro do ano passado, a empresa australiana de consultoria Ferrier Hodgson
fez um inventário da Minera Gold e conclui que o negócio não vai bem. Um organograma do mesmo
documento confirma as ligações jurídicas entre as empresas Mundo Minerals e
Minera Gold. Em nenhum trecho o relatório esclarece que a mina do Engenho está
abandonada no Brasil. Afirma somente que foi “interrompida” e que houve um
pedido de recuperação judicial em 2012. Procurado pela reportagem, Asley
Pattison não retornou o contato até o fechamento da matéria.
Há registros de que, de junho de 2010 a junho de
2011, a mina do Engenho produziu 18,239 onças de ouro, ou seja, perto de 500 kg
do minério. As receitas foram da ordem de US$ 25 milhões, valor que
provavelmente foi distribuído entre os acionistas.
Quem assume, afinal?
Após o pedido de recuperação judicial em 2012, a
empresa demitiu funcionários e deixou um passivo de dívidas com fornecedores e
ex-funcionários que se arrasta até hoje. O representante brasileiro mais citado
em documentos e ações judiciais é Júlio César Ferreira da Rocha, engenheiro de
minas formado pela Universidade Federal de Minas Gerais, que não foi localizado
pela reportagem. A apuração, no entanto, indica que seu último registro de
trabalho conhecido é na cidade de Paracatu, pela Votorantim Metais.
De acordo com a Lei Federal 12.334, sancionada há
seis anos, a Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB) deveria se
aplicar ao caso da Mundo Mineração, justamente por se referir a questões que
envolvem a sustentabilidade e o alcance de seus potenciais efeitos sociais e
ambientais. Além disso, o PNSB considera nas suas fases a desativação e uso
futuro do empreendimento minerário.
Como relatado, é papel do DNPM fiscalizar as
atividades de pesquisa e lavra para o aproveitamento mineral e as estruturas
decorrentes dessas atividades. A.A.R, do DNPM-Minas, no entanto, afirmou que o
órgão “não tem condições” de descomissionar o empreendimento. Oficialmente, o
DNPM não respondeu ao pedido de informações sobre o caso em questão.
No que diz respeito às atribuições da Feam, toda
empresa que possui barragens no estado deve entregar anualmente um Relatório de
Auditoria, feito por uma empresa independente, contratada pela empresa. “Como a
Mundo Mineração abandonou a área e não atendeu mais suas obrigações legais e
regulamentares, o Estado judicializou a questão”, informou a Feam. Mesmo
condenada, a empresa não cumpriu as medidas indicadas que visavam à segurança
da estrutura.
Uma Ação Civil Pública ajuizada
em dezembro de 2014 pelo Ministério Público contra o Estado, de autoria da
promotora da comarca de Nova Lima, Andressa Lanchotti, registra que o DNPM
informou que as barragens não foram cadastradas e por isso não estavam
classificadas no PNSB. “Durante a presente vistoria [2013] não foi possível
auditar os planos de segurança das barragens do empreendimento, pois nenhum
representante da empresa foi encontrado”, afirmou o DNPM.
Além disso, a Mundo Mineração não apresentava
declaração de estabilidade das estruturas ao órgão desde 2011, situação similar
ao ocorrido com a Feam, que tem registro de relatórios de auditoria da empresa
de 2009 a 2011, e depois em 2014. Neste último, o parecer diz: “atividades
suspensas e a estabilidade tem restrições, pois devem ter medidas emergenciais
a serem executadas até o início do período chuvoso”, o que não foi feito. O
parecer diz ainda que era preciso “executar bloqueio de infiltração da drenagem
nos diques”, justamente para evitar contaminação fora dos seus limites.
No que se refere à responsabilidade civil do
Estado, o texto da ação cita a “falta de fiscalização adequada e eficiente, bem
como associada a vícios e irregularidades no licenciamento ambiental”. Por
isso, o Estado seria solidário “com os empreendedores pelos danos ambientais
ocasionados”.
Existem ainda relatos não confirmados de que houve
um acidente em 2010. Segundo um documento do Comitê da Bacia Hidrográfica do
Rio das Velhas a um conselheiro da Área de Proteção Ambiental do Sul da Região
Metropolitana (APA Sul), foi “exagerada a rapidez” com que se pretendia
licenciar a segunda barragem da Mundo Mineração.
Segundo o ofício, “em relato de conselheiros da APA
Sul, a empresa disse que utilizou água oxigenada para neutralizar os efeitos do
cianeto que vazara da barragem vertendo para o dique de contenção e
possivelmente para o curso d’água que flui para o Rio das Velhas” e que a
mineradora “não teria mostrado segurança em demonstrar os procedimentos típicos
de um plano de contingenciamento em caso de acidente”. O valor previsto pelo
Departamento de Obras Públicas de Minas Gerais (Deop) para descomissionar a
mina do Engenho é de R$ 500 mil.
Fonte: Agência Pública
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