Crise
desmascara cordialidade brasileira.
Em um ambiente nervoso e dividido, começou no dia
15, na Câmara Federal, a histórica votação sobre a abertura do processo de
impeachment da presidente Dilma Rousseff. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil.
“As pessoas se aferram a uma posição, esquecendo
seus próprios interesses e se sujeitando a uma discussão emocional,
irracional”, observou à IPS a socióloga Bárbara Mourão.
Por Mario Osava, da IPS –
Rio de Janeiro, Brasil, 18/4/2016 – Uma pediatra
que deixa de atender um bebê por discrepâncias políticas com a mãe, ciclistas
agredidos por usarem bicicletas vermelhas, celebridades hostilizadas por seu
apoio ao governo. Esses são casos de violência que proliferaram no Brasil
ultimamente. A agressividade nas relações interpessoais, desatada pelo processo
de impeachment da presidente Dilma Rousseff, nega o mito dos brasileiros como
personalidades tolerantes que priorizam a alegria e a afetividade.
Acumulam-se relatos de brigas familiares, amizades
rompidas, hostilidades no ambiente privado que acompanham as manifestações de
rua pró e contra o governo, que se tornaram maciças e frequentes em todo o país
desde março, com enfrentamentos marginais, até agora sem vítimas fatais. Mas um
longo muro metálico dividindo a Esplanada dos Ministérios em Brasília, para
evitar enfrentamentos entre ativistas dos dois lados, alerta para o risco de
tragédias ao se aproximar o desenlace da controvertida luta pelo poder.
Antes da sessão do dia 17, na Câmara dos Deputados
para decidir se o processo de impeachment deveria ser enviado ao Senado para
julgamento, a professora de antropologia na Universidade de Brasília, Lia
Zanotta Machado, afirmou que “nenhum dos lados tem argumentos políticos
sustentáveis, ambos são vulneráveis a críticas e recorrem à agressividade
porque a única forma de se defender é atacar o adversário, buscando
destruí-lo”.
“Predominam os adjetivos negativos e as acusações
personalizadas, desqualificadoras”, diante da fragilidade das políticas que as
forças em confrontação poderiam apresentar como suas bandeiras, acrescentou a
professora. O movimento que pretende derrubar a presidente reclama o combate
sem trégua à corrupção, tentando identificar como fonte desse mal os governos
do Partido dos Trabalhadores (PT), iniciados em 2003 com Luiz Inácio Lula da
Silva e seguido por Dilma desde 2011.
Mas os herdeiros do poder Executivo, em caso de
impeachment da presidente, estão todos envolvidos no escândalo de corrupção que
agravou a crise política e econômica do Brasil desde o ano passado, sobre
desvio de milhares de milhões de dólares da Petrobras. O vice-presidente,
Michel Temer, que já se apresenta como novo chefe de um governo de união
nacional, aparece como receptor de fundos de grandes construtoras nos
depoimentos de vários empresários processados, que decidiram colaborar com a
justiça para abrandar suas penas.
Em pior situação está o presidente da Câmara dos
Deputados, Eduardo Cunha, acusado de ocultar contas em bancos suíços onde teria
depositado milhões de dólares ilegais. Ele seria o vice de Temer, se a
presidente Dilma cair. Mas pode ser julgado a qualquer momento pelo Supremo
Tribunal Federal (STF) e também pela Comissão de Ética da Câmara, com o risco
de ficar inabilitado politicamente por oito anos. O terceiro na cadeia de
sucessão presidencial seria o presidente do Senado, Renan Calheiros, também
denunciado como beneficiário da corrupção.
Os três são dirigentes da maior força legislativa,
o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), que deixou a coalizão
governamental em 29 de março, como um passo para ocupar o centro do poder.
Corrupto é um estigma forte, mas a desclassificação do oponente se faz com
muitas acusações que fomentam o ódio que penetrou as relações pessoais e
familiares, pontuou Zanotta.
Dilma é acusada de ser “inábil, ineficiente e
irresponsável” e seus partidários de “petralhas”, combinação de PT com os
irmãos Metralha, conhecidos ladrões nas histórias de Walt Disney. A resposta é
rotular os opositores de “golpistas e antidemocráticos”, além do apelido de
“coxinha”, para identificar pessoas conservadoras.
Dilma se defende destacando que não é afetada por
nenhuma acusação de corrupção, ao contrário dos líderes “traidores”. Sua
inabilidade foi requerida por três juristas, acusando-a de fraudes fiscais, por
ter ordenado gastos sem autorização parlamentar, violando o orçamento oficial
de 2015.
Os blocos em confronto “são muito heterogêneos,
contraditórios”, fatalmente se dividiriam ao definir uma estratégia, um
programa, por isso “buscam uma unificação ilusória, construindo um inimigo
comum”, apontou Benilton Bezerra Júnior, pesquisador de Medicina Social na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Manter unidas as forças exige
também uma “simplificação que evita numerosos conflitos não assumidos explicitamente”,
dentro dos grupos, acrescentou.
O muro (direita) e outras barreiras levantadas na
Esplanada dos Ministérios, em Brasília, para evitar enfrentamentos entre
manifestantes pró e contra a presidente Dilma Rousseff. Ao fundo, o prédio da
Câmara dos Deputados. Foto: Lula Marques/Agência PT.
O bloco opositor se assenhorou da bandeira da
anticorrupção, aproveitando os erros do PT, mas a corrupção é “um peão no jogo
do xadrez”, pontuou Bezerra à IPS. Segundo este pesquisador, “apesar da
pluralidade de posições nos dois lados, há centros de gravidade que identificam
seus diferentes interesses em jogo”, conservadores entre os que querem o
afastamento da presidente contra a defesa dos avanços sociais, como mais
escolas e menos desigualdade, conquistados durante os governos do PT.
Os brasileiros praticam uma “autoavaliação positiva
de que são afáveis, tolerantes e simpáticos”, e de fato “são reais os sinais de
afeto, boa acolhida aos estrangeiros, de ausência de ódio racial embora haja
racismo”, mas se trata de “uma sociedade violenta, de estruturas hierárquicas
nada democráticas”, afirmou Bezerra.
A cordialidade atribuída aos brasileiros, que
significa subordinar a razão ao afeto, compreende a informalidade e “a
dificuldade de lidar com o conflito de forma pública e ordenada. Inclusive no
meio universitário é difícil discutir opiniões discordantes, mesmo teóricas”,
enfatizou Bezerra, que é doutor em saúde coletiva e identidades culturais. “Se
personaliza tudo, se entende a crítica como feita às pessoas e não às ideias”,
concluiu.
É assim que a disputa política se converte em
conflito pessoal, realçou Machado. “As pessoas se aferram a uma posição,
esquecendo seus próprios interesses e se sujeitando a uma discussão emocional,
irracional”, observou à IPS a socióloga Bárbara Mourão, comparando seus estudos
sobre mediação de conflitos no âmbito da justiça com a disputa política vivida
pelos brasileiros.
“A dificuldade do mediador é buscar consenso,
enquanto os lados só querem o adversário para reforçar suas posições, sua
necessidade de certeza, sem admitir que outras visões possam ter algo não
equivocado”, pontuou a pesquisadora do Centro de Estudos de Segurança e
Cidadania, da Universidade Cândido Mendes. Sonia Correa, coordenadora do
Observatório de Sexualidade e Política, destacou dois fatores que causam ou
agravam essa intolerância política. A violência social é tradicional no Brasil,
que concentra 10% dos assassinatos do mundo, segundo a entidade pública
brasileira Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea).
“O mito da cordialidade serviu para ocultar essa
violência, que não se via antes na política devido ao controle das elites, mas
se evidenciou com a democratização e a entrada do povo na vida política”,
indicou Correa à IPS. “Outro fator a considerar é a intensificação do
dogmatismo religioso pela expansão das novas igrejas evangélicas, contrastando
com a moderação com que a Igreja Católica regulava a sociedade no passado, com
raros momentos de radicalização”, comparou.
Os novos evangélicos “insuflaram concepções
binárias, de bom e mau, criando condições para a direita sair do armário, a
suspensão do diálogo e, por exemplo, do debate sobre aborto”, lamentou Correa.
“A sociedade brasileira não desenvolveu práticas de deliberação democrática,
incluindo visões diferentes, o PT também é binário e no poder demoliu
alternativas à esquerda”, criticou.
Fonte: ENVOLVERDE