Indígenas
resistem ao “espírito do mal”.
Juarez Saw, cacique da aldeia SawréMuybu,
localizada no curso médio do rio Tapajós, entre os municípios de Itaituba e
Trairão, no Pará. Foto: Gonzalo H. Gaudenzi/IPS.
Por Fabiana Frayssinet, da IPS –
SawréMuybu, Brasil, 5/1/2016 – Ao entardecer no rio
Tapajós, um dos principais afluentes do Amazonas, os indígenas munduruku
reiniciam o ritual da pesca nessa bacia rica em peixes, seu alimento
tradicional. Mas o “espírito do mal”, como eles denominam a hidrelétrica São
Luiz do Tapajós, pode deixá-los órfãos.“O rio é como nossa mãe. Nos dá
alimentos e dele tiramos o pescado. Uma mãe alimenta com leite materno, o mesmo
ocorre com o rio”, afirmou DelsianoSaw, professor na aldeia SawréMuybu,
localizada entre os municípios de Itaituba e Trairão, no Estado do Pará.
“Vão encher o rio, e os animais, os peixes,
acabarão. As plantas que os peixes comem, as tartarugas, também acabarão. Tudo
desaparecerá quando fizerem a inundação por causa da hidrelétrica”,
destacouSawà IPS.Com uma represa de 722 quilômetros quadrados e queda de 35,9
metros, a hidrelétrica inundaria uma área de 330 quilômetros quadrados,
incluindo essa aldeia de 178 habitantes.
Segundo os planos do governo, São Luiz do Tapajós
terá potencial de 8.040 megawatts (MW), sendo a principal de um complexo de
sete hidrelétricas, projetadas para essa bacia hidrográfica para serem
construídas até 2024. Mas a licitação da obra, calculada em US$ 7,7 bilhões,
foi adiada novamente por questionamentos ao processo de licenciamento
ambiental.
“O efeito acumulativo é incomensurável.
Especialistas da área ambiental afirmam que isso causaria a morte de um rio.
Nenhum rio sobrevive a um complexo de sete represas”,opinou à IPS Maurício
Torres, sociólogo da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa).
O Tapajós, que desemboca no rio Amazonas, percorre
871 quilômetros em uma das áreas mais preservadas da selva subtropical úmida,
onde o governo reduziu áreas protegidas para construir essas hidrelétricas,
proibidas em unidades de conservação.Ali vivem 12 mil indígenas munduruku e
2.500 habitantes ribeirinhos que resistem ao “megaprojeto”, outra palavra que,
nesse caso, os munduruku incorporaram da língua portuguesa, para utilizar em
seus reiterados protestos.
Este é historicamente um povo guerreiro e, embora
cotidianamente incorporem costumes brasileiros, pintam o rosto quando têm que
ir às grandes cidades expressar sua resistência ao projeto.O cacique Juarez Saw
denuncia que não foram consultados, como obriga o Convênio 169 da Organização Internacional
do Trabalho, ratificado pelo Brasil. O processo de legalização dessas terras
indígenas foi interrompido. “Não vamos sair dessa terra. Existe uma lei que diz
que uma pessoa não pode ser trasladada, a não ser em caso de uma doença que
esteja matando os povos indígenas”, pontuou à IPS.
A aldeia fica em um lugar sagrado para os
munduruku, onde, segundo sua história, nasceram e foram enterrados seus
antepassados. “É algo que vai nos prejudicar, não só o povo munduruku que vive
há tantos anos ao longo do Tapajós, mas a floresta, o rio. É de doer o
coração”, disse o xamã Fabiano Karo.A entrevista acontece na cabana cerimonial
onde o sacerdote cura “males do corpo e do espírito”, para os quais teme ficar
sem antídotos quando a água avançar sobre a aldeia e extinguir, entre outras,
suas ervas de cura.
Estudiosos dessa bacia hidrográfica alertam que a
inundação provocaria uma perda significativa da cobertura vegetal, além de um
aumento na emissão de gases-estufa, devido à decomposição de plantas e árvores
debaixo da água. A bacia abriga uma rica diversidade de ecossistemas, com
espécies únicas de plantas, aves, peixes e mamíferos, muitas em extinção.
“Pode ocorrer um impacto muito grande,
especialmente na fauna aquática, porque muitos peixes amazônicos têm ciclos
reprodutivos com migrações das partes baixas para as altas dos rios”, explicou
à IPS o ecologista Ricardo Scuole, da Ufopa. “Grandes estruturas, como diques e
barreiras artificiais, geralmente dificultam, quando não impedem, a imigração
reprodutiva dessas espécies”, acrescentou.
Menina da aldeia indígena SawréMuybu, localizada no
curso médio do rio Tapajós, entre os municípios de Itaituba e Trairão, no Pará.
Foto: Fabiana Frayssinet/IPS.
A aldeia tem 300 hectares e estima-se que a
hidrelétrica a reduzirá a uma ilha. Maria Parawá não sabe quantos anos tem, mas
não tem dúvidas de que todos eles foram vividos junto ao rio. “Tenho medo da
inundação porque não sei para onde ir. Tenho muitos filhos e netos para criar e
não sei como os manterei”, disse a indígena à IPS com ajuda de um tradutor,
porque, como muitas mulheres da aldeia, não fala português.
A poucas horas de SawréMuybu fica Pimental, com
cerca de 800 habitantes, às margens do rio Tajapós, que vive da lavoura e da
pesca artesanal. Em suas ruas ressoam os passos dos imigrantes nordestinos que
povoaram essa região no final do século 19, na época dourada da extração de
borracha. O povoado poderia desaparecer do mapa, literalmente, com a inundação
da hidrelétrica. “Com o impacto da represa, toda nossa história pode ir por
água abaixo”, lamentou Ailton Nogueira, que preside a Associação de Moradores
de Pimental.
O consórcio responsável pela construção da usina,
encabeçado pela Empresa Brasileira de Eletricidade, oferece transferir seus
moradores para 20 quilômetros de distância. Mas, como para os munduruku, o rio
e a pesca representam “um saber patrimonial” para esses povos, segundo o
sociólogo Maurício Torres.
“É um saber construído durante milênios, passando
de geração a geração. Um saber que tem pelo menos dez mil anos. Quando se
represa um rio e ele se transforma em um lago, se está transformando
vertiginosamente esse meio e invalidando esse saber patrimonial responsável
pela sobrevivência dessa região”, ressaltou Torres à IPS.
As hidrelétricas do Tapajós são estratégicas para o
governo porque abasteceriam de energia a zona Centro-Oeste e Sudeste, a mais
rica e industrializada do Brasil. “São uma necessidade para o país. Sem elas,
daqui em diante teremos um apagão”, afirmou José de Lima, diretor de Planejamento
do município de Santarém, no Pará.
Porém, o Movimento Tapajós Vivo, presidido pelo
sacerdote católico Edilberto Sena, questiona a necessidade de energia. “Por que
tantas hidrelétricas no rio Tapajós? É a grande pergunta porque nós não
precisamos dela. São as grandes mineradoras que necessitam dessa energia, são
os mercados de São Paulo e do Rio de Janeiro que precisam dela”, enfatizou à
IPS.
Cai a tarde em SawréMuybu e as famílias se reúnem
no igarapé (riacho). Entre banhos, as mulheres lavam roupas e utensílios
domésticos. Desde crianças, os homens aprendem a pescar, caçar e obter água
para sua aldeia. Para a comunidade, é da água que surge a vida. E “ninguém tem
direito de mudar” o curso da vida, afirmou o xamã Karo.
Fonte: ENVOLVERDE
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