A
desigualdade social chega a níveis alarmantes.
Em 2030 poderá haver cem milhões de pessoas a mais
vivendo na pobreza, se não forem tomadas medidas para enfrentar os impactos da
mudança climática, alerta o Banco Mundial. Foto: Neeta Lal/IPS.
A concentração de riqueza no mundo é hoje
semelhante à da Inglaterra de Charles Dickens ou da França de Victor Hugo.
Por Antonio Luiz M. C. Costa, da Carta Capital –
Em 2013, com O Capital no Século XXI, Thomas
Piketty alertou para o crescimento contínuo da desigualdade de riqueza desde a
década de 1970, contrária à tendência dos 60 anos anteriores e muito mais
acentuada e socialmente relevante que a desigualdade de renda, mais fácil de
pesquisar e na qual se concentrava a maioria dos estudos anteriores.
Na Europa, a parcela detida pelo décimo superior
subiu de 60% em 1970 para 64% em 2010 e a do centésimo superior de 21% para
24%. Nos EUA, o décimo superior subiu de 64% para 72% e o centésimo superior de
28% para 34%. Na falta de políticas ativas contra a desigualdade (como, por
exemplo, impostos progressivos sobre o capital), esses países retornarão em
meados do século XXI a um patamar de desigualdade semelhante àquele do fim do
século XIX e início do XX.
Nesse período, o 1% mais rico (“classes
dominantes”, na terminologia de Piketty) detinha metade de toda a riqueza, o
décimo superior (“classes superiores”, sendo os não incluídos no primeiro 1%
referidos como “classes abastadas”) , quase 90%, enquanto o 50% mais pobre
(“classes populares” na terminologia do economista) ficava com meros 5%. A
nostalgia chama esses tempos e de belle époque, mas poucos, mesmo nos países
mais ricos, puderam usufruir de sua beleza.
O ano de 2010 foi também aquele no qual o banco
Credit Suisse publicou o seu primeiro Global Wealth Report (Relatório da
Riqueza Global). Naquele ano, os 50% mais pobres dos 4,44 bilhões de adultos
possuíam pouco menos de 2% dos ativos mundiais estimados em 194,5 trilhões de
dólares, “embora a riqueza esteja crescendo rapidamente para alguns membros
deste segmento”, acrescentava esperançosamente o relatório. Os 10% superiores
possuíam 83% da riqueza mundial e o centésimo superior, 43%. A riqueza média
equivalia a 43,8 mil dólares líquidos. Era preciso possuir 4 mil para deixar de
pertencer aos 50% mais pobres, 72 mil para chegar aos 10% mais ricos e 588 mil
para o centésimo superior.
Cinco anos depois, o relatório de 2015, publicado
em 13 de outubro, mostra que a concentração de renda mundial alcançou níveis
tão críticos quanto o do mundo industrializado antes da Primeira Guerra
Mundial. Apesar do relativo otimismo de 2010, a metade mais pobre dos 4,8
bilhões de adultos ficou ainda mais depauperada: agora possui menos de 1% da
riqueza planetária estimada em 250,1 trilhões de dólares, enquanto o décimo
mais alto controla quase 90% (87,7%, para ser exato) e o centésimo no topo,
exatos 50%. A riqueza média líquida subiu para 52,4 mil, um aumento nominal de
19,6% que se reduz a 9,3% se descontados 9,5% de inflação do dólar nos Estados
Unidos em cinco anos, mas os níveis de corte passaram para 3,21 mil (27% mais
baixo em termos reais), 68,8 mil (13% mais baixo) e 759,9 mil (18% mais alto),
respectivamente.
Percebeu-se há algum tempo, em vários países, como
a limitada recuperação da economia após a crise de 2008 fluiu para os bolsos
dos privilegiados, enquanto as classes média e popular ficaram ainda mais
pobres pela estagnação (ou mesmo redução) dos salários reais, o aumento do
desemprego e o maior endividamento. Na Espanha, por exemplo, o número de
milionários em dólares (pelo critério do Capgemini e Royal Bank of Canada, que
ao contrário do Credit Suisse, não inclui residência e bens de consumo) cresceu
de 127,1 mil em 2008 para 178 mil em 2014, enquanto a renda per capita caiu de
35,6 mil para 30,3 mil, o desemprego subiu de 11% para 26% e a dívida pública
saltou de 39,4% para 99,3% do PIB.
Nos EUA, o 1% mais rico absorveu 95% do crescimento
após a crise financeira e o empobrecimento da camada inferior reflete-se até na
mortalidade. Em 1960, os 20% de homens com 50 anos mais pobres podiam esperar
viver até os 76,6 anos, enquanto, em 2010, esse número caiu para 76,1. No caso
das mulheres, a queda foi de 82,3 para 78,3. Enquanto isso, a expectativa de
vida para os 20% mais ricos atingiu 88,8 anos para homens e 91,9 para mulheres.
Na União Europeia, a renda combinada dos dez mais
ricos, 217 bilhões de euros, superou o valor total das medidas de estímulo de
2008 a 2010, cerca de 200 bilhões. A novidade do relatório está em oferecer, em
números, um panorama sintético dos resultados desse processo na escala do
planeta.
O efeito do crescimento das dívidas na riqueza
líquida foi tão importante que resultou no paradoxo de que agora há entre os
10% mais pobres (inclusive os de patrimônio negativo) mais europeus e
norte-americanos do que chineses. Nem todos esses vivem na miséria. Alguns,
principalmente nos EUA, são jovens cujo patrimônio foi zerado por crédito
educativo, hipoteca ou cartão de crédito, mas têm diploma, um padrão de consumo
decente e o sonho de um dia chegar ao topo, mas a precariedade da sua situação
ficará evidente se tiverem de enfrentar uma crise ou uma doença inesperada.
Parte do aumento recente da desigualdade está
relacionada à valorização do dólar perante a outras moedas do mundo. Quem não
vive nos Estados Unidos ou em países de câmbio fixo ficou, só por isso, mais
pobre em dólares. Em muitos países, esse efeito é neutralizado ou amenizado
pela queda do custo de vida local em moeda estadunidense. Mas quando se refere
às relações internacionais de poder e riqueza, esse empobrecimento é real, como
constata qualquer brasileiro ao viajar para o exterior, pagar por serviços de
internet ou, se está no topo da escala, ao negociar com bancos como o Credit
Suisse.
Para usar a terminologia do banco suíço, o número
de adultos na “base da pirâmide” (com menos de 10 mil dólares líquidos) cresceu
de 3,038 bilhões (68%) para 3,386 bilhões (71%), sua irrisória fatia no bolo da
riqueza mundial caiu de 4,2% para 3% e sua riqueza média, ou melhor, pobreza
média, caiu de 2,7 mil para 2,2 mil, um tombo de 26% em termos reais.
A camada do meio (10 mil a 100 mil dólares)
diminuiu de 1,045 bilhão (24%) para 1,003 bilhão (21%), sua parcela caiu de
16,5% para 12,5% e sua riqueza média passou de 30,7 mil para 31,2 mil, ilusão
monetária sobre uma queda real de 7,2%. Em 2000, 3,6% dessa camada vivia na
China, em 2010, pouco menos de um terço e hoje, 36%.
Os não milionários da camada superior (100 mil a 1
milhão de dólares) perderam em termos relativos. Seu contingente passou de 334
milhões (7,5%) para 349 milhões (7,4%) e sua participação na riqueza mundial
diminuiu de 43,7% para 39,4%. Em tese, não têm do que se queixar: em termos
absolutos, sua riqueza média passou de 254 mil para 282 mil dólares, com leve
aumento real de 1,3%.
Compare-se, porém, com o que aconteceu com os
milionários: seu número aumentou de 24,2 milhões (0,5%) para 34 milhões (0,7%)
e sua riqueza passou de 2,86 milhões para 3,32 milhões, o que significa um
aumento real de 6,1%. Sua fatia, já grande, aumentou de 35,6% para 45,2% e passou
a ser a maior de todas. A parte do Leão, por qualquer critério. O perfil
geográfico desse grupo também se concentrou. Cinco anos atrás, 41% viviam nos
EUA, hoje são 46%. Os únicos outros países com ganho perceptível de
participação foram o Reino Unido, que ao passar de 5% para 7% tomou o segundo
lugar por muito tempo ocupado pelo Japão, a China (de 3% para 4%), a Suíça (de
1% para 2%) e a Suécia (idem). Alguns caíram muito, inclusive Japão (de 10%
para 6%), França (de 9% para 5%) e Itália (de 6% para 3%).
O relatório não faz uma estimativa independente do
número de bilionários, mas, segundo a revista Forbes, ele aumentou de 1.011 com
uma riqueza total de 3,6 trilhões para 1.826 com um valor agregado de 7,05
trilhões. Em 2010, esse grupo possuía praticamente o mesmo que a metade mais
pobre da humanidade. Cinco anos depois, açambarca mais que o triplo. Basta
juntar num ônibus os 85 mais ricos (com 13,4 bilhões ou mais, incluídos os
brasileiros Jorge Paulo Lemann e Joseph Safra), para usar a imagem do Nobel de
Economia Joseph Stiglitz, para igualar a metade de baixo da pirâmide, 3,7
bilhões de seres humanos (2,4 bilhões das quais adultos), cujos patrimônios
somados igualam os mesmos 2,1 trilhões de dólares.
O relatório de 2015 do Credit Suisse inclui também
pela primeira vez um estudo da “classe média global” com critérios não
diretamente comparáveis ao da pirâmide acima. Esta foi definida como possuidora
de riqueza líquida de 50 mil a 500 mil dólares nos EUA em meados de 2015 e
valores equivalentes em outros países segundo o poder aquisitivo local do dólar
conforme a estimativa adotada pela instituição – por exemplo, de 13,7 mil a 137
mil dólares na Índia, 28 mil a 280 mil no Brasil ou na China e 72,9 mil a 729
mil na Suíça, de forma a obliterar o efeito da variação cambial. Em todo o
mundo, 664 milhões se encaixam nessa definição, com um patrimônio total de 80,7
trilhões (32% do total mundial), média de 121,5 mil per capita. Acima deles
estão 96 milhões, com 150 trilhões (60% do total), 1,56 milhão por proprietário.
As duas camadas juntas detêm, portanto, 92% de todos os bens do mundo.
É só nos países ricos que esse conceito de “classe
média” se aproxima daquilo que Piketty entende pelo termo, ou seja, aqueles
cujas posses estão acima da mediana, mas abaixo dos 10% superiores.
Nos menos
desiguais (Austrália, Cingapura, Bélgica, Itália e Japão) chega a constituir
60% da população ou mais. Mas no contexto mundial soma só 13,9% da população
(com outros 2% no topo) e é na realidade mais comparável às “classes abastadas”
de Piketty. Isso é verdade também para quase todos os países pobres e
emergentes. Qualificam-se como “classe média” 3% dos indianos, 4% dos
argentinos, 8,1% dos brasileiros, 10,7% dos chineses e 17,1% dos mexicanos. No
Brasil, em especial, essa “classe média” abrange quase toda a camada conhecida
pelos pesquisadores de mercado como A2 (3,6%) e a metade superior da B1 (9,6%),
ou seja, é a maior parte do que chamaríamos de “elites”. Acima dela, só a
classe dominante no sentido estrito, 0,6% dos brasileiros (a camada A1 conta
com 0,5%).
Apesar disso, hoje é a China o país com o maior
número de indivíduos na “classe média”: nada menos de 109 milhões, ante 92
milhões nos EUA. Onze outros países têm mais de 10 milhões: Japão, com 62
milhões; França, Itália, Alemanha, Índia, Espanha e Reino Unido, com 20 milhões
a 30 milhões; Austrália, Brasil, Canadá e Coreia do Sul, com 10 milhões a 17
milhões.
Que ninguém se engane: essa “classe média” é uma
elite em termos planetários, vive com conforto, tem em geral uma educação
superior e é muito relevante como consumidora, talvez também como contribuinte.
Porém, do ponto de vista do poder econômico e político e do interesse de grupos
financeiros internacionais, são os 29,8 milhões de milionários, no mínimo, que
contam. Aqueles com 5 milhões a 10 milhões de dólares são 2,5 milhões e com 10
milhões a 50 milhões, 1,3 milhão, mas o foco visível do interesse do Credit
Suisse está nos ultrarricos com mais de 50 milhões, que cresceram de 81 mil em
2010 para 124 mil em 2015 ou 0,0026% dos cidadãos do mundo. Destes, 59 mil
vivem nos EUA (48%), 30 mil na Europa (24%), 9,6 mil (9%) na China e Hong Kong
e 1,5 mil (1%) no Brasil. A Suíça tem 3,8 mil nessa categoria, mais que a
França (3,7 mil).
Esses multimilionários são o equivalente
aproximado, quanto ao seu número relativo, à classe senatorial da Roma antiga
(600 senadores, mais os filhos adultos, em uma população de 60 milhões) ou à
alta nobreza titulada nas grandes monarquias europeias do século XVIII (algumas
centenas em populações de dezenas de milhões). Os meros milionários podem ser
equiparados à classe curial da antiga Roma (mercadores, conselheiros e
funcionários municipais) ou à pequena nobreza não titulada da Europa
pré-revolucionária, ambas perto de 1% da população da época.
Conforme Piketty, as grandes novidades do século
XX, atribuídas por ele aos choques políticos e econômicos das duas guerras
mundiais, foram a redução da participação da classe dominante na riqueza, para
cerca de 20% do total em vez dos 50% tradicionais até 1913, e o surgimento de
uma verdadeira classe média, formada por algo como 40% da população e 35% ou
40% da riqueza. Sua parcela é constituída fundamentalmente de residência e bens
de consumo e poupanças, representando pouco poder econômico, mas uma razoável
segurança. Nas sociedades mais antigas, os 90% inferiores formavam uma massa
pouco diferenciada e possuíam 10% ou menos da riqueza social.
O relatório do Credit Suisse mostra uma sociedade
global cada vez mais próxima desses padrões antigos e medievais, e mais
distantes daqueles atingidos pelos países mais desenvolvidos nos anos do
pós-Guerra. Desde o início da era neoliberal, a riqueza acumula-se cada vez
mais no topo, enquanto as maiorias empobrecem em termos relativos e até
absolutos. As crises mostraram-se, sobretudo, oportunidades de radicalizar esse
processo: para conter as falências em massa que agravariam a crise, valores
imensos são mobilizados pelos Estados para financiar os poderosos, cuja
incompetência é premiada também com cortes de impostos, salários e direitos
trabalhistas, enquanto as massas pagam a conta com um salário congelado ou
reduzido e impostos mais altos, quando não perdem o emprego e se endividam
ainda mais.
O crescimento de alguns países emergentes,
principalmente a China, foi o único fator importante a contrariar essa
tendência geral, ao incorporar camadas maiores da população à “classe média”
mundial (apesar de, no caso chinês, isso também aumentar sua desigualdade
interna em relação às massas camponesas). Mas esse fator está em desaceleração,
ao passo que as pressões para privilegiar ainda mais os ricos e lhes dar maior
liberdade de ação estão em alta em quase toda parte e as crises em formação só
tendem a reforçá-las.
Fonte: CartaCapital
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