quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Ciência também pode ajudar a África.
Investir em pesquisas científicas pode ajudar a África a alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Foto: Busani Bafana/IPS.

Por Busani Bafana, da IPS – 

Bulawayo, Zimbábue, 22/1/2016 – O pequeno agricultor do Zimbábue, Augustine Sibanda, cultiva diferentes variedades de sorgo resiliente, que passam de geração em geração. Porém, pôde aumentar sua produção quando optou por sementes melhoradas, resultantes de várias pesquisas científicas. Sibanda, cuja propriedade fica no distrito de Jambezi, na semiárida província de Matabelelandia, é apaixonado pela agricultura, que pratica com inteligência buscando e aplicando novos conhecimentos.

O sorgo, um cereal resistente e nutritivo, é ideal para as condições de aridez características do sul do Zimbábue. Sibanda explicou que as variedades melhoradas, como a Marcia, lhe permitiram triplicar sua colheita, que gira em torno dos 500 quilos por hectare. Marcia é uma das 12 variedades melhoradas de sorgo desenvolvidas e distribuídas pela estação zimbabuense do Instituto Internacional de Pesquisa de Cultivos para os Trópicos Semiáridos (Icrisat), com a colaboração de cientistas e organizações públicas e privadas.

Graças à pesquisa agrária, Sibanda é um dos pequenos agricultores que impulsionam produção mediante variedades de sementes melhoradas e capazes de promover a segurança alimentar, um dos pilares dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), acordados por 193 países, em setembro de 2015. Os 17 ODS, com suas 169 metas, são o eixo da nova agenda de desenvolvimento e deverão ser cumpridos no prazo de 15 anos.

A possibilidade de cultivar alimentos suficientes de forma eficiente também motivou a ugandense Eveline Kwarikunda, no distrito de Kabale, sudoeste de Uganda. Kwarikunda, que mora na localidade de Bubaare, costumava espalhar as sementes ao acaso e esperar a temporada de colheita, mas isso acabou. Agora planta a variedade melhorada em fileira e deixando espaços, além de tirar o mato com frequência, o que triplicou sua produção.

A mudança de técnica para plantar não ocorreu de um dia para outro, reconheceu Kwarikunda, sendo mais o resultado do impulso coletivo e da consciência que adquiriu ao unir-se à Plataforma de Inovação de Bubaare (IP), uma estrutural formal, que reúne agricultores, pesquisadores, funcionários de extensão, autoridades e consumidores escolhidos ao longo da cadeia de valor de um produto básico específico ou de um sistema de produção.

“Colho cerca de 30 sacas de sorgo agorae, antes de me unir à IP, colhia só umas dez, porque não sabia muito sobre como cultivá-lo melhor. Na medida em que colocava em prática o que aprendia, consegui maior produção, isto é, mais dinheiro paraminha família”, contou a agricultora.
A ciência pode melhorar a produção agrícola e a nutrição e garantir a segurança alimentar na África. 

Foto: Busani Bafana/IPS.

Preocupados pela linearidade da pesquisa em matéria agrícola na África, e pela limitada participação de todos os atores do setor, o Fórum de Pesquisa sobre Agricultura Tropical (Fara), com sede em Gana, e o Centro para a Agricultura Tropical (Ciat) desenvolveram o conceito de Pesquisa Agrícola Integrada para o Desenvolvimento (IARD4D). É um conceito que foi promovido mediante plataformas de inovação, que ajudam seus membros a encontrar soluções inovadoras para desafios pontuais.

O investimento em ciência, tecnologia e inovação ajudará a África a cumprir os ambiciosos ODS e a melhorar a vida da população. A ministra de Ciência e Tecnologia da África do Sul, Naledi Pandor, afirmou, na abertura do Fórum de Ciência, realizado em Pretória no mês de dezembro, que o continente africano não podia avançar sem investir em pesquisa científica.

Pandor lamentou que a ciência não fosse uma prioridade do desenvolvimento, pois a África precisa de sistemas nacionais de inovação sólidos para traduzir ideias criativas em soluções para os desafios em matéria de desenvolvimento. “Lamentavelmente, a ciência não recebe atenção do governo, considera-se que é menos significativa do que a escassez de água, a segurança alimentar e as doenças. Mas todos esses problemas podem ser atendidos graças à ciência”, ressaltou a ministra.

Em 2007, os membros da União Africana se comprometeram a investir 1% de seu produto interno bruto em ciência e pesquisa até 2020. A ciência, a tecnologia e a inovação são fundamentais para a África conseguir os ODS, segundo Lucille Spini, diretora de programas de ciências do Conselho Internacional de Ciências (ICSU).

Spini apontou à IPS que “precisamos concentrar nossa atenção nas ciências sociais, por exemplo, em programas para construir capacidades a fim de conseguir um enfoque integrado para alcançaros ODS”. O ICSU colabora com o Conselho Internacional de Ciências Sociais para promover um enfoque integrado, destacou.

Segundo o Banco Mundial, a África deve reduzir sua falta de capacidades e incorporar mais estudantes às áreas de ciência, tecnologia, engenharia e matemáticas, para impulsionar o desenvolvimento com apoio científico. O órgão destaca que o continente deve produzir os cientistas que a indústria necessita.Além disso, a competitividade a África está em perigo,por causa da fuga de cérebros, da falta de infraestrutura adequada, de más políticas científicas e da discrepância entre a pesquisa científica e as necessidades da indústria.

O pesquisador zimbabuense Mandi Rukuni, também analista de políticas de terras e professor de economia agrícola, disse à IPS que a África deve mirar no investimento em pesquisa científica para enfrentar os desafios da produtividade, comercialização e adoção de tecnologias que têm pela frente os pequenos agricultores, os quais alimentam o continente.“A ciência deve oferecer soluções para empresas de agricultores jovens e mulheres, mas a pesquisa se concentra no laboratório e no terreno, mas não nas pessoas que mais precisam das soluções científicas”, pontuou.

A maioria das tecnologias promovidas para os pequenos produtores não era adequada para eles, mas para grandes agricultores, pois destaca o uso de tratores e de uma enorme quantidade de insumo como fertilizantes.A ciência, a tecnologia e a inovação são consideradas cruciais para o desenvolvimento do continente na Agenda da África 2063, um mapa do caminho para os próximos 50 anos, adotado pelos chefes de Estado e de governo africanos.

O documento pede que se atue para“catalisar a educação e uma revolução de capacidades, além de promover ativamente a ciência, tecnologia, pesquisa e inovação, a fim de construir conhecimentos, capital humano, capacidades e habilidades para impulsionar a inovação”.

A riqueza da África em recursos naturais e minerais a torna atraente para os investimentos, mas isso supõe numerosos desafios na hora de garantir melhor educação, saúde, energia, água e moradia para sua população de mais de 1,2 bilhão de pessoas.


Fonte: ENVOLVERDE
Ano começa com luta contra desigualdade.

A desigualdade entre ricos e pobres é um dos temas da assembleia anual do Fórum Econômico Mundial, na cidade suíça de Davos. Foto: Pablo Unzueta/IPS.

Por Jenny Ricks, da IPS – 

Davos, Suíça, 22/1/2016 – Agora que a maioria das pessoas já se esqueceu de seus propósitos de Ano Novo, a atenção se concentra no que nos reserva 2016. E assim é para aqueles que querem resolver os maiores problemas do mundo. Entreos dias 20 e 23, políticos e empresários se reúnem em Davos para a assembleia anual do Fórum Econômico Mundial, e uma vez mais a desigualdade está na ordem do dia.

O consenso geral é que estamos vivendo uma crise de desigualdade e que a brecha que separa os mais ricos do resto da população tem uma profundidade que não se via em um século. Então, qual é a diferença em 2016? A iniquidade já é reconhecida como um fator social e economicamente nocivo por toda uma gama de pessoas influentes, como o papa Francisco, e instituições como o Fundo Monetário Internacional e a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômicos.

Não há escassez de reconhecimento de pelo menos uma parte do problema.E todos os países se comprometeram a combatê-la,por meio dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), conhecidos como a Agenda 2030, e o acordo climático acordado em Paris, em dezembro.Porém, o problema está longe de ser resolvido. A crua realidade, em contraste com esses compromissos, é que a desigualdade não está retrocedendo e os países e as instituições que pretendem combatê-la continuam aplicando as estratégias do status quo que exacerbam a iniquidade.

Então, o que se pode fazer? O desafio agora é passar do reconhecimento do problema para a solução. Para isso precisamos de três coisas: mudança nas políticas, mudança no poder, mudança na mentalidade e nas ideias referentes à forma como ocorrerá essa mudança.

A sociedade civil compreende claramente a contradição que existe entre o discurso e a realidade, bem como os próprios pobres que sofrem a pior parte dessa desigualdade e com os quais a ActionAid trabalha em todo o mundo. Eles não esperam que os líderes do mundo mudem sua forma de proceder, estão ocupados combatendo a iniquidade desde a raiz e criando uma nova realidade.

No dia 20, os dirigentes de uma diversidade de grupos de desenvolvimento, religiosos, sindicatos e organizações dedicadas ao ambiente, aos direitos da mulher e aos direitos humanos se reuniram para explicar o que falta fazer para lidar realmente com a desigualdade e se comprometer a redobrar a luta. Esta é umanotícia que entusiasma.

Por que esse problema tem importância para tal diversidade de grupos? “A crise de desigualdade ameaça as lutas por um mundo melhor. Os trabalhadores de todo o mundo vêm como os salários e as condições de trabalho são socavados, na medida em que aumenta a iniquidade. Os direitos das mulheres são sistematicamente piores em situações de maior desigualdade econômica”, denuncia uma declaração conjunta dessas organizações.

A grande maioria das pessoas mais ricas do mundo é de homens. Quem realiza os trabalhos mais precários e mal remunerados são as mulheres. Os jovens enfrentam uma crise de desemprego.Outros grupos – como os imigrantes, as minorias étnicas, pessoas com deficiências, lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, intersexuais e os povos indígenas – continuam sendo marginalizados e sofrem uma discriminação sistemática. Essas disparidades na riqueza e no poder prejudicam constantemente a luta para tornar realidade os direitos humanos da maioria.

Frequentemente, a extrema desigualdade também está relacionada com o aumento das restrições ao espaço cívico e aos direitos democráticos, já que as elites políticas e econômicas confabulam entre si para protegerem seus interesses.O direito ao protesto pacífico e a capacidade dos cidadãos para desafiar o discurso econômico dominante estão sendo restringidos em quase todas as partes, porque as elites sabem que a desigualdade extrema e a democracia participativa não podem coexistir por muito tempo.

Inclusive o futuro do nosso planeta depende de que se acabe com essa grande fratura, já que o consumo de dióxido de carbono por parte de 1% da população equivale a 175 vezes mais o consumo dos mais pobres.Embora o caminho seja árduo, sabemos que a mudança para forjar um novo sistema econômico, que coloque as pessoas e o planeta em primeiro lugar, somente será possível por um movimento popular.

Este não é um ano de cúpulas e compromissos de alto perfil. É um ano para construir o poder debaixo para cima e gerar um movimento em muitos países com estes grupos e outros que inclua os movimentos sociais e os jovens.Há motivos para a esperança e existe experiência para construir.

Sabemos que isso é possível porque vemos em nosso trabalho com comunidades em todo o mundo, por alguns exemplos positivos atuais e períodos anteriores de redução da desigualdade em países como o Brasil, e porque as pessoas ganharam grandes lutas no passado. Essa nova luta contra a desigualdade começou seriamente.

*Jenny Ricks é diretora da Iniciativa Contra a Desigualdade, da organização humanitária ActionAid International.


Fonte: ENVOLVERDE
Agora é oficial: 2015 foi o ano mais quente.
Foto: Reprodução/Nasa

Combinação de El Niño e mudança climática fizeram temperaturas 0,13 grau mais altas que recorde de 2014 e 1 grau Celsius mais altas do que a média pré-industrial, confirmam agências.

Por Cíntya Feitosa, do OC –

Três agências governamentais dos EUA e do Reino Unido confirmaram de forma independente nesta quarta-feira (20) a notícia que já era aguardada desde os últimos meses do ano passado: 2015 desbancou 2014 e foi o ano mais quente desde que os registros globais de temperatura começaram, em 1880.

Segundo a Nasa (agência espacial dos EUA) e a Noaa (Administração Nacional de Oceanos e Atmosfera, também dos EUA), o ano passado teve uma média de temperatura 0,13oC mais alta do que 2014. O Met Office, serviço de meteorologia do Reino Unido, afirmou que a temperatura do ano ficou 0,75oC mais alta do que a média de 1961 a 1990. Todas as três agências apontaram – numa coincidência rara entre entidades que usam modelos e bases de dados diferentes – que o ano passado teve temperatura 1 grau Celsius mais alta do que a média pré-industrial.

O ano que passou ficou marcado por eventos climáticos extremos em todo o mundo – seca e incêndios nos EUA, recordes de temperatura no verão de países europeus, onda de calor que deixou milhares de mortos na Índia, calor acima da média na Rússia, na China e na América do Sul, com algumas capitais brasileiras batendo recordes históricos de temperatura, ciclones extratropicais como o Patricia, inundações na Ásia, entre outros.

A combinação das mudanças climáticas globais, causadas pelo acúmulo de gases de efeito estufa na atmosfera, e de um forte El Niño está provavelmente por trás do tamanho do recorde – a última vez que um recorde de alta de temperatura global foi batido com tanta folga foi justamente em 1998, outro ano de El Niño forte. O El Niño é um ciclo natural de aquecimento no Oceano Pacífico, que tem um impacto sobre o clima global, elevando os termômetros.

Gavin Schmidt, diretor do Centro Goddard de Pesquisas Espaciais, diz, no entanto, que o recorde teria sido batido mesmo na ausência de um El Niño em 2015. “O ano de 2015 não começou com um El Niño”, afirmou o pesquisador. Segundo ele, o impacto do fenômeno na temperatura da superfície só é sentido seis meses mais tarde. Isso ajudaria a explicar as altíssimas temperaturas de outubro, novembro e dezembro, e permite também prever que 2016 será um ano ainda mais quente que 2015. Mas não explica o restante do ano passado.

“O recorde que tivemos é apenas um sintoma da tendência de longo prazo”, afirmou. “E não temos nenhuma evidência de que a tendência de longo prazo esteja mudando nas últimas décadas.” Este século teve 15 dos 16 anos mais quentes.
José Marengo, climatologista chefe de pesquisas do Cemaden (Centro de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais), diz que muitos dos eventos climáticos vivenciados no Brasil no último ano, como inundações nas regiões Sul e Norte, calor no Centro-Oeste e seca no Sudeste e Nordeste, refletem os dados confirmados pelas agências internacionais. Segundo ele, o El Niño ainda deve atingir seu pico nos próximos meses, e os brasileiros continuarão a sentir seus efeitos. “Porém, não foi só o El Niño”, reforça o pesquisador. “O que estamos vivendo hoje é consequência de décadas de emissões de gases de efeito estufa. Os anos anteriores, que não tiveram El Niño, também foram mais quentes, não é mais atípico.”

Acordo do Clima

Na COP21, a conferência do clima das Nações Unidas que ocorreu em Paris no fim de 2015, os países de todo o mundo concordaram em agir para limitar o aquecimento do planeta abaixo dos 2 graus em relação à era pré-industrial, com o esforço de buscar um limite em 1,5ºC. O “teto” em 2 graus Celsius tem como base recomendações do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), que alerta para a possibilidade de graves consequências das mudanças climáticas caso o mundo aqueça mais do que isso.

Para cumprir a missão, o mundo inteiro deve adotar medidas de redução de emissões de gases de efeito estufa, a um ritmo acelerado. Análises sobre as metas voluntárias de redução de emissões apresentadas pelos governos às Nações Unidas mostram que caminhamos para um planeta de 2,7ºC a 3,5ºC mais quente do que era antes da industrialização.

Os cientistas da Nasa e da Noaa foram claros em dizer que os dados apresentados hoje não possibilitam a projeção para o futuro, apesar da já observada tendência de aquecimento nos últimos anos. Gavin Schmidt disse que “nada de especial aconteceu” com o que foi decidido na COP21 a partir dos números divulgados hoje. “Os dados servem para que os formuladores de políticas decidam o que fazer”, disse o pesquisador. “O importante para reverter a tendência de aquecimento é quão rápido vamos reduzir as emissões.”

José Marengo ressalta que, mesmo que haja redução significativa de emissões, as regiões mais vulneráveis precisam estar preparadas. “Com as medidas de Paris estamos pensando no clima futuro. Para os impactos que já estamos vivendo no presente, temos que pensar em medidas de adaptação.”


A sustentabilidade e o desastre em Mariana.
Bombeiros fazem busca por desaparecidos em Bento Rodrigues. Foto: Antonio Cruz/ Agência Brasil.

Uma análise sobre os impactos social, ambiental e econômico da tragédia –

Por Isabela Balau Garcia e Julia Maillet Lenzi*

O caso do rompimento da barragemdo Fundão, ocorrido no dia 05 de novembro de 2015, no município de Mariana, estado de Minas Gerais, evidencia a necessidade de agregar ao modelo de negócios das empresas aspectos relacionados à sustentabilidade e gestão de riscos. Entender e considerar os impactos que a atividade econômica das organizações pode causar à sociedade, ao meio ambiente e à economia deve ser prioridade na tomada de decisão, de modo que os riscos mapeados sejam totalmente inseridos e mitigados, a fim de prevenir externalidades negativas inerentes ao negócio.

No caso de Mariana, por exemplo, uma das possíveis causas do desastre foique a distância entre os rejeitos da mineradora e a barragem não era suficiente, tanto do ponto de vista de estrutura de projeto quanto em caso de desestabilização da pilha de rejeitos,ou por conta de algum processo de erosão natural do solo.

Não só a quantidade de resíduos gerada deveria ter sido considerada, mas também os impactos decorrentes de sua composição, em caso de rompimento da estrutura da barragem. O laudo solicitado pelo Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAEE) de Baixo Gandu (ES), em 12 de novembro de 2015, mostra alta concentração de uma série de metais pesados na lama, entre eles arsênio, chumbo e manganês.

Ainda assim, mesmo sem ser apresentada como uma mistura tóxica, a lama resultante do rompimento da barragem contém metais pesados em concentração suficiente para prejudicar os ecossistemas, com impactos nos rios, na fauna, no solo e na agricultura.

Dentre esses impactos ambientais, podemos listar a desestruturação química e infertilidade do solo, a destruição da vegetação local, o assoreamento dos rios, soterramento de nascentes e mudança na biota, entre outros.

Do ponto de vista da Samarco, há de se considerar também os impactos econômicos gerados após o desastre, tais como:encerramento da operação no local, custo de reparação da área degradada, ações judiciais e respectivas penalidades, custos de imagem, entre outros, que serão enfrentados pela organização no curto e médio prazo.

Nesse mesmo contexto econômico, uma Ação Civil Pública foi impetrada pela União e pelos governos do Espírito Santo e Minas Gerais contra a Samarco e suas controladoras decretando a suspensão dos bens das empresas, de modo que sejam garantidos recursos financeiros suficientes para a reparação dos impactos ambientais causados, estimados em R$ 20 bilhões.

Além dessa, outras 18 medidas judiciais – 17 no Brasil e 01 no exterior – já estão em andamento contra a Samarco e suas controladoras. Conforme divulgado site EM (até o dia 10 de dezembro passado, já seriam 13 ações civis públicas em Minas Gerais, Brasília, Rio de Janeiro e Espirito Santo; 02 ações coletivas, uma delas nos Estados Unidos, 01 ação popular e uma ação cautelar. Partindo do IBAMA, constavam até o dia 10 de janeiro de 2016, 37 notificações contra a Samarco e uma multa de R$ 250 milhões.

Dado que cerca de 80% das atividades do município estavam ligados à mineradora, é possível citar impactos sociais em larga escala, como desemprego, redução da atividade econômica local e, portanto, geração e distribuição de renda.

Soma-se a esses impactos sociais a disseminação de doenças, o elevado número de desabrigados, indisponibilidade de recursos e o risco de contaminação da população, causado pela ingestão de água e alimentos que tiveram contato com a lama.

Há de se considerar também os danos decorrentes das perdas materiais. São as referências de uma vida comunitária que foram perdidas, as relações interpessoais, a vizinhança, o sentimento de pertencimento à aquela comunidade e todas as referências da memória coletiva de um povo. Os ribeirinhos enfrentam agora essa situação, que não se pode estimar em números, mas que são igualmente danosas.

Os impactos ambientais da tragédia de Mariana parecem incontáveis, sejam reversíveis ou irreversíveis. Contaminação da água e do solo, impactos no ecossistema como um todo (aquático, marinho, terrestre), perda de biodiversidade, assoreamento dos rios e eliminação da mata ciliar são apenas alguns dos muitos pontos a serem analisados a respeito. De acordo com reportagem da BBC Brasil, divulgada em 22 de dezembro de 2015, foram liberados em torno de 60 milhões de metros cúbicos de lama, que já percorreram 700 kms até a foz do Rio Doce, no Espirito Santo. Em dados preliminares, estima-se que cerca de 263,1 km2 de área mínima afetada pela lama, 379 km2 de áreas de agricultura e pastagens e 1.469 ha devastados, sem considerar o encontro da lama com o Rio Doce.

A adoção de medidas em caráter de urgência não remediará os danos causados por um projeto que não considerou eventuais riscos e impactos internos e externos. O caso da barragem de Mariana evidencia que a análise e atuação preventiva das organizações, do ponto de vista de mitigação de impactos negativos ao meio ambiente, à sociedade e à geração de valor do negócio, são essenciais para a condução de negócios rentáveis e sustentáveis, e evitam os custos inevitavelmente superiores após o impacto negativo gerado.

Ao analisar as informações apresentadas no Relatório de Sustentabilidade da Samarco de 2014, ano anterior ao desastre , encontramos o retrato de uma empresa comprometida com as questões ambientais e sociais. De acordo com dados do Relatório, foram investido em 2014 R$ 88,3 milhões em projetos, equipamentos e tecnologia, e, nos últimos anos, R$ 80 milhões em segurança do trabalho. Apesar disso,estes investimentosestão relacionados ao crescimento financeiro e aumento da produtividade da Samarco, em detrimento de valores que legalmente deveriam ser destinados ao cumprimento das exigências ambientais, e não foram.

Apesar da declaração feita à mídia pelos diretores da Samarco, não existia, há época do acidente,um plano detalhado de alerta à comunidade em caso de situações de emergência para barragens, como prevê a Resolução 526/2013 do DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral).

No que tange ao tratamento de resíduos, “lama”, a Samarco divulgou os seguintes números “em 2014, a geração de rejeitos resultantes atingiu 21,978 milhões de toneladas, entre arenosos e lamas. Já a massa movimentada de estéril, realizada para liberar minério no avanço da lavra, registrou 5.988.493 toneladas métricas naturais”. De acordo com o Relatório, “todo o rejeito (materiais arenosos e lamas) gerado na etapa de beneficiamento do minério de ferro é armazenado em um sistema, composto das barragens de Germano e de Fundão e do empilhamento na Cava do Germano, na unidade de Germano (MG). A água proveniente desse processo é tratada nas Estações de Tratamento de Efluentes Industriais (Eteis) e armazenada na barragem de Santarém, onde parte é bombeada para reutilização no processo.

Já o estéril é disposto, em conformidade com os procedimentos de segurança e as leis ambientais, ao longo das pilhas de estéril João Manoel e Alegria Sul. A análise e o controle de riscos são realizados por meio da metodologia FailureModesandEffectsAnalysis (FMEA), que avalia o potencial de ocorrências e falhas nas barragens, bem como as consequências potenciais sobre a saúde e a segurança das pessoas e do meio ambiente”.

Novamente, surge uma incongruência entre as informações divulgadas no Relatório e os fatos apresentados. O Ministério Público Federal ainda investiga as causas de rompimento da barragem, mas já foram apontados: o grande aumento de rejeitos depositados, a mudança feita na estrutura da barragem para aumentar a capacidade do reservatório e a utilizado a barragem de Fundão, pela Vale, sem licença dos órgãos fiscalizadores.

O processo de identificação de todas consequências econômicas, sociais e ambientais ainda está longe de ser finalizado e talvez nunca o seja. Desde o dia do desastre até hoje estamos assistindo ao delinear de uma história que conta, entre tantas outras coisas, como são tratadas as questões de cunho ambiental e social no Brasil.

O desastre em Mariana nos mostra, em uma proporção gigantesca, a negligência em relação às questões socioambientais. Enfraquecimento do processo de licenciamento ambiental – que pode ser agravado, pois tramita o Projeto de Lei do Senado, nº 654/2015 – Desrespeito ao Código Florestal, Política Nacional do Meio Ambiente e uma série de outros dispositivos legais; Supremacia dos interesses econômicos sobre as questões socioambientais, a partir da geração de valor não sustentável.

* Isabela Balau Garcia, economista e especialista em sustentabilidade pela Unicamp e em finanças pela FGV – isabelabalau@gmail.com; e Julia Maillet Lenzi, advogada ambiental, especialista em agronegócios pela USP e diretora executiva da Valor Verde Consultoria – julia@valorverdeconsultoria.com.br


Fonte: ENVOLVERDE
A nova legislação eleitoral resolverá?
Por Washington Novaes*
Com a comunicação ainda destacando notícias de eventual processo de impeachment presidencial no Congresso e de propostas para o País caminhar rumo ao sistema parlamentarista (se aprovado em referendo), começa-se também a mergulhar no noticiário sobre as próximas eleições locais de 2 de outubro em 5.561 municípios brasileiros – embora legalmente a campanha só possa começar 45 dias antes do pleito, em 16 de agosto, nas ruas e em 26 de agosto no rádio e na televisão (antes eram 90 dias). Nos meios eletrônicos haverá blocos de dez minutos diários, de segunda-feira a sábado; mas os candidatos a vereador só terão inserções ao longo da programação. E as pesquisas de intenção de voto devem ser registradas na Justiça Eleitoral.

Mesmo nas eleições municipais, entretanto, ainda são muitas as polêmicas, em particular quando se trata da proibição de empresas financiarem candidatos. Há quem pense que essa legislação vai favorecer candidatos já no exercício de mandato – na medida em que, para chegar lá, tiveram em outras eleições altos financiamentos empresariais e, por isso mesmo, já são mais conhecidos –, em detrimento de candidatos novos.

Outra crítica que vem sendo feita à nova legislação está no risco de serem ampliados, com essa proibição às empresas, os financiamentos do narcotráfico a alguns ou muitos candidatos, uma vez que estes não incluirão tais financiamentos em suas prestações de contas (se o fizerem, suas candidaturas serão impugnadas). Também surgem críticas aos limites de financiamentos proporcionais à população dos municípios: naqueles com até 10 mil eleitores, o limite de gastos estará em R$ 100 mil; nos de maior eleitorado, em 50% a 70% do maior gasto declarado nas últimas eleições para cada cargo (Estado, 11/12/2015).

Uma terceira vertente das restrições: candidatos que pertençam a coligações com fundo partidário também levariam vantagem.

Não será fácil o desfecho. Como tem observado o ministro Dias Toffoli, do Tribunal Superior Eleitoral (Estado, 25/12/2015), em 2012 nada menos que 75% das doações para as campanhas eleitorais saíram de empresas; em 2014, mais de 90% dos candidatos foram financiados por pessoas jurídicas. E isso num panorama complexo, em que saímos de cinco partidos em 1981 para 35 siglas partidárias em 2015; no Congresso estão parlamentares de 28 partidos, cada um dos candidatos querendo inserções nos horários eleitorais.

Para escapar a esse quadro complexo e confuso propõe o ministro Toffoli “adotar o sistema alemão”, em que o eleitor “vota duas vezes – primeiro no candidato do seu distrito, da região ou localidade e depois na lista de um partido; e esse voto em lista é que deve ser proporcional; metade das vagas é escolhida pelo voto em lista e outras metade pelo voto distrital”. Na sua opinião, o atual sistema eleitoral – “se não for atacado” – fragiliza os governos; em 2014 o partido que fez mais deputados obteve 12% das cadeiras do Parlamento. O sistema “continuará ingovernável”.

É inevitável que venha à memória do autor destas linhas o que testemunhou na década de 1990 em Paris – e que pode já ter relatado neste espaço. Era um domingo tranquilo e pacífico como qualquer outro, embora estivessem sendo realizadas ali eleições distritais. Não se via um cartaz, uma faixa, um outdoor, um panfleto. Nenhuma passeata, nenhum comício, nada. O prestígio dos candidatos devia-se ao conhecimento que os eleitores tinham, no seu dia a dia, de quem receberia seus votos e de suas propostas, sem necessidade de propaganda; sem necessidade de grandes verbas e financiamentos para torná-los conhecidos; sem verbas fabulosas.

Vale a pena citar informações divulgadas pelo jornal O Popular, de Goiânia (15/1). Na capital goiana, o limite gastos de candidatos a prefeito e vereador nas próximas eleições não poderá ultrapassar 70% da maior despesa declarada no primeiro turno da campanha de 2012; o teto será de R$ 4,24 milhões para candidatos a prefeito, ou R$ 5 por eleitor; na cidade vizinha de Aparecida de Goiânia, R$ 3,3,5 milhões, R$ 13 por eleitor; em Anápolis, R$ 434,2 mil, ou R$ 1,80 por eleitor; em Cristalina, R$ 1,47 milhão, ou R$ 49,15 por eleitor. Esses valores ainda serão atualizados pelo tribunal eleitoral em julho, seguindo a correção da inflação no primeiro semestre. Que explicaria diferenças tão grandes, a não ser o custo da propaganda sob várias formas?

Não têm sido apontadas até agora mudanças nos sistemas eleitorais que permitam corrigir as distorções mencionadas nestas linhas, e que não sejam a introdução do parlamentarismo em nível nacional e do voto distrital nas eleições para as câmaras legislativas. E ainda com a adoção do sistema de “recall”, em que o eleitor em cada distrito pode recorrer a esse instituto para, nas condições determinadas pela legislação, pedir a destituição do candidato eleito em quem votou. Isso exigirá que acompanhe dia a dia, passo a passo, o desempenho do candidato em quem votou, sua fidelidade às propostas que seduziram o eleitor – e as razões concretas de sua insatisfação.

Também levará o cidadão a aperfeiçoar seu conhecimento sobre os negócios públicos e não se limitar à condenação dos eleitos nos casos alegados de desonestidade, corrupção. Aperfeiçoará a formação política do cidadão e poderá até levá-lo a candidatar-se em algum momento. Implicará benefícios concretos para a comunidade.

A Constituição da República completou 27 anos, promulgada que foi em 5 de outubro de 1988, quando Ulysses Guimarães, com o texto aprovado pelo Congresso à mão, disse: “Declaro promulgado o documento da liberdade, da dignidade, da democracia, da justiça social no Brasil. Que Deus nos ajude para que isso se cumpra.” Portanto, como diz o extraordinário constitucionalista José Afonso da Silva, “a Constituição Federal tem elementos para resolver essa crise dentro dos parâmetros democráticos”.

* Washington Novaes é jornalista (e-mail: wlrnovaes@uol.br).


terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Um mundo tão desigual é viável?
Relatório anual do Credit Suisse revela que a concentração de renda no planeta está aumentando. 

Para a diretora da Oxfam Brasil, Kátia Maia, essa desigualdade prejudica a todos, inclusive aos mais ricos, citando, como exemplo, a violência.

Cerca de 1% da população mundial detém quase 50% da riqueza produzida no planeta. Os outros 99% dividem, em partes também desiguais, os cerca de 50% restantes. A informação não é de uma organização pequena ou que pudesse ser acusada de ter viés ideológico, mas, sim, de uma instituição financeira respeitada mundialmente, o banco Credit Suisse. E, pior, segundo o estudo, a concentração da riqueza está aumentando. A pesquisa levou em conta dados patrimoniais de 4,8 milhões de adultos procedentes de mais de 200 países. Os números são estarrecedores. Uma sociedade tão desigual é viável em longo prazo? O que esses algarismos significam em termos humanos? Por que se chegou a tal ponto? O que fazer para mudar esta realidade?

Para responder essas e outras questões sobre o assunto, a Ser Médico entrevistou a diretora executiva da Oxfam Brasil, a socióloga Kátia Maia.

A sigla vem de Oxford e Famine (Oxford Committee for Famine Reliefe/Comitê de Oxford para o Alívio da Fome). Trata-se de uma confederação internacional de organizações, formada atualmente por 20 afiliadas operando em mais de 90 países, com o objetivo de desenvolver ajuda humanitária e projetos para combater as desigualdades sociais no mundo.

Ser Médico – O banco Credit Suisse divulgou, em outubro último, seu relatório anual (Global Wealth Report 2015) sobre a distribuição da riqueza global, apontando que a concentração de renda no mundo e, portanto, as desigualdades sociais, aumentaram ainda mais em relação ao estudo feito pela mesma instituição em 2014. Segundo o documento, quase metade da riqueza do planeta está nas mãos de menos de 1% da população. O que esses números significam em termos humanos?

Kátia Maia – A Oxfam Internacional lançou, em janeiro de 2014, o relatório Working for a few (Trabalhando para poucos), que utilizou dados do relatório do banco Credit Suisse. As análises dos números são chocantes. Como é possível conviver com o fato de que as 85 pessoas mais ricas do mundo são donas do equivalente ao que a metade da população mais pobre do planeta tem? Entre março de 2013 e março de 2014, essas 85 pessoas aumentaram suas riquezas em 668 milhões de dólares diariamente! São números assustadores. Mais que isso, eles expressam uma profunda injustiça sobre a qual o nosso planeta está assentado. É inaceitável! É desumano! Num planeta onde mais de 700 milhões de pessoas ainda passam fome, como é possível continuar com tamanha concentração de riqueza? Essa desigualdade extrema reforça e alimenta outras desigualdades, como as existentes entre homens e mulheres, entre brancos e negros.

O que tem provocado esse aumento da concentração de renda?

Em outro relatório lançado pela Oxfam Internacional, em outubro de 2014, chamado Equilibre o Jogo, que trata da desigualdade econômica extrema, nós apontamos algumas causas e, em especial, destacamos dois motores econômicos e políticos da desigualdade, que podem contribuir para explicar os extremos que vemos hoje: o fundamentalismo de mercado e a captura do poder pelas elites econômicas. Como demonstrou o economista francês Thomas Piketty, em O Capital no Século XXI, sem a intervenção do Estado, a economia de mercado tende a concentrar a riqueza nas mãos de uma pequena minoria, fazendo com que a desigualdade aumente. Apesar disso, nos últimos anos, o pensamento econômico tem sido dominado por uma abordagem fundamentalista, que insiste na ideia de que o crescimento econômico só é alcançado reduzindo a intervenção do Estado e deixando que o próprio mercado se organize. Isso prejudica, principalmente, a regulação das atividades econômicas e a tributação, necessárias para enfrentar a desigualdade. A influência e os interesses de elites econômicas e políticas vêm, há muito tempo, reforçando a desigualdade. O dinheiro compra influência política, que os mais ricos e algumas empresas usam para consolidar ainda mais suas vantagens injustas e, em alguns casos, até ilegais. Um exemplo é a incapacidade de muitos países em reformar os seus sistemas fiscais para garantir uma progressividade na arrecadação de impostos, de forma que os mais ricos paguem, proporcionalmente, mais que os mais pobres.

E no Brasil, como a Oxfam vê a questão da concentração de renda?

O Brasil apresenta avanços no enfrentamento da concentração de renda, mas ainda insuficiente para que possamos sair do lugar de destaque que ainda ocupamos no ranking da desigualdade mundial. Os programas de distribuição de renda, como o Bolsa-Família, e o aumento do valor real do salário mínimo nos últimos 15 anos foram fatores fundamentais para esse avanço. Porém, ainda estamos longe de solucionar o problema. O País precisa de uma reforma tributária que efetivamente possibilite a redistribuição de recursos daqueles que têm mais para aqueles que mais precisam. Sabemos que quem tem mais renda e patrimônio aqui paga menos imposto. Isso sem contar o tema da evasão e sonegação fiscal. Ou seja, precisamos de justiça fiscal.

A Oxfam tem dados da concentração de renda no Brasil?

O Brasil tem grande produção de dados estatísticos que permitem dimensionar a desigualdade de renda. Mas a verdadeira desigualdade se mede sobre a riqueza, e ela inclui patrimônio, não é só renda. Apenas recentemente a Receita Federal começou a disponibilizar as informações sobre patrimônio, provavelmente influenciada pelo trabalho de Piketty. A Oxfam Brasil vai elaborar um relatório sobre desigualdades em nosso país, que deverá ser lançado no próximo ano. Mas já podemos dizer que o Brasil ainda é um país patriarcalista, machista e racista, e essa cultura se reflete nas instituições. Por exemplo, na política fiscal, o nosso sistema tributário atual é extremamente regressivo e recolhe a maioria dos impostos de maneira indireta e sobre o consumo, enquanto a renda e o patrimônio são menos taxados. Proporcionalmente, isso onera mais as famílias pobres, o que, consequentemente, onera mais os negros e as mulheres. Esse modelo institucionaliza e perpetua a desigualdade. A participação política também é extremamente influenciada pela nossa cultura excludente e pelas elites econômicas. No Congresso Nacional, as mulheres e os negros representam menos de 10% dos parlamentares, enquanto são mais de 50% da população.

Como a desigualdade pode impactar o mundo?

As desigualdades de gênero, raça e econômica, além de serem eticamente inaceitáveis, afetam as economias do mundo, pois excluem milhões de pessoas que poderiam estar contribuindo para a construção de uma sociedade mais igualitária e não, como ocorre, vivenciando uma situação de desagregação social. Essas desigualdades também prejudicam o crescimento econômico, gerando uma “captura” da riqueza produzida e impedindo a construção de uma sociedade mais justa baseada no bem-estar social. A desigualdade prejudica a todos, inclusive aos mais ricos. Um exemplo disso é a violência. Segundo o escritório das Nações Unidas para Drogas e Crimes (Unodc), as taxas de homicídios são quase quatro vezes mais altas em países com desigualdade econômica extrema do que em nações mais igualitárias. Em última instância, a desigualdade econômica extrema pode inclusive trazer ameaças aos regimes democráticos. Com o poder econômico acumulado nas mãos de um pequeno setor da população, a influência deste sobre o Estado passa a causar distorções no sistema político e nas políticas públicas. Com isso, governantes se veem submetidos aos interesses da minoria, e isso pode levar a grande insatisfação social, gerando revoltas e conflitos.

Esse cenário torna mais difícil a missão da Oxfam, no sentido de buscar soluções para o problema da pobreza e da injustiça?

Sem dúvida. O aumento da desigualdade faz parte da nossa agenda de trabalho. Em nossa visão, é impossível avançar no combate à pobreza sem lutar contra as diversas desigualdades existentes que contribuem para a perpetuação das injustiças.

A Oxfam vê alguma alternativa para mudar esse quadro?

Seguramente existem alternativas. E elas passam pela mobilização dos cidadãos, das organizações dos diferentes setores da sociedade, e devem ser construídas de maneira democrática. A Oxfam defende algumas medidas para contribuir com esse debate, entre as quais: a implementação de uma política fiscal progressiva sobre a riqueza e a renda; o estabelecimento de alternativas aos modelos de concentração de riqueza, renda e terras, oferecendo dados e medindo a desigualdade nas avaliações de impacto das políticas públicas; o fim à captura política e o estabelecimento da priorização dos interesses da maioria sobre os privilégios de poucos; e a garantia da igualdade de direitos e poder entre homens e mulheres, brancos e negros.

Como a Oxfam atua para alcançar esses objetivos?

A Oxfam atua em parceria e aliança com outras organizações da sociedade civil, movimentos sociais, governos, empresas e outros setores que buscam enfrentar e encontrar soluções para a pobreza e a desigualdade, no âmbito nacional e/ou global. Nós temos uma abordagem baseada nos direitos humanos e acreditamos que todas as pessoas têm o direito de desenvolver seu potencial, de viver fora da pobreza e em um mundo menos desigual. Nós atuamos em situações de emergência, nas quais é necessária a ajuda humanitária, desenvolvemos programas e projetos de longo prazo e fazemos campanhas para influenciar tomadores de decisão e a sociedade.

Como e quando a Oxfam surgiu?

A Oxfam surgiu na Inglaterra, em 1942, no contexto da Segunda Guerra Mundial, para ajudar pessoas que estavam passando fome em países europeus. Um grupo de cidadãos de Oxford resolveu pressionar os aliados para quebrar o bloqueio na Europa e permitir o envio de alimentos para a Grécia e Bélgica com o objetivo de aliviar a fome dos civis daqueles países. Naquela época, o nome da organização significava Oxford Committee for Famine Reliefe (Comitê de Oxford para o Alívio da Fome). Nesses mais de 70 anos, a Oxfam cresceu e ampliou sua área de atuação. Deixou de ser uma organização britânica para se tornar uma confederação internacional, formada atualmente por 20 afiliadas operando em mais de 90 países, com mais de 4 mil trabalhadores e um orçamento anual próximo a 1 bilhão de euros. A Oxfam também ampliou sua forma de trabalho inicial, focada em ajuda humanitária, passando a desenvolver programas e projetos bem como campanhas. No Brasil, o primeiro apoio financeiro a projetos ocorreu em 1958, e o primeiro escritório local foi aberto nos anos 60, em Recife. Até 2014, a atuação no País se dava através das afiliadas de outros países. A partir desse ano, foi criada a Oxfam Brasil, uma afiliada nacional constituída no formato legal brasileiro de associação e estabelecida na cidade de São Paulo. Ainda estamos terminando de compor nossa equipe multidisciplinar, que deverá chegar a 17 funcionários até o final do ano. Iniciamos nossas atividades com o público em 25 de novembro último, data da inauguração do nosso novo escritório, quando colocamos no ar nossa página web (http://www.oxfam.org.br), retomando nossas atividades com mídias sociais. Já temos um Conselho Diretor em fase inicial. Nos primeiros meses de 2016, estaremos com nosso Conselho Fiscal também em funcionamento.

Como é feito o financiamento da organização?

O financiamento da Oxfam no mundo vem de diferentes fontes. Em alguns países, os recursos são, na sua maioria, de contribuições individuais mensais; em outros, de agências de cooperação de governos e agências multilaterais, bem como de fundações privadas. Em praticamente todas as 20 afiliadas, qualquer pessoa pode colaborar, seja com recursos financeiros, com trabalho voluntário ou como ativista. Nesse período inicial, os recursos da Oxfam Brasil são oriundos de outras afiliadas da Confederação. Estamos começando as atividades de captação de recursos, prioritariamente por meio de doadores individuais. Já para o próximo ano lançaremos campanhas e consolidaremos nosso trabalho com outras organizações brasileiras que são nossas parceiras. Esperamos ter um grande número de voluntários, apoiadores e ativistas para nossas ações. É importante dizer que, desde 2006, a confederação Oxfam é signatária da “Carta de Prestação de Contas e Responsabilidade de Organizações Não Governamentais Internacionais” (International NGOS Accountability Charter), apresentando relatórios técnicos e financeiros públicos, além de atuar de forma transparente. A Oxfam Brasil operará em conformidade com esses parâmetros, apresentando total transparência de suas atividades, recursos e parcerias.

Há outras frentes, além da pobreza e da injustiça? Quais são e como a Oxfam atua em relação a elas?

A pobreza, a desigualdade e a injustiça são nosso guia. Mas essa agenda é imensa, e a Oxfam focaliza suas ações, a cada cinco anos, por meio do seu plano estratégico global. Para o período 2013-19, estão colocadas seis metas de trabalho: 1. O direito das pessoas em demandar uma vida melhor; 2. Justiça de gênero; 3. A importância de salvar vidas ameaçadas por conflitos e desastres ambientais; 4. Um sistema alimentar sustentável; 5. Um compartilhamento justo dos recursos naturais; 6. Um financiamento para o desenvolvimento que assegure o acesso universal a serviços essenciais como saúde e educação. No Brasil, ainda estamos elaborando o plano estratégico para o período 2016-2020, mas alguns temas deverão fazer parte de nossa agenda de trabalho: desigualdades nas cidades – juventude, gênero e raça; justiça fiscal e captura política; o papel do Brasil e sua influência no cenário regional e global; e o sistema alimentar.

Podemos ter esperança em ver um mundo menos desigual?

Seguramente que sim. Apesar do aumento da desigualdade e dos imensos desafios sobre os quais falamos até agora, existem avanços a serem considerados, particularmente na conquista de direitos. O importante é entender que um mundo menos desigual depende da mobilização e do trabalho conjunto de organizações da sociedade civil, movimentos sociais e vários outros setores da sociedade. A construção de um mundo mais justo é uma tarefa coletiva, ainda que cada indivíduo possa e deva dar sua contribuição. Pensar e desejar um mundo menos desigual não é somente uma questão de esperança; é uma questão intrínseca ao que somos como seres humanos. Prefiro acreditar que somos uma civilização na qual ainda existe espaço para valores fundamentais como a ética e a solidariedade.


Fonte: Oxfam