O acordo
embaixo da árvore.
Por Tomás Chiaverini, da Agência Pública –
No oeste do Pará, índios e quilombolas vivem
relação histórica de amor e ódio.
A canoa, escavada numa tora única, tem um metro e
meio de largura por uns oito de comprimento. Apesar do tamanho, o casco é fino,
não passa de dois centímetros, e a embarcação lembra uma grande folha seca.
Nela vão 15 pessoas, inclusive um bebê, que passa a maior parte do tempo
mamando no peito da mãe. Além dos passageiros, há uma bela pilha de galões de
50 litros para armazenar combustível, artigo de primeira necessidade que, por
ali, substitui o real como moeda corrente.
A viagem já dura mais de duas horas quando o rio
Cachorro começa a rosnar, transformando-se numa corredeira. Lá atrás, o piloto
reduz a marcha do motor de 15 HP enquanto, na proa, o jovem índio cachoeirista,
munido de um remo curto e largo, tenta colocar a canoa no rumo certo por entre
a barreira de pedras coberta pela água, que corre cada vez mais depressa.
A coisa não parece ir bem. O casco raspa numa
pedra, depois em outra, com mais força, depois mais uma, e a canoa entala.
Ergue o bico e fica ali, no meio da corredeira. Dá a impressão de que a
qualquer instante vai se partir em dois. As mulheres, as crianças e os homens
conversam entre si na sua língua nativa, Katxuyana, e ninguém se sobressalta. O
bebê mama. Mas a canoa segue empacada. Até que o cacique Juventino Perisima
Kaxuyana, 54 anos, se joga na água, pondo-se em pé, sobre o leito do rio.
Um dos rapazes que ia na proa faz o mesmo. Com água
acima dos joelhos, eles trocam instruções em Katxuyana. Há urgência no tom, mas
nada além disso. O cachoeirista rema para trás, a canoa recua, o piloto dá mais
um pouco de motor, o cacique e o rapaz mais jovem empurram por fora, com os pés
escorados nas pedras lisas do rio. Dá trabalho, é demorado, mas, após alguns
minutos de esforço, a embarcação vence a corredeira. Lá atrás o piloto torce o
pulso, acelerando o motorzinho, enquanto os dois índios pulam de volta para
dentro da canoa. O bebê continua a mamar.
Juventino Kaxuyana, 54 anos, liderança e cacique da
Aldeia Santidade. Foto: Ana Mendes.
Até chegar à aldeia Santidade, o grupo venceria
inúmeros trechos como aquele. Há mais de 200 anos, na segunda metade do século
18, foi em parte por causa dessas corredeiras que os escravos fugidos,
espalhados pela região de Oriximiná (Pará), conseguiram manter o homem branco à
distância. Mais recentemente, também por causa delas, o governo federal nutriu
planos de construir uma hidrelétrica que ficaria bem no limite entre a terra
dos indígenas e a dos quilombolas, numa região conhecida como Cachoeira Porteira.
A última tentativa de levar o projeto da usina
adiante ocorreu em 2014, mas foi barrada pelo Ministério Público Federal (MPF)
de Santarém. A recomendação do MPF levou em conta o fato de a Empresa de
Pesquisa Energética (EPE) não haver consultado os povos que tradicionalmente
habitam a região. Por meio de nota, a EPE afirma que, no momento, não há planos
para reiniciar os trabalhos.
Tanto a posição do MPF quanto a decisão da empresa
de paralisar os trabalhos por ora devem-se, em boa parte, à pressão conjunta de
índios e quilombolas, que se uniram contra a ideia de ter suas terras alagadas
para gerar energia.
Laços históricos
O convívio entre esses dois povos teve altos e
baixos ao longo dos séculos. Foi da cooperação mútua – quando, nos idos do
século 18, os escravos fugidos aprenderam a viver na mata com os seus
habitantes ancestrais – às vias de fato de um conflito, quando, em 2012, os
quilombolas atearam fogo em casas e destruíram plantações de aldeias Txikyana e
Wai-Wai. O embate foi motivado pela questão que aflige as comunidades da região
do rio Trombetas como um todo: a demarcação de terras.
Além dos povos tradicionais, o impasse contou com
dois outros protagonistas: o Instituto de Terras do Pará (Iterpa) e a Fundação
Nacional do Índio (Funai). De um lado, o Iterpa demarcou a terra quilombola de
Cachoeira Porteira, em 2012; de outro, no mesmo ano, a Funai concluiu o
Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID), que estipulava
os limites da terra indígena Katxuyana-Tunayana. O problema: no território
reivindicado pelos negros e traçado pelo estado do Pará, havia cinco aldeias
que foram desconsideradas.
Seu Aluísio, quilombola de Tapagem que mediou o
acordo. Foto: Ana Mendes.
Diante do impasse, a demarcação de ambas as terras
foi suspensa, sob o pretexto de que só um acordo entre índios e negros
resolveria a situação. “No fim, ficou parecendo que a culpa do processo não
andar era nossa”, disse o cacique Juventino, presidente da Associação Indígena
Katxuyana, Tunayana e Kahyana (Aikatuk).
Por três anos foram feitas diversas reuniões com as
lideranças de ambos os grupos e os órgãos envolvidos. Em 2013, o MPF de
Santarém moveu uma ação civil pública contra a União e a Funai requerendo
resultados quanto à questão da sobreposição. Nada disso, contudo, fez o
processo andar. Até que, em 2015, o quilombola Aluízio Severo dos Santos, 66
anos, entrou na roda de discussão. Além de ser uma liderança antiga e
respeitada, seu Aluízio pertencia a uma comunidade que ficava fora da terra que
gerava o impasse, o que lhe conferia alguma neutralidade.
“Nós temos de sentar embaixo da árvore e resolver
isso sem os brancos”, foi a primeira proposta do quilombola. Os índios acharam
boa a ideia. “A gente sempre tem vivido ao lado dos quilombolas como irmãos.
Então não tem por que a gente agora ficar brigando por terra”, disse o cacique
Juventino.
A solução foi rápida. Os quilombolas abriram mão da
área onde ficavam as cinco aldeias e foram recompensados por outra, ao norte.
No fim, seu Aluízio ligou para a procuradora Fabiana Keylla Schneider, 32 anos,
responsável pelo processo no MPF. “Doutora Fabiana, nós chegamos num acordo
aqui. Agora precisamos que a senhora faça um documento pra gente”, relembra seu
Aluízio.
“Foi criada uma disputa que não existia, mesmo
porque cada um sabia mais ou menos onde era o seu limite”, disse a procuradora,
que atendeu ao pedido. O acordo foi assinado em Santarém, e índios e
quilombolas fizeram um churrasco coletivo para comemorar. O Iterpa acatou a
decisão. O Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade do Estado
do Pará (Ideflor-bio), que mantém uma floresta estadual na área de pretensão
quilombola, aceitou refazer os seus limites. A Funai, contudo, continua com um
pé atrás por uma questão que, no momento da conciliação, passou despercebida
aos negociadores.
A vida na aldeia Santidade. Fotos: Ana Mendes
Para
chegar a aldeia Santidade é preciso vencer as corredeiras do Rio Cachorro.
Marco
físico da Terra Indígena Katxuyana, Oriximiná, Pará.
A aldeia
Santidade fica a 22 horas de barco de Oriximiná.
A chegada
da reportagem na aldeia Santidade.
Honório
Awahuku Katxuyana, 72 anos, irmão de Juventino.
João do
Vale, 63 anos, Katxuyana, removido para o Parque Tumucumaque em 1968.
Os
ancestrais Katxuyana ajudaram os escravos fugidos a se ambientarem na floresta.
Ao final
da tarde, crianças Katxuyana nadam no Rio Cachorro.
Crianças
Katxuyana.
Na visita
da Pública os Katxuyana festejavam a abundância da caça.
Indígenas
Katxuyana fazem farinha, tucupi e goma de tapioca.
A Goma de
Tapioca faz parte da base alimentar dos Katxuyana.
“A gente
se alimenta do peixe, a gente não brinca com o peixe”, diz Juventino.
Retomada
A terra indígena Katxuyana-Tunayana, cuja homologação
tramita na Funai, tem 2,2 milhões de hectares – área equivalente a 14 vezes a
cidade de São Paulo. Existem ali 18 aldeias e dezenas de povos falantes da
família linguística Karib. Os Katxuyana, que batizam a região, são uma minoria,
mas sua história é emblemática. Reflete o drama dos povos tradicionais, não
apenas do oeste do Pará, mas de toda a Amazônia.
Em 1968, no auge da ditadura militar, os Katxuyana
foram retirados de suas terras originais e levados para o parque do
Tumucumaque, no extremo norte do município de Oriximiná, fronteira com o
Suriname. A operação, conduzida por um grupo de religiosos católicos com apoio
da Força Aérea Brasileira (FAB), tinha a motivação oficial de frear a
mortalidade causada por doenças trazidas pelos brancos, principalmente gripe,
sarampo e tuberculose.
“A gente estava se acabando”, disse Honório Awahuku
Kaxuyana, 72 anos, que conversou com a reportagem numa noite de junho, sentado
na varanda de uma das casinhas de madeira e palha da aldeia Santidade. Irmão de
Juventino, ele era o cacique durante a remoção e diz que, na época, não havia
nada a fazer senão ir embora. “Pra saúde foi melhor, se a gente tivesse ficado,
nada disso aqui existia mais”, disse.
No Tumucumaque, os Katxuyana passaram a viver junto
dos Tiriyó e de várias outras etnias também levadas para lá, com as quais não
tinham nenhuma relação e não partilhavam sequer o mesmo idioma.
Apesar do trauma causado nas famílias e do impacto
na manutenção da cultura de cada povo, ações como essa não eram raras durante o
período militar, segundo a antropóloga do Instituto de Pesquisa e Formação
Indígena (Iepé) Denise Fajardo. “Nos anos 1960, o modelo era concentrar povos
diversos em aldeias-base onde houvesse um posto indigenista ou uma missão
religiosa.”
Ainda segundo ela, apesar de ter havido, realmente,
uma série de mortes que motivaram a remoção, é necessário levar em conta outros
fatores, como o projeto de construir uma hidrelétrica em Cachoeira Porteira. “A
gente fica pensando se esse modelo de centralizar as populações foi proposital
para que os planos de desenvolvimento pudessem se realizar, ou se era a única
perspectiva que o Estado tinha pra evitar essas mortes. Agora, é difícil pensar
que uma coisa não estivesse relacionada à outra”, disse.
Com o aumento populacional na missão Tiriyó, que
chegou a contar com 700 habitantes, não demorou para que surgissem problemas
com os quais os indígenas da região, acostumados a viver em aldeias de 25 a 50
pessoas, não estavam acostumados. “Não tem onde fazer roça, não tem mais o que
caçar e o que pescar, não tem mais nada”, disse seu Honório sobre a situação
atual do Tumucumaque. A solução foi retomar o território do qual eles haviam
sido retirados mais de quatro décadas antes.
O movimento de retorno, liderado pelo cacique
Juventino, começou no ano 2000 e ainda está em curso. Os Katxuyana já
estabeleceram três aldeias ao longo do rio Cachorro, a última delas em 2009. Ao
todo, já retornaram 160 pessoas e há entre 10 e 15 ainda no Tumucumaque.
Fragilidade
Além de comportar o espaço de retomada do povo de
seu Juventino, a terra Katxuyana-Tunayana abriga um grande número de índios
isolados. A Funai não sabe ou não divulga quantos ou de que etnia são esses
povos, numa tentativa de preservar a opção deles por não contatar o homem
branco. Há, ainda segundo a antropóloga Denise Fajardo, uma grande preocupação
com a entrada de garimpeiros, madeireiros e até de missionários evangélicos,
que invadem as terras na tentativa de catequizar esses povos.
Em parte por causa disso, ao analisar o acordo
firmado entre índios e quilombolas para a demarcação de ambas as terras, a
Funai demonstrou preocupação. A forma como a área foi redelimitada deixou a foz
do rio Kaspakuru fora da terra indígena, o que poderia facilitar a invasões que
ameaçam a preservação da cultura.
Outra questão que preocupa os indígenas da região é
um empreendimento pesqueiro no qual os quilombolas da comunidade de Cachoeira
Porteira passaram a investir.
Pousadas foram erguidas nas margens do rio Trombetas e pescadores viajam das mais diversas regiões do país em busca de alguns dias de diversão com os peixes da Amazônia. [relacionados]
Eles chegam em aeronaves convencionais, que pousam
numa pista de terra, ou em hidroaviões, que os levam direto para as áreas de
pesca. Numa busca rápida na internet, é possível encontrar pacotes de viagem
que prometem sete dias de pesca no rio Trombetas por R$ 3.800.
“A gente se alimenta do peixe, a gente não brinca
com o peixe”, disse Juventino. “Eles usam a pesca como um esporte, mas muitas
vezes quebram o anzol na boca dos peixes, eles não conseguem comer e acabam
morrendo”, explicou o cacique, que, quando o assunto é a preservação do
ambiente, não se furta a repreender o próprio povo.
Abundância da caça, mas com moderação, pediu o
cacique Juventino. Foto: Ana Mendes
No dia em que a reportagem visitou a aldeia
Santidade (a 22 horas de barco de Oriximiná), por exemplo, os Katxuyana
festejavam a abundância da caça. Em uma única noite, haviam matado dois
jacarés, uma paca, um mutum e uma avantajada piranha-preta que logo seriam
assados na lenha para ser servidos acompanhados de mandioca em alguma de suas
diversas formas. Pode ser beiju, farinha, tapioca ou tucupi, mas ela está
sempre presente no prato dos indígenas.
Diante da grande bacia de alumínio onde o alimento
esperava pelo preparo, seu Juventino repreendeu os caçadores da vez. “Temos de
tomar cuidado pra não exagerar, senão um dia acaba”, explicou.
Mas, apesar da preocupação, o cacique, assim como
os quilombolas, é a favor da manutenção do acordo firmado “embaixo da árvore”
em parceria com seu Aluízio. “Não queremos mais voltar atrás pra ter novos
conflitos. Os detalhes que faltam ser ajeitados não cabem mais aos indígenas e
aos quilombolas. Cabem ao Estado e à Funai”, disse. Procurada, a Funai não
indicou entrevistados até o fechamento desta reportagem.
Fonte: Agência Pública
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