Pesquisadora da USP monta mapa da contaminação por agrotóxico no Brasil.
Essa
matéria foi publicada originalmente no site “De olho nos
Ruralistas”, em 2016. Achamos importante relembrar porque o debate
sobre a flexibilização das regras para venda e uso de agrotóxicos
está na pauta da sociedade e do Congresso.
Os mapas produzidos por Larissa Mies
Bombardi são chocantes. Quando você acha que já chegou ao fundo do
poço, a professora de Geografia Agrária da USP passa para o mapa
seguinte. E, acredite, o que era ruim fica pior. Mortes por
intoxicação, mortes por suicídio, outras intoxicações causadas
pelos agrotóxicos no Brasil. A pesquisadora reuniu os dados sobre os
venenos agrícolas em uma sequência cartográfica que dá dimensão
complexa a um problema pouco debatido no país.
Ver os mapas, porém, não é
enxergar o todo: o Brasil tem um antigo problema de subnotificação
de intoxicação por agrotóxicos. Muitas pessoas não chegam a
procurar o Sistema Único de Saúde (SUS); muitos profissionais
ignoram os sintomas provocados pelos venenos, que muitas vezes se
confundem com doenças corriqueiras. Nos cálculos de quem atua na
área, se tivemos 25 mil pessoas atingidas entre 2007 e 2014,
multiplica-se o número por 50 e chega-se mais próximo da realidade:
1,25 milhão de casos em sete anos.
Além disso, Larissa leva em conta
os registros do Ministério da Saúde para enfermidades agudas, ou
seja, aquelas direta e imediatamente conectadas aos agrotóxicos. As
doenças crônicas, aquelas provocadas por anos e anos de exposição
aos venenos, entre as quais o câncer, ficam de fora dos cálculos.
“Esses dados mostram apenas a ponta do iceberg”, diz ela.
Ainda assim, são chocantes. O
Brasil é campeão mundial no uso de agrotóxicos, posto roubado dos
Estados Unidos na década passada e ao qual seguimos aferrados com
unhas e dentes. A cada brasileiro cabe uma média de 5,2 litros de
venenos por ano, o equivalente a duas garrafas e meia de
refrigerante, ou a 14 latas de cerveja.
Em breve, todo o material reunido
por Larissa será público. O livro Geografia sobre o uso de
agrotóxicos no Brasil é uma espécie de atlas sobre o tema, com
previsão de lançamento para o segundo semestre. Será um
desenvolvimento do Pequeno Ensaio Cartográfico Sobre o Uso de
Agrotóxicos no Brasil, já lançado este ano, com dados atualizados
e mais detalhados. No período abrangido pela pesquisa, 2007-2014,
foram 1.186 mortes diretamente relacionadas aos venenos. Ou uma a
cada dois dias e meio:
“Isso é inaceitável. Num pacto
de civilidade, que já era hora de termos, como a gente fala com
tanta tranquilidade em avanço de agronegócio, de permitir
pulverização aérea, se é diante desse quadro que a gente está
vivendo?”, indaga a professora ao programa De Olho nos Ruralistas.
O papel do agronegócio
Larissa fala de agronegócio porque é exatamente esse modelo o principal responsável pelas pulverizações. Os mapas mostram que a concentração dos casos de intoxicação coincide com as regiões onde estão as principais culturas do agronegócio no Brasil, como a soja, o milho e a cana de açúcar no Centro-Oeste, Sul e Sudeste. No Nordeste, por exemplo, a fruticultura. A divisão por Unidades da Federação e até por municípios comprovam com exatidão essa conexão.
A pesquisadora compara a relação
dos brasileiros com agrotóxicos à maneira como os moradores dos
Estados Unidos lidam com as armas: aceitamos correr um risco enorme.
Quando se olha para um dos mapas, salta à vista a proporção entre
suicídio e agrotóxicos. Em parte, explica Larissa, isso se deve ao
fato de que estes casos são inescapavelmente registrados pelos
órgãos públicos, ao passo que outros tipos de ocorrências escapam
com mais facilidade. Mas, ainda assim, não é possível
desconsiderar a maneira como distúrbios neurológicos são criados
pelo uso intensivo dos chamados “defensivos agrícolas”, termo
que a indústria utiliza para tentar atenuar os efeitos negativos das
substâncias.
Soja, milho e cana, nesta ordem,
comandam as aplicações.
Uma relação exposta no mapa, que
mostra um grande cinturão de intoxicações no centro-sul do país.
São Paulo e Paraná aparecem em destaque em qualquer dos mapas, mas
a professora adverte que não se pode desconsiderar a subnotificação
no Mato Grosso, celeiro do agronegócio no século 21.
O veneno está na cidade
A conversa com o De Olho nos Ruralistas – durante gravação do piloto de um programa de TV pela internet – se deu em meio a algumas circunstâncias pouco alvissareiras para quem atua na área. Há alguns dias, a Rede Globo tem veiculado em um de seus espaços mais nobres, o intervalo do Jornal Nacional, uma campanha em favor do “agro”. Os vídeos institucionais têm um tom raríssimo na emissora da família Marinho, com defesa rasgada dos produtores rurais de grande porte.
“Querem substituir a ideia do
latifúndio como atraso”, resume Larissa. Ela recorda que, além do
tema dos agrotóxicos, o agronegócio é o responsável por trabalho
escravo e desmatamento. E questiona a transformação do setor
agroexportador em modelo de nação. “A alternativa que
almejaríamos seria a construção de uma outra sociedade em que esse
tipo de insumo não fosse utilizado. Almejamos uma agricultura
agroecológica com base em uma ampla reforma agrária que revolucione
essa forma de estar na sociedade.”
No mesmo dia da entrevista, o Diário
Oficial da União trouxe a sanção, pelo presidente provisório,
Michel Temer, da Lei 13.301. Em meio a uma série de iniciativas de
combate à dengue e à zika, a legislação traz a autorização para
que se realize pulverização aérea de venenos em cidades, sob o
pretexto de combate ao mosquito Aedes aegypti. A medida recebeu
parecer contrário do Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental
e Saúde do Trabalhador do Ministério da Saúde, posição que foi
ignorada por Temer.
Larissa considera que a medida
representa um grande retrocesso e demonstra preocupação pelo fato
de a realidade exposta em seus mapas ser elevada a potências ainda
desconhecidas quando se transfere um problema rural para as cidades.
“O agrotóxico se dispersa pelo ar, vai contaminar o solo, vai
contaminar a água. O agrotóxico não desaparece. Ao contrário, ele
permanece.” Em outras palavras: o veneno voa e mergulha.
Alastra-se. E tem longa duração. (Por
João Peres/Do De Olho nos Ruralistas)
Fonte: ENVOLVERDE
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