segunda-feira, 30 de julho de 2018


Cidades carentes de habitações saudáveis são as mais impactadas por doenças que se alimentam da desigualdade social, como a tuberculose.

Foto: José Cruz / Agência Brasil

Sem moradia, não há saúde


Por Katia Machado – EPSJV/Fiocruz

Ainda que ratificado na Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), da qual o Brasil é signatário, e garantido na Constituição Federal, .o direito à moradia não é uma realidade para a maioria dos brasileiros. Legalmente, ele está definido no artigo da Carta de 1988 que trata dos direitos sociais, junto com a educação, a saúde e a segurança, além de legislações posteriores, com detaque para o Estatuto da Cidade, de 2001.

Mas, segundo a Fundação João Pinheiro, orientada pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o déficit habitacional brasileiro subiu para 6,2 milhões de domicílios em 2015, num crescimento de 2% em relação a 2014 e de 5,8% em dois anos. O cálculo considera a soma de habitações precárias, casas compartilhadas por mais de uma família, residências com mais de três moradores em média por cômodo, além das situações em que famílias com rendimento de até três salários mínimos gastam mais de 30% da renda com aluguel.

Esse descompasso, segundo o Censo 2010, realizado a cada dez anos pelo IBGE, levou nesta última década cerca de 11,4 milhões de pessoas às 6.329 favelas brasileiras – ou comunidades, vilas, palafitas, cortiços, grotões e mocambos, como também são conhecidas as habitações precárias, carentes de serviços básicos como saneamento, abastecimento de água potável e infraestrutura em geral.

Quando não traduzido na prática, o direito à moradia tem impacto direto sobre a saúde das populações. A cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, que tem 22% da população residindo em favelas, ocupa também os primeiros lugares no ranking de doenças que se alimentam da pobreza e da vulnerabilidade social, como a tuberculose. Segundo o Ministério da Saúde, o Rio apresentou, em 2017, uma média de 88,5 casos de tuberculose a cada cem mil habitantes, ao lado de Recife, em Pernambuco, com 85,5 casos, perdendo apenas para Manaus, no Amazonas, com quase 105 casos, e superando bastante o coeficiente nacional de 33,5 casos por cem mil habitantes. Foi, também, a segunda capital do Brasil com maior taxa de óbitos por essa doença: 6,2 por cem mil habitantes no ano passado, atrás da capital pernambucana, com 7,7 por cem mil. E, de acordo com a Secretaria Municipal de Saúde do Rio, são nas adensadas favelas cariocas – onde as condições de moradia e alimentação das pessoas são ainda piores e a ausência de serviços básicos, como saneamento, é marcante – que a doença atinge taxas recordes: em Manguinhos, território onde está localizada a Fundação Oswaldo Cruz, no ano de 2017, foram registrados 337,4; na vizinha Jacarezinho, 332,9; e na Rocinha, antes conhecida como o maior foco de tuberculose do país, com 455 casos por 100 mil moradores em 2001, foram diagnosticados não muito menos, cerca de 300 casos por 100 mil habitantes. Cidade que acompanha o Rio lado a lado quanto aos números da tuberculose, Recife tem 22,9% da população morando em favelas, reunindo 40% das 1.075 comunidades do estado de Pernambuco. O mesmo é observado quanto à cidade líder do ranking da doença no país: Manaus tem 50 favelas, que abrigam 72.762 domicílios, quase 16% das habitações, o que torna a capital do Amazonas a oitava do país em maior número de habitações em comunidades desse tipo. É em Manaus, também, que está a décima maior favela do Brasil, no bairro Cidade de Deus, com 10.559 domicílios ocupados. Todo este cenário permite, portanto, uma afirmação: moradia adequada é determinante social da saúde.

Dívida social

Pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), Rosely Magalhães esclarece que doenças transmissíveis como a tuberculose são históricas e estão relacionadas diretamente às taxas de contato social, ou seja, ao número de pessoas aglomeradas em domicílios precários, onde a luz é escassa e o ar circula mal. “E são nas favelas onde encontramos as maiores densidades populacionais e as piores situações de moradia”, realça. Trata-se, neste caso, segundo Rosely, de uma doença de transmissão direta, altamente contagiosa, transmitida pelo ar, saliva ou contato com secreções, afetando principalmente os pulmões, mas com raízes sociais profundas, fruto de um processo histórico de desigualdade e iniquidade sociais. “Assim, a aglomeração de pessoas é condicionante importante para a sua difusão”, reforça. Segundo Rosely, estão mais vulneráveis a contrair a doença os indivíduos que, além da situação de aglomeração populacional e fatores que geram baixa resistência orgânica, como o alcoolismo, vivem também em condições precárias de moradia e nutricional. “Eu conheço um pouco da história da ocupação do município do Rio de Janeiro. Quando trabalhei com o professor Victor Valla [o pesquisador da Ensp/Fiocruz faleceu em setembro de 2009, aos 72 anos] na região da Leopoldina (RJ), no início dos anos 1990, entrevistei uma senhora que acreditava que a tuberculose era hereditária, porque seu pai e seu irmão contraíram a doença. Na verdade, hereditárias eram as condições de vida e moradia, sua situação de pobreza e desigualdade social”, denuncia. Ela ressalta que, por afetar especialmente as populações pobres, a incidência da doença normalmente é vinculada à pobreza. Mas a pesquisadora corrige: “Não se trata de uma doença da pobreza. A tuberculose é resultado de uma dívida social importante, da não resolução, principalmente, das questões habitacionais no país”. E recorda outro estudioso do tema, Antônio Rufino Neto, que diz que se trata de uma doença “ficante”. “A tuberculose nunca saiu do seu lugar, porque as condições sociais desiguais nunca deixaram de existir”, sentencia.

Sem teto, sem serviço?

O mesmo observa José Vanilson Torres, que foi morador de rua durante 27 anos e hoje ocupa uma cadeira do Conselho Nacional de Saúde, representando o Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR). Essas  populações, garante, que em geral vivem em situação de pobreza e invisibilizadas, são as mais vulneráveis à tuberculose. O frio, a umidade e as dificuldades de acesso aos serviços de saúde são alguns dos fatores que colocam em risco um número considerável de moradores de rua – quase 102 mil pessoas vivem nessa situação no país inteiro, das quais 40,1% em municípios com mais de 900 mil habitantes e 77,02% em cidades com mais de 100 mil pessoas.

Segundo Vanilson, as pessoas em situação de rua, por serem vítimas cotidianas do preconceito e do negligenciamento por parte do Estado, estão mais vulneráveis não apenas à tuberculose, como também a doenças sexualmente transmissíveis (DST), como HIV/aids, à gravidez de alto risco, às doenças crônicas, aos problemas relacionados ao consumo de álcool e drogas e a problemas de saúde bucal. “Apesar da portaria 940/2011, do Ministério da Saúde, que trata do Cartão Nacional de Saúde, e da estratégia Consultório na Rua, criada também em 2011 pelo Ministério da Saúde, por pressão dos movimentos sociais, visando ampliar a atenção às pessoas em situação de rua, esse grupo populacional tem ainda muita dificuldade em acessar os serviços de saúde”, garante Vanilson. A primeira iniciativa, que regulamenta o Sistema Cartão Nacional de Saúde, permite a identificação dos usuários das ações e serviços de saúde, com atribuição de um número único válido em todo o território nacional, sem que, para isso se precise de um endereço fixo como referência no cuidado. Já a estratégia do Consultório na Rua, que busca ampliar o acesso da população em situação de rua aos serviços de saúde, através de equipes multiprofissionais – formadas por enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, médicos, agentes sociais, técnicos e auxiliares em enfermagem e técnicos em saúde bucal –, se organiza como um serviço de atenção à saúde de forma itinerante. “Mas o que observamos é um grande preconceito no atendimento oferecido às populações em situação de rua”, denuncia Vanilson.

Arboviroses

O professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), especialista em saneamento e controle ambiental, Alexandre Pessoa, destaca também outros problemas de saúde relacionados às condições de moradia, como a doença de Chagas e as arboviroses, entre elas dengue, zika vírus, febre chikungunya e febre amarela. “A discussão sobre controle de certas doenças passa pelas condições de moradia e capacidade de a comunidade organizar o seu território. Para isso, se fazem necessárias e urgentes políticas públicas saudáveis”, afirma.

De acordo com o pesquisador, as arboviroses, que vêm se tornando um importante problema de saúde pública mundial, principalmente em regiões tropicais, como o Brasil, recrudescem em virtude das constantes alterações climáticas, dos desmatamentos, do êxodo rural, mas também, principalmente, face às precárias condições das habitações. “A produção de certas doenças está diretamente relacionada às condições de moradia. São doenças que se alimentam da precariedade dos domicílios”, explica. Segundo Pessoa, isso significa ausência de abastecimento contínuo de água, tratamento do esgoto sanitário, coleta de lixo e manejo adequado de resíduos sólidos. E, em casas que não têm abastecimento de água, por exemplo, as pessoas são obrigadas a armazenar água em baldes e outros recipientes, que podem se tornar ambientes propícios à reprodução do Aedes aegypti, mosquito transmissor da dengue, do zika vírus e da chikungunya. Segundo a Pnad 2015, cerca de 18,7 milhões de domicílios urbanos não contam ainda com pelos menos um dos três serviços básicos de saneamento – conexão à rede de esgoto, coleta de lixo e água encanada –, e os três estados brasileiros com as menores proporções de domicílios urbanos com acesso a esses serviços são Amapá (3,7%), Piauí (11,9%) e Rondônia (13,2%).

Pessoa realça que deste debate sobre a moradia como determinação social da saúde fazem ainda parte os processos de remoções que ocorrem no país, a exemplo dos megaempreendimentos esportivos que geraram diversas realocações da população para áreas mais distantes. “As pessoas não habitam simplesmente um território, elas têm relações de cooperação e de conflito, ou seja, no lugar de sua habitação há um processo de sociabilidade. Portanto, remover uma população de seu território implica impactos sobre a saúde física e mental e sobre o ambiente”, explica, citando também as remoções para a instalação de indústrias e complexos logísticos no litoral brasileiro. Neste caso, afirma o professor da EPSJV/Fiocruz, estão implicados processos de poluição do ar, impactos ambientais, contaminação do solo e das águas, que provocam problemas agudos de saúde. “E quando não expulsas, dando lugar a megaempreendimentos imobiliários, resorts e grandes condomínios, as pessoas são impactadas pela valorização do território e pelo aumento do custo de vida”, acrescenta.

Moradia digna

Bandeira atual de luta do Movimento Nacional da População em Situação de Rua, como também revela Vanilson Torres, a moradia adequada – ou digna – não se resume à disponibilidade de um teto e, portanto, deve incluir uma condição de ocupação estável, sem medo de remoção ou de ameaças indevidas ou inesperadas, bem como acesso a serviços e bens públicos e infraestrutura, a bens ambientais, como terra e água, e a um meio ambiente equilibrado. Segundo a legislação brasileira, entende-se ainda como moradia adequada aquela que é financeiramente acessível – baixo custo ou acessível mediante a concessão de subsídios –, com dimensões minimamente compatíveis, isenta de riscos estruturais, protegida contra o frio, o calor, a chuva, o vento e outras ameaças à saúde, seja em áreas urbanas ou rurais, com acesso a serviços de saúde, escolas, creches e transporte público.  

“Significa ter uma habitação com infraestrutura necessária, que tenha saneamento, infraestrutura, um número adequado de pessoas que nela habitam, sem adensamento excessivo, que dialogue com outras políticas públicas, de transporte, por exemplo”, sublinha Pessoa.

Ele observa que a luta por moradia digna faz parte de um debate sobre a construção das cidades, destacando neste contexto o Estatuto das Cidades (Lei 10.257/2001), que regulamenta o capítulo ‘Política urbana’ da Constituição, cujos princípios básicos são o planejamento participativo e a função social da propriedade. “Tratam-se de prerrogativas de regulamentação e desocupação do solo, fazendo valer a função social da terra, que entende que a terra não pode ficar em desuso para fim único e exclusivo de especulação imobiliária”, explica.

Coordenadora estadual do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) em São Paulo, a infectologista Érika Fontana faz a mesma constatação. Para ela, o déficit habitacional brasileiro, que retira de milhares de pessoas o direito à moradia digna, tem relação com o “jeito como as cidades foram pensadas”. “Esta questão se relaciona com o processo de urbanização brasileiro atabalhoado, sem planejamento, que sempre privilegiou os bens, a economia, uma população com alta renda, em detrimento da grande maioria da população”, observa. Segundo a representante do MTST, hoje no Brasil há mais de sete milhões de imóveis abandonados, entre terrenos e construções, contando as áreas rurais, enquanto o déficit habitacional é de mais de seis milhões de famílias.

Fator que contribui para isso é o alto custo com aluguel. De acordo com Érika, boa parte das famílias brasileiras chegam a gastar 50% ou mais da sua renda mensal com aluguel. “Segundo dados da Pnad 2015, quase 85% das famílias sem moradia ganham até três salários mínimos e são as que mais sofrem com o gasto excessivo com aluguel. Essas famílias precisam decidir todo mês entre pagar o aluguel ou sustentar seus filhos”, revela, acrescentando que esse quadro explicaria a necessidade e legitimidade de ocupações de prédios abandonados, muitos deles em condições precárias de habitação. “Não estamos falando de moradores de rua, estamos falando de trabalhadores e trabalhadoras que têm parte de seu salário comprometido com aluguel, coabitam um mesmo espaço, são expulsos para as periferias dos grandes centros, moram de favor, que passam muitas necessidades”, caracteriza.

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