Cidades carentes de habitações saudáveis são as mais impactadas por doenças que se alimentam da desigualdade social, como a tuberculose.
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José Cruz / Agência Brasil
Sem moradia, não há saúde
Por Katia Machado – EPSJV/Fiocruz
Ainda que ratificado na Declaração
Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas
(ONU), da qual o Brasil é signatário, e garantido na Constituição
Federal, .o direito à moradia não é uma realidade para a maioria
dos brasileiros. Legalmente, ele está definido no artigo da Carta de
1988 que trata dos direitos sociais, junto com a educação, a saúde
e a segurança, além de legislações posteriores, com detaque para
o Estatuto da Cidade, de 2001.
Mas, segundo a Fundação João
Pinheiro, orientada pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
(Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o
déficit habitacional brasileiro subiu para 6,2 milhões de
domicílios em 2015, num crescimento de 2% em relação a 2014 e de
5,8% em dois anos. O cálculo considera a soma de habitações
precárias, casas compartilhadas por mais de uma família,
residências com mais de três moradores em média por cômodo, além
das situações em que famílias com rendimento de até três
salários mínimos gastam mais de 30% da renda com aluguel.
Esse descompasso, segundo o Censo
2010, realizado a cada dez anos pelo IBGE, levou nesta última década
cerca de 11,4 milhões de pessoas às 6.329 favelas brasileiras –
ou comunidades, vilas, palafitas, cortiços, grotões e mocambos,
como também são conhecidas as habitações precárias, carentes de
serviços básicos como saneamento, abastecimento de água potável e
infraestrutura em geral.
Quando não traduzido na prática, o
direito à moradia tem impacto direto sobre a saúde das populações.
A cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, que tem 22% da população
residindo em favelas, ocupa também os primeiros lugares no ranking
de doenças que se alimentam da pobreza e da vulnerabilidade social,
como a tuberculose. Segundo o Ministério da Saúde, o Rio
apresentou, em 2017, uma média de 88,5 casos de tuberculose a cada
cem mil habitantes, ao lado de Recife, em Pernambuco, com 85,5 casos,
perdendo apenas para Manaus, no Amazonas, com quase 105 casos, e
superando bastante o coeficiente nacional de 33,5 casos por cem mil
habitantes. Foi, também, a segunda capital do Brasil com maior taxa
de óbitos por essa doença: 6,2 por cem mil habitantes no ano
passado, atrás da capital pernambucana, com 7,7 por cem mil. E, de
acordo com a Secretaria Municipal de Saúde do Rio, são nas
adensadas favelas cariocas – onde as condições de moradia e
alimentação das pessoas são ainda piores e a ausência de serviços
básicos, como saneamento, é marcante – que a doença atinge taxas
recordes: em Manguinhos, território onde está localizada a Fundação
Oswaldo Cruz, no ano de 2017, foram registrados 337,4; na vizinha
Jacarezinho, 332,9; e na Rocinha, antes conhecida como o maior foco
de tuberculose do país, com 455 casos por 100 mil moradores em 2001,
foram diagnosticados não muito menos, cerca de 300 casos por 100 mil
habitantes. Cidade que acompanha o Rio lado a lado quanto aos números
da tuberculose, Recife tem 22,9% da população morando em favelas,
reunindo 40% das 1.075 comunidades do estado de Pernambuco. O mesmo é
observado quanto à cidade líder do ranking da doença no país:
Manaus tem 50 favelas, que abrigam 72.762 domicílios, quase 16% das
habitações, o que torna a capital do Amazonas a oitava do país em
maior número de habitações em comunidades desse tipo. É em
Manaus, também, que está a décima maior favela do Brasil, no
bairro Cidade de Deus, com 10.559 domicílios ocupados. Todo este
cenário permite, portanto, uma afirmação: moradia adequada é
determinante social da saúde.
Dívida social
Pesquisadora da Escola Nacional de
Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), Rosely Magalhães
esclarece que doenças transmissíveis como a tuberculose são
históricas e estão relacionadas diretamente às taxas de contato
social, ou seja, ao número de pessoas aglomeradas em domicílios
precários, onde a luz é escassa e o ar circula mal. “E são nas
favelas onde encontramos as maiores densidades populacionais e as
piores situações de moradia”, realça. Trata-se, neste caso,
segundo Rosely, de uma doença de transmissão direta, altamente
contagiosa, transmitida pelo ar, saliva ou contato com secreções,
afetando principalmente os pulmões, mas com raízes sociais
profundas, fruto de um processo histórico de desigualdade e
iniquidade sociais. “Assim, a aglomeração de pessoas é
condicionante importante para a sua difusão”, reforça. Segundo
Rosely, estão mais vulneráveis a contrair a doença os indivíduos
que, além da situação de aglomeração populacional e fatores que
geram baixa resistência orgânica, como o alcoolismo, vivem também
em condições precárias de moradia e nutricional. “Eu conheço um
pouco da história da ocupação do município do Rio de Janeiro.
Quando trabalhei com o professor Victor Valla [o pesquisador da
Ensp/Fiocruz faleceu em setembro de 2009, aos 72 anos] na região da
Leopoldina (RJ), no início dos anos 1990, entrevistei uma senhora
que acreditava que a tuberculose era hereditária, porque seu pai e
seu irmão contraíram a doença. Na verdade, hereditárias eram as
condições de vida e moradia, sua situação de pobreza e
desigualdade social”, denuncia. Ela ressalta que, por afetar
especialmente as populações pobres, a incidência da doença
normalmente é vinculada à pobreza. Mas a pesquisadora corrige: “Não
se trata de uma doença da pobreza. A tuberculose é resultado de uma
dívida social importante, da não resolução, principalmente, das
questões habitacionais no país”. E recorda outro estudioso do
tema, Antônio Rufino Neto, que diz que se trata de uma doença
“ficante”. “A tuberculose nunca saiu do seu lugar, porque as
condições sociais desiguais nunca deixaram de existir”,
sentencia.
Sem teto, sem serviço?
O mesmo observa José Vanilson
Torres, que foi morador de rua durante 27 anos e hoje ocupa uma
cadeira do Conselho Nacional de Saúde, representando o Movimento
Nacional da População em Situação de Rua (MNPR). Essas
populações, garante, que em geral vivem em situação de pobreza e
invisibilizadas, são as mais vulneráveis à tuberculose. O frio, a
umidade e as dificuldades de acesso aos serviços de saúde são
alguns dos fatores que colocam em risco um número considerável de
moradores de rua – quase 102 mil pessoas vivem nessa situação no
país inteiro, das quais 40,1% em municípios com mais de 900 mil
habitantes e 77,02% em cidades com mais de 100 mil pessoas.
Segundo Vanilson, as pessoas em
situação de rua, por serem vítimas cotidianas do preconceito e do
negligenciamento por parte do Estado, estão mais vulneráveis não
apenas à tuberculose, como também a doenças sexualmente
transmissíveis (DST), como HIV/aids, à gravidez de alto risco, às
doenças crônicas, aos problemas relacionados ao consumo de álcool
e drogas e a problemas de saúde bucal. “Apesar da portaria
940/2011, do Ministério da Saúde, que trata do Cartão Nacional de
Saúde, e da estratégia Consultório na Rua, criada também em 2011
pelo Ministério da Saúde, por pressão dos movimentos sociais,
visando ampliar a atenção às pessoas em situação de rua, esse
grupo populacional tem ainda muita dificuldade em acessar os serviços
de saúde”, garante Vanilson. A primeira iniciativa, que
regulamenta o Sistema Cartão Nacional de Saúde, permite a
identificação dos usuários das ações e serviços de saúde, com
atribuição de um número único válido em todo o território
nacional, sem que, para isso se precise de um endereço fixo como
referência no cuidado. Já a estratégia do Consultório na Rua, que
busca ampliar o acesso da população em situação de rua aos
serviços de saúde, através de equipes multiprofissionais –
formadas por enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais,
terapeutas ocupacionais, médicos, agentes sociais, técnicos e
auxiliares em enfermagem e técnicos em saúde bucal –, se organiza
como um serviço de atenção à saúde de forma itinerante. “Mas o
que observamos é um grande preconceito no atendimento oferecido às
populações em situação de rua”, denuncia Vanilson.
Arboviroses
O professor-pesquisador da Escola
Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz),
especialista em saneamento e controle ambiental, Alexandre Pessoa,
destaca também outros problemas de saúde relacionados às condições
de moradia, como a doença de Chagas e as arboviroses, entre elas
dengue, zika vírus, febre chikungunya e febre amarela. “A
discussão sobre controle de certas doenças passa pelas condições
de moradia e capacidade de a comunidade organizar o seu território.
Para isso, se fazem necessárias e urgentes políticas públicas
saudáveis”, afirma.
De acordo com o pesquisador, as
arboviroses, que vêm se tornando um importante problema de saúde
pública mundial, principalmente em regiões tropicais, como o
Brasil, recrudescem em virtude das constantes alterações
climáticas, dos desmatamentos, do êxodo rural, mas também,
principalmente, face às precárias condições das habitações. “A
produção de certas doenças está diretamente relacionada às
condições de moradia. São doenças que se alimentam da
precariedade dos domicílios”, explica. Segundo Pessoa, isso
significa ausência de abastecimento contínuo de água, tratamento
do esgoto sanitário, coleta de lixo e manejo adequado de resíduos
sólidos. E, em casas que não têm abastecimento de água, por
exemplo, as pessoas são obrigadas a armazenar água em baldes e
outros recipientes, que podem se tornar ambientes propícios à
reprodução do Aedes aegypti, mosquito transmissor da dengue, do
zika vírus e da chikungunya. Segundo a Pnad 2015, cerca de 18,7
milhões de domicílios urbanos não contam ainda com pelos menos um
dos três serviços básicos de saneamento – conexão à rede de
esgoto, coleta de lixo e água encanada –, e os três estados
brasileiros com as menores proporções de domicílios urbanos com
acesso a esses serviços são Amapá (3,7%), Piauí (11,9%) e
Rondônia (13,2%).
Pessoa realça que deste debate
sobre a moradia como determinação social da saúde fazem ainda
parte os processos de remoções que ocorrem no país, a exemplo dos
megaempreendimentos esportivos que geraram diversas realocações da
população para áreas mais distantes. “As pessoas não habitam
simplesmente um território, elas têm relações de cooperação e
de conflito, ou seja, no lugar de sua habitação há um processo de
sociabilidade. Portanto, remover uma população de seu território
implica impactos sobre a saúde física e mental e sobre o ambiente”,
explica, citando também as remoções para a instalação de
indústrias e complexos logísticos no litoral brasileiro. Neste
caso, afirma o professor da EPSJV/Fiocruz, estão implicados
processos de poluição do ar, impactos ambientais, contaminação do
solo e das águas, que provocam problemas agudos de saúde. “E
quando não expulsas, dando lugar a megaempreendimentos imobiliários,
resorts e grandes condomínios, as pessoas são impactadas pela
valorização do território e pelo aumento do custo de vida”,
acrescenta.
Moradia digna
Bandeira atual de luta do Movimento
Nacional da População em Situação de Rua, como também revela
Vanilson Torres, a moradia adequada – ou digna – não se resume à
disponibilidade de um teto e, portanto, deve incluir uma condição
de ocupação estável, sem medo de remoção ou de ameaças
indevidas ou inesperadas, bem como acesso a serviços e bens públicos
e infraestrutura, a bens ambientais, como terra e água, e a um meio
ambiente equilibrado. Segundo a legislação brasileira, entende-se
ainda como moradia adequada aquela que é financeiramente acessível
– baixo custo ou acessível mediante a concessão de subsídios –,
com dimensões minimamente compatíveis, isenta de riscos
estruturais, protegida contra o frio, o calor, a chuva, o vento e
outras ameaças à saúde, seja em áreas urbanas ou rurais, com
acesso a serviços de saúde, escolas, creches e transporte público.
“Significa ter uma habitação com infraestrutura necessária, que
tenha saneamento, infraestrutura, um número adequado de pessoas que
nela habitam, sem adensamento excessivo, que dialogue com outras
políticas públicas, de transporte, por exemplo”, sublinha Pessoa.
Ele observa que a luta por moradia
digna faz parte de um debate sobre a construção das cidades,
destacando neste contexto o Estatuto das Cidades (Lei 10.257/2001),
que regulamenta o capítulo ‘Política urbana’ da Constituição,
cujos princípios básicos são o planejamento participativo e a
função social da propriedade. “Tratam-se de prerrogativas de
regulamentação e desocupação do solo, fazendo valer a função
social da terra, que entende que a terra não pode ficar em desuso
para fim único e exclusivo de especulação imobiliária”,
explica.
Coordenadora estadual do Movimento
dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) em São Paulo, a infectologista
Érika Fontana faz a mesma constatação. Para ela, o déficit
habitacional brasileiro, que retira de milhares de pessoas o direito
à moradia digna, tem relação com o “jeito como as cidades foram
pensadas”. “Esta questão se relaciona com o processo de
urbanização brasileiro atabalhoado, sem planejamento, que sempre
privilegiou os bens, a economia, uma população com alta renda, em
detrimento da grande maioria da população”, observa. Segundo a
representante do MTST, hoje no Brasil há mais de sete milhões de
imóveis abandonados, entre terrenos e construções, contando as
áreas rurais, enquanto o déficit habitacional é de mais de seis
milhões de famílias.
Fator que contribui para isso é o
alto custo com aluguel. De acordo com Érika, boa parte das famílias
brasileiras chegam a gastar 50% ou mais da sua renda mensal com
aluguel. “Segundo dados da Pnad 2015, quase 85% das famílias sem
moradia ganham até três salários mínimos e são as que mais
sofrem com o gasto excessivo com aluguel. Essas famílias precisam
decidir todo mês entre pagar o aluguel ou sustentar seus filhos”,
revela, acrescentando que esse quadro explicaria a necessidade e
legitimidade de ocupações de prédios abandonados, muitos deles em
condições precárias de habitação. “Não estamos falando de
moradores de rua, estamos falando de trabalhadores e trabalhadoras
que têm parte de seu salário comprometido com aluguel, coabitam um
mesmo espaço, são expulsos para as periferias dos grandes centros,
moram de favor, que passam muitas necessidades”, caracteriza.
Fonte: EPSJV/Fiocruz
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