Quem pagará pelo prejuízo?
As pessoas já menos favorecidas nem sequer
recebem aquilo a que deveriam ter direito.
Por Washington Novaes*
Quem tenha o hábito de ler – e com atenção – o
noticiário de jornais ao fim do dia certamente se sentirá cansado, perplexo com
a capacidade humana de complicar e complexificar a vida, de torná-la aflitiva,
perigosa mesmo, submetida a ações de terceiros que causam prejuízos graves ao próximo,
por intermédio do poder público ou diretamente. Podem ser também ações ilegais
de poderosos que com frequência desprezam direitos de cidadãos comuns – e a
maior parte disso parece decorrer do desprezo mais amplo pelos direitos do
próximo, encarados com sorrisos na boca, como se não existissem. Pelo outro
lado surpreende a ingenuidade real ou simulada das vítimas.
Pode-se começar, por exemplo, por um caso de Sinop, em Mato Grosso, onde polícia e Justiça Federal proibiram que o ex-gerente do Ibama continuasse a fornecer (www/mpfpa, 3/2) informações privilegiadas a um grupo de pessoas para que as utilizassem em processos que resultariam no “maior desmatamento já detectado na Amazônia” (www/mpf,mp 3/2/2007) – e com a ajuda de funcionários públicos.
Será que os condenados não sabiam que se tratava
de patrimônio público, tão valioso que está inscrito até na Constituição da
República? Com que se surpreenderam os leitores de jornais? O esquema – segundo
publicado – conseguiu movimentar R$ 1,92 bilhão, na derrubada em Altamira de
320 quilômetros quadrados de Floresta Amazônica entre 2012 e 2015 – uma área
equivalente aos municípios de Belo Horizonte ou Recife. Ninguém sabia de que se
tratava, nenhuma advertência, nenhum cartaz, nenhuma placa, nenhuma fiscalização
humana, nada? Ninguém, fiscal ou não, notou que havia ali trabalhadores em
condições de escravos, operários sem receber direitos? Que havia ali pessoas
provocando incêndios? E evidência de corrupção ativa e passiva, formação de
organização criminosa, improbidade administrativa, responsabilidade por danos
ambientais?
Agora, entre as várias recomendações feitas aos
investigadores dos negócios de carne bovina no episódio, está a de analisar
transações entre alguns dos maiores negociadores do produto, incluído o Grupo
JBS, o maior processador de carne bovina no mundo.
Em outro episódio próximo no tempo, o governo de
Minas Gerais decidiu ([BOLD]Estado[/BOLD], 4/2) “alterar as regras de
licenciamento ambiental no Estado, com o propósito de eliminar o grande passivo
de autorizações que passou a acumular”. Como o governo federal não consegue
chegar a um consenso para emplacar no Congresso Nacional a nova proposta de Lei
Geral de Licenciamento, o Estado “fez mudanças profundas em seu processo no
ambiente”. E, pior, fez, “por sua conta e risco” (4/2), com consequências
indesejáveis.
Como assinalou este jornal, há duas semanas um
decreto estadual passou a permitir que um empreendimento obtenha, de uma só
vez, a construção liberada automaticamente – a licença prévia e a licença de
instalação. Se o impacto e o risco associados ao projeto não forem tão altos –
observa André Borges, autor do texto –, poderá até receber a licença de
operação, com os três documentos entregues em uma única fase. O grupo de
desmatadores recebia também informação privilegiada a respeito das
fiscalizações e atuava para livrar-se, de acordo com esses alertas.
Em outro processo o Ministério Público denunciou
mais quatro desmatadores por ações desse tipo e corrupção. Tratores, correntões
e combustível foram apreendidos pela fiscalização numa empresa que trabalhava
para o mesmo grupo, sem sequer ser registrada pela fiscalização.
Não é indispensável que haja fraude ou
desonestidade de agentes em episódios que volta e meia são objeto de denúncias
ou desconfianças, como, por exemplo, no setor da reforma agrária, em que mais
de 1 milhão de famílias vivem em 9.332 assentamentos espalhados pelo País – e a
agricultura familiar responde por quase 38% do valor bruto da produção
agropecuária, mantém 74,4% dos postos de trabalho no meio rural e produz quase
metade dos alimentos da cesta básica.
Os acontecimentos nesse setor, portanto, vão
refletir diretamente na alimentação dos setores de menor renda, aquele milhão
de famílias, fora os consumidores. O problema pode estar em desídia ou
incompetência de agentes públicos. Por isso é preciso saber por que o governo
federal anterior deixou de promover a regularização fundiária nos 12 anos (2003
a 2015) em que entregou apenas 22.729 títulos. Como seria possível fazer reforma
agrária com esses recursos – ínfimos, diante da extensão das necessidades?
Agora se afirma que com alterações nessas leis de reforma agrária serão
emitidos 750 mil títulos de propriedade (diz o engenheiro agrônomo José Ricardo
R. Roseno, secretário especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento
Agrário).
É esperar para ver – de olhos bem abertos para a
notícia recente deste jornal de que quase metade dos imóveis destinados ao
público mais carente do programa Minha Casa, Minha Vida, construídos entre 2011
e 2014 e com subsídios de até 90%, apresentam algum problema ou
incompatibilidade em relação ao projeto, identificados pela fiscalização do
Ministério da Transparência. Os imóveis, hoje habitados em mais de dez Estados
por famílias que ganham até R$ 1,8 mil, exigiram investimento de R$ 8,3
bilhões. O ministério deu prazo de 180 dias para que as falhas sejam
resolvidas. Mas quem pagará pelos custos? E a quem eles são devidos?
Esse é também um dos mecanismos – pouco
observados e reprimidos – da concentração de renda no País. As pessoas já menos
favorecidas não recebem sequer tudo aquilo a que deveriam ter direito ou pelo
que pagaram. E o poder público tem de completar, sacrificando direitos de
outros, estranhos, que nada têm que ver com o episódio.
* Washington Novaes
é jornalista (wlrnovaes@uol.com.br).
Fonte: Estado
de S. Paulo
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