Índios e
direitos agredidos.
Por Dalmo de Abreu Dallari*
Fatos extremamente reprováveis ocorreram
ultimamente na ordem jurídica brasileira, ameaçando direitos proclamados e
assegurados pela Constituição, e, ao mesmo tempo, ofendendo disposições de
normas constitucionais quanto ao sistema normativo e às competências das
autoridades e dos órgãos públicos federais. E mais surpreendente ainda foram os
acontecimentos porque o ator principal dessa confusão jurídica, pelo menos o
responsável ostensivo, foi o Ministro da Justiça, autor de um excelente e
prestigioso comentário da Constituição de 1988.
As questões acima referidas afetam os direitos dos
índios sobre suas terras, direitos fundamentais que são expressa e claramente
estabelecidos na Constituição, sendo oportuno relembrar aqui alguns desses
dispositivos, para que fique bem evidente a confusão jurídica desencadeada, e
pouco depois alterada e aparentemente corrigida, em decorrência de forte reação
e de várias denúncias que a ela se opuseram. O ponto básico é o direito dos
índios às suas terras consagrado no artigo 231 da Constituição, segundo o qual
são reconhecidos aos índios « os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam ». E para ampla garantia desse direito foram acrescentados
vários parágrafos ao artigo 231, dispondo o parágrafo 4° que « as terras de que
trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas,
imprescritíveis ». Reforçando ainda mais esses dispositivos, o parágrafo 6° do
mesmo artigo 231 dispôs que « são nulos e extintos, não produzindo efeitos
jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das
terras a que se refere este artigo ».
Apesar da clareza desses dispositivos
constitucionais, ocorreram e continuam ocorrendo muitas invasões e tentativas
de invasão das terras indígenas, visando o apossamento ilegal das terras e a
usurpação das riquezas nelas existentes. Os invasores e usurpadores são,
principalmente, pessoas e grupos ligados ao agronegócio, à retirada de madeira
das florestas e às atividades de mineração, além de outros. Índios e
comunidades indígenas foram expulsos de suas terras, por meios violentos, tendo
havido mesmo a matança de índios além da expulsão de suas terras e da usurpação
de suas riquezas.
Prevendo que isso fosse acontecer, pois já havia muito
precedentes, e buscando dar maior garantia aos direitos dos índios, o
Constituinte de 1988, visando assegurar efetivamente esses direitos em toda a
sua amplitude, estabeleceu com bastante ênfase, no artigo 67 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias : « A União concluirá a demarcação das
terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição
». Como é evidente, a demarcação das terras indígenas é uma obrigação constitucional
do Governo Federal e deveria ter sido concluída até cinco anos a partir da
promulgação da Constituição, que ocorreu em 5 de Agosto de 1988 e até agora só
foi feita a demarcação de pouco mais da metade das terras indígenas.
Esse retardamento é devido, em grande parte, à
enorme deficiência dos meios atribuídos aos órgãos encarregados da demarcação,
o que caracteriza uma omissão intencional dos Poderes Legislativo e Executivo
da União no cumprimento de uma obrigação constitucional. Essa omissão decorre
da pressão exercida por interesses poderosos que praticaram, estão praticando
ou pretendem praticar as invasões de terras indígenas. Assim, decorridos quase
trinta anos da promulgação da Constituição os invasores de terras indígenas
procuram impedir ou retardar ao máximo as demarcações, para que possam alegar
que não se sabe onde começa e termina uma área indígena, tentando justificar as
invasões com os argumentos de que estavam de boa fé e não cometeram
ilegalidade, pois não podiam saber que estavam entrando numa terra indígena.
Dalmo Dallari na TI Tenondé Porã. Foto: Carlos
Penteado/CPI-SP
E aqui vêm os fatos muito reprováveis acima
referidos, que se ligam à tentativa de interferir nas demarcações e mesmo de
alterar as que já foram feitas e regularmente concluídas pelos órgãos e pelas
autoridades competentes obedecendo os procedimentos legais. Para dar
efetividade ao processo de demarcação previsto na Constituição foram fixadas
regras precisas, quanto às competências e aos procedimentos , na Lei n° 6001,
de 9 de Dezembro de 1973 (Estatuto do Índio), na qual se estabelece
expressamente, no artigo 19, que as terras indígenas serão demarcadas « por
inciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio » (FUNAI),
dispondo o parágrafo 1° desse mesmo artigo que a demarcação assim efetuada «
será homologada pelo Presidente da República ».
Posteriormente, pelo decreto
presidencial n°1775, de 8 de Janeiro de 1996, foi expressamente estabelecido no
artigo 1° que « as terras indígenas serão demonstrativamente demarcadas por
iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio, a FUNAI,
que, além de considerar a ocupação ostensiva e diversificada das áreas por
comunidades indígenas para os objetivos necessários à sua sobrevivência, «
fundamentará sua decisão em trabalhos desenvolvidos por antropólogos de
qualificação reconhecida ». No caso de terem sido formalmente apresentados à
FUNAI alguns questionamentos sobre aspectos particulares da demarcação de uma
área o processo demarcatório será encaminhado ao Ministério da Justiça, para
que examine as objeções e sugestões.
Feito esse exame o Ministro da Justiça
deverá declarar encerrada a demarcação ou então, se entender que existe
consistência em algum questionamento, poderá devolver o processo à FUNAI para
que faça as correções necessárias.
Indo muito além de suas atribuições legais, o
Ministro da Justiça publicou, em 14 de Janeiro de 2017, a Portaria n° 68,
criando no âmbito daquele Ministério um Grupo Técnico Especializado para
avaliação dos processos de demarcação de terra indígena. Como é evidente,
estavam sendo afrontadas disposições da Lei n° 6001 e da Portaria presidencial
n°1775 de 1996 que deram à FUNAI essas atribuições. Mais grave ainda, pela
Portaria 68 o Grupo Técnico Especializado tem o objetivo de assessorar o
Ministro em assuntos que envolvam a demarcação de terras indígenas,
considerando a ocupação concreta, imediata e ostensiva e, absurdamente, se as
áreas são utilizadas para atividades produtivas e ainda «a viabilidade
econômica da ocupação ». Não há espaço para a preservação da cultura
tradicional dos povos indígenas e para as atividades que asseguram sua
subsistência.
Coroando essa absurda deformação do conceito de ocupação,
minuciosamente desenvolvida com apoio de antropólogos, agrônomos e outros
especialistas, a Portaria estabelecia que o Grupo Especial seria composto por
representantes de quatro setores da Administração Pública, sendo um deles a
FUNAI e os demais sem qualquer atribuição ou experiência relacionadas com os
índios.
Uma particularidade muito grave, que não encontra
justificativa, é que no Grupo Especial não foi incluído um representante do
Conselho Nacional de Política Indigenista, órgão já existente no próprio
Ministério da Justiça e obviamente especializado em assuntos indígenas.
Evidentemente, o objetivo dessa Portaria estava bem longe do cuidado com a
efetivação dos direitos tradicionais dos índios consagrados na Constituição e
com a proteção desses direitos, pois sob aparência de cuidado com o direito
estava sendo criada a possibilidade de interferência indevida. Isso é
confirmado por disposições do artigo 4° que dão ao Grupo Especializado a
competência para verificar, inclusive, prova de ocupação e do uso histórico das
terras pelas comunidades indígenas e demonstração da viabilidade econômica da
ocupação indígena, além de outros aspectos particulares, entre os quais « a
delimitação de terra em extensão e qualidade suficiente para o desenvolvimento
da comunidade ».
Do ponto de vista jurídico aquela Portaria era uma
aberração, pelo conteúdo, mas, além disso, era absurda também por contrariar
disposições constitucionais e legais expressas. Basta lembrar que nos termos do
artigo 1° do Decreto n° 1775 de 1996 « as terras indígenas serão
administrativamente demarcadas por iniciativa e soba orientação do órgão
federal de assistência ao índio », que é a FUNAI. A esse respeito é oportuno
lembrar aqui o ensinamento do eminente mestre do Direito Administrativo José
Cretella Júnior. Num substancioso trabalho intitulado «Valor Jurídico da
Portaria » o mestre registra o seguinte: « Como ato administrativo que é, a
portaria não tem vida autônoma.
Ao contrário, fundamenta-se sempre em lei,
regulamento ou decreto anterior, sua base jurídica ». E conclui enfaticamente :
« Onde a portaria fere de modo frontal a lei, o regulamento, o decreto, o
intérprete concluirá, de imediato, por sua ilegalidade. Onde a portaria inova,
criando, inaugurando, regime jurídico disciplinador de um instituto, é ilegal
e, pois, suscetível de censura jurisdicional » (In Revista de Direito
Administrativo – julho\setembro 1974). A publicação dessa desastrada Portaria
provocou indignada e intensa reação, pois, além da ilegalidade essas
manifestações deixavam evidente o absurdo da marginalização da FUNAI.
Tentando amenizar as resistências o Ministro da
Justiça publicou, no dia 19 de Janeiro de 2017, nova portaria, de número 80,
revogando a Portaria 68, publicada apenas cinco dias antes. A nova portaria tem
somente dois artigos. Pelo artigo 1° é reproduzido o que dispunha a Portaria n°
68 criando o Grupo Técnico Especializado e pelo artigo 2° é definida a
composição do Grupo, nos mesmos termos da portaria anterior. Mas na Portaria 80
não são incluídas exigências como a prova de ocupação e uso histórico das
terras, não havendo também qualquer referência à extensão das terras. Apesar
das modificações tentando diminuir a aparência de iniciativa contrária aos
direitos indígenas, a essência da nova portaria é a mesma da anterior,
sobretudo pela exclusão da iniciativa e da orientação da FUNAI para o processo
demarcatório, expressamente previstas no decreto n° 1775 de 1996, podendo-se
concluir com absoluta segurança que a Portaria 80 é tão ilegal quanto a 68.
Por tudo o que foi exposto, é necessária e urgente
uma demonstração de que o Brasil continua e continuará a ser um Estado
Democrático de Direito. Para tanto, tendo em vista os desvios aqui
demonstrados, o Ministro da Justiça deverá comprovar sua capacidade de resistir
às pressões dos poderosos que desprezam a Constituição e os Direitos Humanos.
Isso deverá ter como ponto de partida a imediata publicação de uma nova
Portaria pelo Ministro da Justiça, revogando, pura e simplesmente, a ilegal e
injusta Portaria 80, de 19 de Janeiro de 2017. Com isso estarão preservados os
direitos fundamentais que a Constituição assegura aos índios, como seres
humanos e brasileiros.
Essa revogação é também necessária para preservação da
imagem de jurista do Ministro Alexandre de Moraes, para comprovação da
autenticidade de seu compromisso com o Direito e a Justiça.
* Dalmo de Abreu Dallari é jurista e
conselheiro da Comissão Pró-Índio de São Paulo
** Publicado originalmente no Jornal do Brasil e
retirado do site
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