Abre
alas, elas querem passar (sem assédio).
Por Clare Richardson*
Mulheres jogam luz sobre lado obscuro do Carnaval,
num país onde 60% dos homens dizem que foliãs sozinhas não podem reclamar de
assédio.
Ela não tinha nenhuma ginga no corpo, mas isso não
impediu que Renata Rodrigues lançasse um bloco de Carnaval nas ruas do Rio de
Janeiro dois anos atrás. Quando a mulher de 40 anos viu uma postagem viral no
Facebook mostrando um cartaz que dizia “Eu não mereço mulher rodada”, ela
ironizou a mensagem ao fundar um bloco feminista chamado “Mulheres Rodadas”.
A intenção é que o bloco fosse apenas uma
brincadeira entre poucos amigos, mas quase uma centena de pessoas apareceu para
o primeiro ensaio. Agora o bloco tem milhares de seguidores. Neste ano, o
Mulheres Rodadas está se preparando para o seu terceiro Carnaval promovendo uma
campanha de conscientização sobre assédio sexual usando a hashtag
#CarnavalSemAssedio. O Rio é conhecido por suas atitudes sexuais liberais, que
atingem o ápice durante os desfiles de Carnaval.
Desconhecidos se beijando pelas ruas são parte da
tradição. Mas o ambiente “ninguém é de ninguém” também abre a porta para o
assédio sexual desenfreado. Mulheres são apalpadas, imobilizadas pelos braços e
beijadas à força.
“Em festas em que as pessoas estão nas ruas, como o
Carnaval, as pessoas estão mais vulneráveis a sofrerem assédio ou estupro”,
afirma Renata Rodrigues.
Mas os brasileiros parecem não se preocupar muito
com o problema. Uma pesquisa realizada em 2016 pelo instituto paulista Data
Popular mostrou que 61% dos homens acreditam que uma mulher que vai pular o
Carnaval sozinha não pode reclamar de assédio sexual, e 49% afirmaram que um
bloco de Carnaval não é lugar para uma mulher decente.
Renata Rodrigues, do Mulheres Rodadas: ‘Nosso grupo
começou como uma brincadeira, mas é muito sério’
“Carnaval sem assédio” tem o objetivo de
conscientizar que ambas as partes em um Carnaval desinibido têm que consentir
com o contato sexual. O Mulheres Rodadas espera educar os foliões de que “não”
significa “não”. Assim será possível ensinar os foliões sobre a se proteger e a
lidar com casos de assédio.
A ideia de que o Carnaval funciona como uma grande
festa democrática que reúne pessoas independente do gênero, raça ou classe
acaba mascarando o racismo e sexismo profundamente enraizados. Imagens lascivas
de mulheres negras vestindo nada além de penas e lantejoulas são transmitidas
para o mundo todo.
Hiperssexualização e preconceito
Nas residências brasileiras, a hiperssexualização
das mulheres negras era até este ano encarnada por uma mulata que escolhida
anualmente para interpretar o papel de “Globeleza” – uma junção do nome da
emissora de TV Globo e a palavra “beleza”.
A escolhida era sempre uma mulher negra pintada com
glitter. Durante a temporada de Carnaval, a Globeleza aparecia em diversas
inserções televisivas com closes que destacavam suas partes inferiores. Neste
ano, a emissora anunciou que não iria mais promover uma mulata e optou por
mostrar diferentes foliões – usando mais roupas.
Mas muitas das mais populares marchinhas de
Carnaval ainda refletem velhas atitudes. Elas incluem letras racistas e
sexistas sobre mulatas como O teu cabelo não nega.
O problema vai, porém muito além do assédio e do
que ocorre no Carnaval; o Brasil tem índices de chocantes de violência sexual.
De acordo com relatório de segurança pública de 2014, uma pessoa é estuprada a
cada 11 minutos no país – e o número real deve ser muito maior se forem
considerados os casos que não são reportados.
O país também tem uma das mais altas taxas de
homicídios contra mulheres no mundo. Ainda que o número de homicídios de
mulheres brancas esteja em declínio, as estatísticas envolvendo mulheres negras
dispararam.
Analba Brazão, uma ativista do SOS Corpo, uma
organização feminista do Recife, afirma ser fã do Carnaval. No entanto, ela diz
que a violência contra mulheres é amplificada em eventos de rua. “As mulheres
no Brasil não têm a liberdade de estar na rua. Elas ficam expostas”, diz.
“Nossa luta é pelo direito de pode sair em público e contar com segurança”.
Antigas mazelas
Daiane Monteiro, de 29 anos, estava tomando algo em
um café quando o bloco Mulheres Rodadas passou pelo local na última sexta-feira
para um ensaio de pré-Carnaval. A jovem, que toca um instrumento de sinos
chamado agogô em uma das mais tradicionais escolas de samba do Rio, gostou da
iniciativa do grupo, mas disse não achar que o assédio sexual ainda continua a
ser um grande problema no Rio.
Grupo 2
‘Carnaval sem assédio’ tem o objetivo de
conscientizar que ambas as partes têm que consentir com o contato
Ela apontou o crescimento da inclusão de mulheres
em papéis tradicionalmente masculinos no Carnaval – por exemplo, a execução de
instrumentos pesados como o surdo – como uma evolução positiva. “Temos a
liberdade de exibir nossos corpos se quisermos”, afirma. “Agora nós podemos até
mesmo tocar em escolas de samba. No passado isso era uma atividade mais
masculina.”
No entanto, Daiane Rodrigues pensa que assumir
novos papéis na música não é o bastante. “Mulheres estão por toda parte nos
blocos e escolas de samba, mas elas não se tornam mestres de baterias, não
conduzem as bandas e não tomam decisões”, conta.
Raquel Fialho, de 36 anos, vai tocar o xequerê com
o Mulheres Rodadas pela primeira vez neste ano. “Eu vi eles no ano passado e
fiquei encantada”, afirma. “Foi algo muito poderoso, bonito e colorido”. Ela
sabe que as tradições do Carnaval contam com décadas de história e que mudar as
atitudes será um longo processo: “Não podemos esperar mudar as ideias em apenas
alguns anos.”
Muitos no Brasil também temem que direitos
conquistados pelas mulheres estejam sob risco com o presidente Michel Temer,
que lidera o governo mais conservador desde o fim do regime militar. Quando
Temer anunciou o seu primeiro ministério após assumir interinamente, as pastas
não incluíam nenhuma mulher.
Ele também aboliu o status de ministério das
secretarias de Políticas para as Mulheres, de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial, e de Direitos Humanos. As responsabilidades das pastas
passaram a ser atribuição do Ministério da Justiça.
“Nosso grupo começou como uma brincadeira, mas é na
verdade muito sério”, reforça Renata Rodrigues, a criadora do bloco. “O
Carnaval é talvez a mais importante forma de protesto no Brasil.”
* Clare Richardson está no Brasil com uma
bolsa do International Reporting Project (IRP).
Fonte: Carta Capital
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