sábado, 10 de setembro de 2016

Conter o aquecimento global em 1,5 °C: um desafio (ainda) possível.
Foto: Se não agirmos o quanto antes para conter o aquecimento global ao mínimo possível, cenas como as do rio Pilcomayo poderão se tornar mais frequentes nas próximas décadas. Foto: Reprodução Youtube/ABC TV

A tecnologia e o conhecimento que temos para limitar o aquecimento em 2 graus Celsius são rigorosamente os mesmos necessários para limitá-lo em 1,5 grau Celsius. A questão-chave é o timing da resposta: qualquer meta que considere restringir o aquecimento em 1,5 grau Celsius precisa de decisões a serem tomadas o quanto antes. Agir agora faz toda a diferença e os custos disso não são exorbitantes.

Por Bruno Hisamoto*

Quem olha para o leito seco do rio Pilcomayo, um dos afluentes do rio Paraguai, fica intrigado. De longe, pode-se enxergar, mesclados com o barro seco e restos de vegetação, o que se parecem com troncos embranquecidos e alongados. Ao se aproximar da cena, a curiosidade vira surpresa: na verdade, os “troncos” nada mais são do que carcaças secas de jacaré, centenas deles, mortos por sede e fome. A secura é tal que muitos deles parecem fossilizados.

De abril a outubro, o rio Pilcomayo fica seco em decorrência da estiagem natural. Nesse período, a região praticamente não registra precipitações, o que resulta na redução significativa do nível do rio. Neste ano, no entanto, as chuvas começaram a rarear ainda dentro do período tradicionalmente chuvoso. Para piorar, a vazão natural do Pilcomayo também ficou reduzida no último ano, com entrada de menor volume de água das fontes naturais do rio, no trecho boliviano da Cordilheira dos Andes. O resultado disso é a pior seca em duas décadas e a segunda pior em 35 anos.

Para os brasileiros, é difícil olhar para essas imagens sem pensar em situações recentes vividas em nosso país. Há seis anos, os rios da bacia amazônica estavam tão secos como o Pilcomayo, durante a pior seca já registrada na região. Cinco anos antes, a região já tinha vivido outra grande seca. Mas talvez o exemplo mais fresco na memória dos brasileiros seja a crise hídrica atravessada pelo Sudeste nos últimos anos, com reservatórios de água funcionando com níveis próximos a zero (ou, no caso dos reservatórios do Sistema Cantareira, em São Paulo, com níveis efetivamente abaixo de zero).

Esses eventos dramáticos não são incomuns ou anormais. Fenômenos climáticos naturais, como El Niño (aquecimento das águas superficiais do Oceano Pacífico) e La Niña (resfriamento destas mesmas águas), afetam o regime de chuvas no interior do continente sul-americano. Assim, ciclicamente, regiões como a Amazônia (no norte do continente) e o Charco (na região central), onde se encontra o Pilcomayo, passam por temporadas prolongadas de cheia e de seca.

No entanto, elas estão tornando-se cada vez mais comuns. O que antes eram eventos climáticos cíclicos relativamente previsíveis, com periodicidade e intensidade presumíveis, estão virando eventos climáticos mais frequentes, com periodicidade e intensidade mais difíceis de se prever.

A maior frequência destes eventos climáticos extremos e os recordes sucessivos recentes de aumento de temperatura na Terra não estão dissociados. Diversos estudos científicos já apontaram para uma relação entre o acúmulo crescente de gases de efeito estufa (GEE) na atmosfera terrestre e mudanças nos padrões climáticos.

O Painel Intergovernamental das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (IPCC, sigla em inglês), órgão que sistematiza as pesquisas científicas realizadas sobre clima em todo o mundo, também apontou em relatório publicado em 2012 para a associação entre as alterações climáticas decorrentes do acúmulo crescente de gases de efeito estufa (GEE) na atmosfera e mudanças na frequência e intensidade de eventos climáticos extremos, como tempestades e secas. De acordo com o IPCC, “um clima em transformação leva a mudanças na frequência, intensidade, extensão espacial, duração e na temporalidade de eventos climáticos e meteorológicos extremos, e pode resultar em eventos extremos sem precedentes”.
A temporada 2015-2016 do El Niño foi a mais forte neste século, afetando diretamente mais de 60 milhões de pessoas em todo o mundoo. Foto: OCHA/C. Cans.

Ou seja, quanto maior a mudança na dinâmica climática global, resultado do aumento da temperatura média do planeta (que, por sua vez, está bastante associado ao acúmulo de GEE expelido pelas atividades humanas desde a Revolução Industrial), mais imprevisíveis esses eventos climáticos se tornarão – e mais dramáticos poderão ser seus efeitos negativos.

Em diferentes relatórios, o IPCC estimou que, se o aquecimento médio do planeta superar os 2 graus Celsius com relação aos níveis pré-Revolução Industrial ainda neste século, os cenários climáticos da Terra nas próximas décadas se alterarão bastante, causando instabilidade em todo o mundo. O problema é que, mesmo com os compromissos assumidos por mais de 180 países em dezembro passado com a conclusão do Acordo de Paris, estamos caminhando para um aquecimento que supera esse limite, entre 2,2 e 3,4 graus Celsius.

Considerando a dimensão do desafio e o tamanho da resposta mundial por ora, é nítido que “a conta não fecha”: sobra problema e falta solução. Os países precisam aumentar a ambição de seus compromissos e acelerar a sua implementação. Mais do que isso, se quisermos realmente evitar os efeitos mais imprevisíveis e negativos da mudança do clima, precisamos restringir o aquecimento global ao mínimo possível – menor ainda que os 2 graus Celsius frequentemente utilizados por cientistas e políticos como “limite de velocidade” da corrida climática.

O próprio Acordo de Paris reconhece essa necessidade, ao recomendar aos seus signatários que se esforcem para conter o aquecimento global bem abaixo dos 2 graus Celsius, orientando suas ações para limitá-lo a 1,5 grau Celsius acima dos níveis pré-industriais. Essa recomendação não é gratuita: ainda que o IPCC tenha cristalizado como “limite seguro” os 2 graus Celsius, o próprio Painel reconhece que o aquecimento neste nível implica em impactos climáticos negativos de grande magnitude, principalmente nas regiões mais pobres do planeta, sem infraestrutura e condições para lidar com as consequências da mudança do clima.

Para essas comunidades, a mudança do clima já é uma realidade cruel. A temporada 2015-2016 do El Niño foi devastadora para a África subsaariana (saiba mais), colocando milhões de pessoas em situação alimentar crítica, em particular na Etiópia – que viveu sua pior estiagem desde a lendária seca de 1983-85, famosa em todo o mundo na época por conta da mobilização de artistas internacionais nos shows do Live Aid. Exatamente por causa da sua vulnerabilidade, para esses países, limitar o aquecimento em 2 graus Celsius não garante qualquer segurança.

Conter o aquecimento em 1,5 grau Celsius é um desafio ainda possível. A tecnologia e o conhecimento que temos para limitar o aquecimento em 2 graus Celsius são rigorosamente os mesmos necessários para limitá-lo em 1,5 grau Celsius. A questão-chave é o timing da resposta: qualquer meta que considere restringir o aquecimento em 1,5 grau Celsius precisa de decisões a serem tomadas o quanto antes. Agir agora faz toda a diferença e os custos disso não são exorbitantes.

O IPCC estima que os custos para conter o aquecimento em 2 graus Celsius podem chegar a 0,8% do PIB global anual ao longo do século XXI, o que significa uma redução do crescimento econômico de 2,3% para 2,24% por ano. Se redefinirmos o limite em 1,5 grau Celsius, os custos devem chegar a 0,1% do PIB global até 2100, reduzindo o crescimento econômico mundial de 2,3 para 2,2% por ano.

Para quem vê de fora, o argumento parece ser contraproducente. Mas qualquer iniciativa contra a mudança do clima possui um custo associado. Novamente, o timing faz toda a diferença: se você agir o quanto antes possível, menor será o custo, mas se você demorar para atuar, o custo será maior. 

Além disso, a conta não considera os diversos co-benefícios destas medidas, como o impacto da redução da poluição do ar sobre a saúde.

A conta também não considera benefícios em termos de danos e riscos reduzidos. Comparado com o cenário dos 2 graus Celsius, o limite de 1,5 grau Celsius permite reduzir o risco à exposição a eventos extremos em diversas regiões do mundo. Isso seria importante para as nações mais vulneráveis, que poderiam utilizar seus recursos para adaptar sua infraestrutura e não para compensação por perdas e danos decorrentes de eventos extremos.
Represa de Paraibuna, parte do sistema Rio Paraíba do Sul (SP) no começo de 2015, durante o auge da crise hídrica no Sudeste. Foto: Bruno Bernardi/P22.

Para o Brasil, os efeitos de conter o aquecimento global no máximo a 1,5 grau Celsius também são positivos. De acordo com o Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC), a trajetória atual da temperatura global, com elevação bem acima dos 2 graus Celsius, implicará em mudanças dramáticas nos padrões de chuva, particularmente na Amazônia e no Semiárido. Qualquer aquecimento poderá jogar ainda mais pressão sobre regiões do país com vulnerabilidade social, econômica e ambiental. Conter o aquecimento é importante para permitir ao Brasil destinar seus recursos para adaptação e criação de resiliência nessas regiões, ao invés de canalizá-los para situações emergenciais futuras.

Mas, novamente, a questão aqui é o timing. Conter o aquecimento global em 1,5 grau Celsius ainda é possível, mas a janela para ação se fecha mais a cada dia. Estima-se que já tenhamos atingido um aquecimento acima do 1 grau Celsius com relação aos níveis pré-industriais, considerando o acúmulo de GEE na atmosfera terrestre e sua longa vida útil. Esse aumento na temperatura média do planeta já nos garante alguns impactos negativos sobre o clima global, mas numa dimensão relativamente menor que aumentos maiores de temperatura.

Se não agirmos logo, em breve o limite do 1,5 grau Celsius estará irremediavelmente perdido. Caso isso aconteça, talvez tenhamos que nos acostumar cada vez mais com cenas dramáticas como as do rio Pilcomayo hoje.

* Bruno Hisamoto é mestre em Relações Internacionais pela USP e pesquisador do Centro de Estudos em Sustentabilidade da FGV-EAESP.


Fonte: Página 22

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