Amazônia,
da borracha à energia.
Euro Tourinho, proprietário e diretordo jornal Alto Madeira, que formou
gerações de jornalistas no Estado de Rondônia. Aos 94 anos, é a história viva
dessa região amazônica de passado frustrado e presente incerto, grande
provedora da hidroeletricidade do país. Foto: Mario Osava/IPS
Por Mario Osava, da IPS –
Entre a borracha e a hidroeletricidade, Rondônia
viveu uma intensa expansão agropecuária e mineradora, desmatando extensas
áreas. Numerosos indígenas foram massacrados por mineiros ilegais, agricultores
e pecuaristas.
Porto Velho, Rondônia, 14/9/2016 – Euro Tourinho
tinha oito anos, em 1930, quando acompanhou sua mãe até Campo Grande, já na
época grande cidade do centro-oeste do Brasil, para o parto de um irmão. “Foram
30 dias viajando em carro de boi. Poderiam ser cinco, a cavalo, seguindo a
linha do telégrafo, mas meu pai temia ataques indígenas”, contou à IPS.
Pouco depois, seu pai, um fazendeiro em Corumbá, no
Mato Grosso do Sul, na fronteira com o sudeste da Bolívia, escapou ileso de um
tiroteio que perfurou seu carro, um dos poucos existentes no país naquela
época. Conflitos pela terra costumavam ser resolvidos na base do “38”, o
calibre do tipo de revólver que “todos usavam”. Mas um emprego público e a
indenização recebida da ferrovia que cruzaria sua fazenda lhe permitiram evitar
essa guerra, em troca de adentrar ainda mais na selva brasileira.
Para assumir o cargo no território que hoje é
Rondônia, Estado na fronteira com o norte da Bolívia, teve que viajar por seis
meses com a família, por terra até São Paulo e Rio de Janeiro, depois por mar
até Belém e por rios amazônicos até seu novo lar. Uma volta quase completa pela
geografia brasileira.
Acessível praticamente apenas por lentas
embarcações fluviais até 1960, Rondônia hoje é um entroncamento logístico entre
a Amazônia, o industrializado sudeste do país, a Bolívia e o Peru, um fator
importante para seu possível desenvolvimento. Está em meio a estradas que unem
os oceanos Atlântico e Pacífico no Peru, conta com outras que penetram na
Amazônia ou vão para o norte colombiano e com a hidrovia do rio Madeira, por
onde exporta boa parte da soja colhida no oeste brasileiro, barateando o
transporte.
A mais recente transformação do Estado deriva da
construção, entre 2008 e 2016, de duas grandes centrais hidrelétricas no rio
Madeira, perto da capital Porto Velho, que assim passa a ser grande provedor de
energia.
Aos 94 anos, Tourinho é a história viva desse
processo e dos ciclos econômicos que se sucederam em Rondônia, Estado com 1,8
milhão de habitantes, 510 mil deles morando na capital. Começou pelo negócio da
borracha, que enriqueceu a Amazônia desde o final do século 19, graças à
demanda por pneus por parte da nascente indústria automobilística. Aos 22 anos,
Tourinho herdou do pai falecido uma floresta de seringueiras.
Unidade de Pronto Atendimento na localidade de Jacy
Paraná, de três mil habitantes, localizada entre as represas de Santo Antônio e
de Jirau, as duas centrais hidrelétricas de Rondônia. Essa unidade de saúde,
construída há dois anos, permanece fechada, sem médicos nem equipamentos, em um
lugar sumido e no abandono. Foto: Mario Osava/IPS
Naquela época, 1944, vivia-se um auge da borracha.
A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) demandava grandes suprimentos para os
veículos militares e a Malásia, principal produtora, estava sob controle do
Japão, deixando os Estados Unidos e seus aliados dependentes da borracha
brasileira.Terminado o conflito, os preços caíram e foi inevitável a decadência
da economia baseada na borracha na Amazônia, incapaz de competir com a produção
intensiva do sudeste asiático.
Tourinho deixou o seringal e a selva e abriu um
salão de bilhar em Porto Velho, capital do Estado, ao lado da sede do jornal Alto
Madeira, onde começou a escrever em 1950 e desde então, como jornalista, se
converteu em testemunha da evolução de Rondônia. Em 1970 adquiriu o jornal e
até hoje dirige pessoalmente sua edição, com disciplinada dedicação. “Enquanto
eu viver, o jornal impresso não acabará”, afirmou sobre o Alto Madeira,
que completará cem anos em 2017.
Tourinho segue aferrado à sua velha máquina de
escrever, rechaçando o computador, mas não os novos temas. “As centrais
hidrelétricas têm um impacto negativo, que é destruir a natureza, engolir
florestas, mas, sem eletricidade não há progresso. Porto Velho só tem
funcionários públicos, necessita atrair indústrias, ainda que pequenas, como as
de confecção de roupas”, opinou.
A hidrelétrica Santo Antônio, construída a seis
quilômetros de Porto Velho, com capacidade para 3.150 megawatts (MW), se
prepara para acrescentar outros 417 MW, somando seis novas turbinas às 44 já
operando. A energia adicional se destinaria exclusivamente a Rondônia e ao
vizinho Estado do Acre.
“É importante porque teremos excedentes energéticos
para atrair investimentos. Até agora, nos apagões somos os primeiros a sofrer a
queda no fornecimento e o restabelecimento se dá ao contrário, por último
aqui”, apontou à IPS Marcelo Thomé, presidente da Federação das Indústrias de
Rondônia (Fiero).
“O grande legado da construção das centrais é
umanova cultura empresarial, a qualificação de empresas e empresários como
melhores provedores de serviços e produtos. Também foi capacitada a mão de
obra, com a experiência de trabalhar em uma grande empresa”, acrescentou Thomé.
Mas a industrialização esperada pela Fiero não aconteceu. Tampouco o grande
aumento do comércio com o Peru, para o qual foi construída a estrada
interoceânica concluída em 2011.
Uma pastagem incendiada na margem do trecho da
rodovia BR-364 que leva ao norte da Bolívia e leste do Peru, a partir de
Rondônia. As grandes queimadas diminuíram na Amazônia, mas persistem os
incêndios em pequenas áreas. Foto: Mario Osava/IPS
Agora os empresários buscam identificar vocações e
processos adequados a “cadeias de produção” locais. A indústria de alimentos,
aproveitando a agricultura em expansão, é um bom caminho, disse à IPS o
superintendente da Fiero, Gilberto Baptista.
Entre a borracha e a hidroeletricidade, o Estado
viveu uma intensa expansão agropecuária e mineradora, desmatando extensas
áreas. Numerosos indígenas foram massacrados por mineiros ilegais, agricultores
e pecuaristas. Rondônia foi um dos Estados que recebeu mais migrantes, atraídos
por campanhas governamentais de ocupação amazônica nos anos 1970 e 1980.
O eixo da devastação foi a rodovia BR-364, que
cruza o Brasil de sudeste a noroeste, inaugurada em 1960 pelo então presidente
Juscelino Kubitschek, derrubando com um trator a última árvore do caminho, mas
cuja pavimentação em Rondônia demorou mais de duas décadas. “Naquela época, nem
se falava de ecologia”, recordou Tourinho, que esteve no ato para entregar a Juscelino
um exemplar do Alto Madeira.
Agora, os protestos e as denúncias de
ambientalistas, ativistas sociais e do Ministério Público se tornaram
inseparáveis dos projetos hidrelétricos, especialmente na Amazônia, apesar dos
crescentes recursos destinados pelas empresas concessionárias a ações de
compensação e mitigação de danos.
O Movimento de Afetados por Barragens (MAB)
considera, por exemplo, que as empresas subestimaram a área inundada e, por
fim, a quantidade de famílias a serem reassentadas ou indenizadas.“O solo aqui
é argiloso, empapa, e, com a sedimentação, a represa se expande, matando
árvores e deixando a terra improdutiva, além de contaminar poços de água
potável”, afetando mais gente do que admitem as companhias, destacou à IPS um
dos coordenadores do MAB em Rondônia, João Dutra.
“Nosso programa de monitoramento demonstra que não
há interferência da represa no lençol freático”, contra-atacou a concessionária
Santo Antônio Energia, em uma resposta por escrito.“O solo empapa, mas já inundava
antes da represa. Grande parte da área vizinha é de ‘umiziral’ uma área
vulnerável”, explicou Veríssimo Alves, gerente socioambiental da Energia
Sustentável do Brasil (ESBR), a concessionária da hidrelétrica de Jirau, 110
quilômetros rio acima da de Santo Antônio.
“Umiziral” define a vegetação lenhosa nascida em
solos pobres e inundáveis quando chove. Por isso a ESBR rechaça reassentar os
moradores de Abunã, cerca de cinco mil, segundo o MAB. Todos reconhecem que a
brutal cheia do rio Madeira, em 2014, alterou as condições, inclusive de
sedimentação, e pode ter agravado esses fenômenos.
Fonte: ENVOLVERDE
Nenhum comentário:
Postar um comentário