A falta
que faz o saber indígena.
As adolescentes indígenas latino-americanas são,
junto com as adolescentes rurais, as mais discriminadas em matéria de
oportunidades e de educação na região. Foto: RajeshKirshnan/ONU Mulheres.
Por Washington Novaes*
Em vez de aprendermos com eles, nós os levamos a
deixar de ser índios, sem vantagens.
Até a ONU, às voltas com tantos problemas que
envolvem países inteiros, está preocupada com as ameaças aos povos indígenas no
Brasil, que considera mais graves que os dos anos 1980 – diz um informe
especial publicado no primeiro dia deste mês. Causas: demarcação de terras
estagnada, enfraquecimento da Fundação Nacional do Índio (Funai) pelos últimos
governos e iniciativas em andamento na atual administração que podem agravar o
panorama. E os índios – que ocuparam todo o território nacional – hoje não
chegam a 1 milhão de pessoas (0,47% do total brasileiro), segundo o IBGE : eram
24 povos com 896.917 pessoas em 2010, das quais 324 mil vivendo em cidades e
572.083 em áreas rurais.
A relatora da ONU para os direitos dos povos
indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, que esteve por aqui em março, acha que “hoje
os povos indígenas encaram riscos mais profundos que no momento da adoção da
Constituição, em 1988”. Porque, como constatou ela, o atual governo deixava
pendentes 20 demarcações de terras – nos últimos oito anos não houve avanços.
Os assassinatos de líderes indígenas passaram de 92 em 2007 a 138 em 2014
(Estado, 2/9). E tudo pode piorar com as crises econômica e política. E com a
decisão de extinguir órgãos de defesa dos direitos humanos, além das ameaças de
reverter ratificações e declarações de terras indígenas, como Cachoeira Seca
(PA), Piaçaguera (SP) e Pequizal do Naruvotu (MT). Para a ONU, a prioridade
deve ser a conclusão do processo de demarcação, “abandonado há anos”. O
abandono tem incentivado o aumento da violência, principalmente entre os
guaranis-caiovás e terenas (MS), os araras e paracanãs (PA) e os caapores (MA).
As dificuldades neste momento são corroboradas por
vários noticiários em jornais e televisões. Um deles, a Folha de S.Paulo (4/9),
relata a situação de uma família de índios da região do Xingu que passou a
receber Bolsa Família (R$ 300 mensais). Eles se mudaram para a cidade e logo concluíram
que a importância recebida era insuficiente para o sustento familiar, comprar
fogões velhos, pagar aluguel da casa mais do que modesta. A situação só não é
pior porque o filho adolescente trabalha numa borracharia.
Há 105 mil famílias indígenas recebendo Bolsa
Família, 76 mil incluídas nas áreas rurais e quase 30 mil em áreas urbanas. R$
182,31 é o benefício médio. Diz o noticiário que as consequências são
“devastadoras” – o que traz imediatamente à memória a notícia de estudo que há
mais de 30 anos vinha sendo desenvolvido por pesquisadores da então Escola
Paulista de Medicina. Eles comparavam o estado de saúde de índios que moravam
isolados em suas aldeias com o de outros que haviam emigrado para as cidades.
Entre os primeiros – como registravam suas fichas semestrais – não havia um
único caso de hipertensão ou de doenças coronarianas, AVCs, diabetes, problemas
pulmonares e outros; já entre os que trabalhavam como boias-frias perto de
Bauru (SP), todos esses problemas estavam presentes e ainda os casos de
invalidez ou morte eram frequentes.
O autor destas linhas decidiu acompanhar a equipe
médica ao Parque Indígena do Xingu – na época, inteiramente isolado – e, ali,
os exames corporais e de laboratório por que passava cada um dos índios que já
tinham fichas de exames anteriores. Mais uma vez, não havia um só caso de
doença entre populações de índios do parque, comparando com migrados. E o
jornalista ficou impressionado, não apenas com as constatações médicas, mas com
o modo de viver desses índios xinguanos: a não delegação de poder (o chefe não
tem poder, não dá ordens, é o grande líder e conselheiro, mas não manda em
ninguém; se tentasse, os outros se dobrariam de rir); homem não bate em mulher;
todas as pessoas são livres e iguais; o homem planta e colhe, pesca, busca
ervas medicinais e alimentícias; a mulher cozinha e cuida dos filhos – mas sem
receber ordens, etc. O fascínio provocado por esse testemunho levou o
jornalista a produzir desde a década de 1980 várias séries para a televisão,
que levaram a surpreendentes índices de audiência.
Essa possibilidade de convivência social com outros
fundamentos levava à pergunta: seria possível voltarmos a viver como índios?
Certamente, não. Só discutir a hipótese provocava espanto ou desdém. Mas
provavelmente seria possível incorporar muitas de suas práticas sociais e de
relacionamentos.
Há algumas décadas, o médico e professor da
Universidade Federal de São Paulo Douglas Rodrigues, que estava na mencionada
primeira viagem ao Xingu, já dizia que a hipertensão e a diabetes começavam a
ser mais presentes, dadas as mudanças entre índios que antes viviam isolados,
por causa dos contatos com habitantes de cidades e pela mudança nas dietas. A
documentação para a TV comprovou a tese.
O tempo só acentuou as mudanças – e as análises. E
tentativas de socorrer índios com programas sociais como o Bolsa Família e
outros só alterou a rotina, acentuou a dependência de recursos financeiros, de
programas assistenciais e médicos, necessidade de roupas, calçados, alimentos,
etc.
O Estado brasileiro não tem política adequada para
os grupos indígenas. Disfarçadamente, sem enunciá-la, sobrepõe uma política de
aculturação, para substituir os fundamentos das culturas originárias – que
criavam os modos de viver – e implantar a cultura branca. Os resultados são
penosos, seja com a migração para cidades, seja com as transformações nas
aldeias. Em lugar de aprendermos com eles alguns fundamentos de seus modos de
viver originários, nós os levamos a absorver nossos modos de ser, a deixar de ser
índios, sem terem vantagens, só prejuízos.
Na crise que vivemos, muitos livros, como o
recém-publicado A Guerra da Água, de Harald Welzer, preveem que “caos e
violência” causarão a próxima guerra mundial, em disputa pela água e outros
recursos naturais. Sentiremos falta dos conhecimentos indígenas.
* Washington Novaes é jornalista (e-mail:
wlrnovaes@uol.com.br).
Fonte: O Estado de S. Paulo
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