Longe das
vítimas, governo assina acordo sobre desastre de Mariana.
MPs recusaram-se a endossar documento e emitiram
nota de repúdio; representantes de comunidades atingidas foram incluídos apenas
em órgão consultivo.
Por Étore Medeiros, da Agência Pública –
Sem vítimas ou representantes dos atingidos na
plateia, o governo assinou na quarta-feira (2) o acordo extrajudicial com as
mineradoras Samarco, Vale e BHP Billiton para reparar os danos sociais,
ambientais e econômicos causados pelo rompimento da barragem do Fundão, em
Mariana (MG), em 5 de novembro de 2015. O acerto, que foi articulado pela
Advocacia-Geral da União, envolve o governo federal, os governos de Minas
Gerais e Espírito Santo e as empresas. Tanto o Ministério Público Federal (MPF)
como os Ministérios Públicos (MPs) de Minas Gerais e do Espírito Santo
manifestaram repúdio ao texto e não compareceram ao evento, que ocorreu no
Palácio do Planalto. Na minuta divulgada com exclusividade
pela Agência Pública, os três órgãos eram citados como participantes
do acordo. Isso não ocorreu.
Apesar da pompa da cerimônia, a íntegra do
documento não foi apresentada – com a promessa de que só será tornada pública
após a homologação dos termos pela Justiça. Foram revelados apenas alguns
pontos do acerto, que estima os custos das reparações em R$ 20 bilhões. Na
versão preliminar a que a Pública teve acesso, as empresas decidiriam como
indenizar as vítimas, que não participariam de nenhum órgão ligado à Fundação
que será criada para cuidar dos trabalhos de recuperação da bacia do Rio Doce e
dos municípios e comunidades atingidos.
Dilma cumprimenta o Presidente da Vale, Murilo
Ferreira, na assinatura de Termo de Ajustamento de Conduta entre a União, os
estados de Minas Gerais e do Espírito Santo e mineradoras no Palácio do
Planalto. Foto: Roberto Stuckert Filho/PR
Os três MPs criticaram tanto a falta de
participação e mesmo de informação às comunidades envolvidas como as diretrizes
do documento, que priorizariam “a proteção do patrimônio das empresas em
detrimento da proteção das populações afetadas e do meio ambiente”. Em nota
publicada no site do MPF, os órgãos reforçam ainda que a assinatura
do acordo não extingue as demais ações judiciais movidas pelo Ministério
Público em Minas Gerais e no Espírito Santo.
O procurador Jorge Munhós, do Ministério Público
Federal (MPF) de Minas Gerais, que integra a força-tarefa de Mariana na
instituição, conta que tanto o MPF quanto os MPs de Minas e do Espírito Santo
foram convidados a participar das reuniões, em Brasília, entre o governo e as
empresas, nas quais foram costurados os termos do acordo. “Obviamente que o
MPF, como fiscal da lei, aceitou integrar as reuniões – até para entender o que
estava sendo negociado. Chegou um momento em que identificamos que o texto era
insatisfatório para reparar integralmente o meio ambiente e a proteção dos
afetados. Naquele momento, informamos que não iríamos assinar o documento nem
integrar a estrutura de governança”, disse.
Isso ajuda a explicar o porquê de os nomes das três
instituições terem simplesmente sumido entre as versões prévias do acordo e o
documento final. “Nas versões preliminares, inclusive a que a Pública teve
acesso, constavam os MPs, mas como uma expectativa do poder público e das
empresas de que, caso concordássemos, integraríamos o acordo. Se fosse um bom
acordo, óbvio que hoje estaríamos aplaudindo e assinando. Mas ele se preocupa
com a blindagem patrimonial das empresas, com evitar reflexos negativos ao patrimônio
das empresas decorrentes da responsabilização, em detrimento da proteção dos
afetados e a reparação integral do meio ambiente. Por isso, entendemos que não
deveríamos corroborar esse texto”, afirmou.
Os pontos mais críticos no documento assinado no
Palácio do Planalto, segundo Munhós, são o estabelecimento de um limite de
gastos para as empresas repararem o meio ambiente, as comunidades atingidas, e
compensarem os danos ambientais causados. “Existe um limite global, que gira em
torno de R$ 20 bilhões, que é valor colocado pelo poder público sem critérios
técnicos que o justifiquem. Até hoje não se sabe de onde [esse número] foi
tirado, quais os parâmetros técnicos para se chegar nele.”4
Apesar de ministros terem garantido, na cerimônia
de assinatura, que não há teto para os investimentos, Munhós observa que, se
mantido o último texto ao qual ele teve acesso, há poucos dias, existe sim um
teto, de 30% do valor total – ou seja, podendo chegar a R$ 26 bilhões. “Até
hoje nós temos rejeitos vazando do local onde era a barragem de Fundão. Até
hoje o dano continua acontecendo. Até hoje não temos um diagnóstico do que
efetivamente foi impactado. Como valorar financeiramente quanto vai custar para
reparar esse dano, se não se conhece a sua dimensão?”, questiona o procurador.
Ainda segundo ele, o MPF requereu junto à 12ª Vara
Federal da Seção Judiciária de Minas Gerais que, após o acordo ser juntado
oficialmente ao processo – cujas partes são o poder público e as empresas –
sejam concedidas vistas de seu inteiro teor aos procuradores. “Vamos justificar
todas as questões de não concordância e requerer que ele não seja homologado”.
Munhós explica, entretanto, que o fato de o MPF não concordar com o texto não
impede que as partes comecem a executá-lo. “O que não admitimos é que haja uma
homologação e que sobre essa questão se faça coisa julgada, impedindo novas
questões. O acordo seria muito bom se fosse compreendido como uma garantia
mínima de aportes de recursos, de proteção do meio ambiente e dos afetados – aí
sim ele seria corroborado pelo MPF. Mas se pretendendo ser um instrumento
exaustivo em relação ao evento e todos os seus efeitos, não podemos concordar.”
O promotor Mauro da Fonseca Ellovitch, do
Ministério Público de Minas Gerais, explica porque a instituição não exerceu a
prerrogativa de ingressar como parte na ação civil pública que tramita na 12ª
Vara e, portanto, no documento assinado ontem. “O MP chegou a ser consultado
sobre o acordo, mas não teve oportunidade para participar ativamente da
elaboração das obrigações, não concordou com a metodologia empregada na
negociação do termo e nem com o estabelecimento de uma estrutura mais vaga e
burocrática para a execução das medidas de reparação dos danos sociais e
ambientais”, diz Ellovitch, que é o coordenador da Coordenadoria Regional das
Promotorias de Justiça do Meio Ambiente das Bacias dos Rios das Velhas e
Paraopeba.
Assim como Munhós, o promotor ressalta que ainda
não teve acesso à versão final do texto, e que portanto não pode avaliar as
providências cabíveis quanto à homologação do acordo e quanto a integrar ou não
os espaços previstos na estrutura de governança. “Na concepção do Ministério
Público, a partir das informações disponíveis ao público até o momento, o
documento assinado atende mais às pretensões da Samarco, Vale S/A e BHP
Billiton do que aos interesses do meio ambiente e da sociedade. Por isso, a
instituição continuará pleiteando e fiscalizando a adoção de providências
concretas para reparar e compensar adequadamente os danos deste que é o maior
desastre ambiental da história do país”, completa Ellovitch.
Atingidos
O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) considerou que o governo “rendeu-se” à
Samarco, mineradora que operava a barragem do Fundão. “Não há
nenhuma linha que garanta a participação dos atingidos”, diz o texto publicado
pela Coordenação Nacional do MAB na internet. “As principais vítimas dessa
tragédia foram totalmente excluídas no processo de construção do acordo e
também não terão o direito de opinar sobre a reconstrução de suas próprias
vidas. Na verdade, as vítimas não terão o direito nem mesmo de se declararem
como tal, porque este poder será exclusivo à própria Samarco.”
Durante o evento, a ministra do Meio Ambiente,
Izabella Teixeira, afirmou que o governo dialogou com “todo mundo”, inclusive
com o MAB. “Só não falamos com o papa porque não deu chance, senão tínhamos
falado”, disse. O advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, disse que o
acordo prevê a constituição de dois comitês dos atingidos em Mariana e Barra
Longa, as duas comunidades mais diretamente impactadas pela lama da Samarco.
Essa seria uma das 12 propostas de um total de 15 apresentadas pelos movimentos
de barragens e pelo Ministério Público de Minas Gerais, e que foram aceitas
pelos governos e pelas empresas, disse o ministro da AGU.
Na nota, entretanto, o MAB nega que tenha
participado do processo. “Em nenhum momento o governo se mostrou disposto a nos
consultar sobre qualquer acordo. O Movimento dos Atingidos por Barragens,
enquanto principal movimento social de atingidos por barragens no Brasil, foi
completamente ignorado. Fomos informados desse acordo pela própria imprensa,
nacional e internacional, que nos ligaram a partir da denúncia realizada pela
Agência Pública.”
Conselho Consultivo
Apesar da ausência do texto completo do acordo, as
informações divulgadas pela assessoria da Presidência da República, por meio de
um release, apontam para duas alterações importantes no texto que foi assinado
em relação à minuta elaborada no início de fevereiro. A primeira é a ausência
dos MPs, que estavam listados como parte no documento anterior. A segunda é que
a nova redação inclui cinco representantes indicados pelas comunidades
impactadas (três de Minas Gerais e dois do Espírito Santo) no Conselho
Consultivo da Fundação privada que será criada e controlada pelas três empresas
– e na qual serão depositados todos os recursos. Como o texto do acordo não
está disponível na íntegra, não é possível saber como essas pessoas serão
escolhidas.
“A Fundação terá um Conselho Consultivo. Será
composto por especialistas, membros da sociedade civil e das comunidades
impactadas. Garantirá participação da sociedade e de representantes dos
atingidos”, diz o release distribuído pela Presidência. Antes com 15
integrantes na minuta obtida pela Agência Pública, agora o Conselho Consultivo
terá 17 membros. O grupo incluirá, além dos representantes dos atingidos,
pesquisadores (5), representantes do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Doce
(5) e da Comissão Interministerial para Recursos do Mar (2). Antes, o Comitê da
Bacia Hidrográfica do Rio Doce tinha sete representantes.
A instância tem possibilidades de atuação
limitadas, podendo somente recorrer ao Comitê Interfederativo em caso de
insatisfação com medidas e justificativas da Fundação privada. Formado por
representantes dos governos federal (4), estadual (2), municipal (3) e por um
representante do Comitê da bacia do Rio Doce, o Comitê Interfederativo é a
instância na qual deverão ser aprovados todos os atos da Fundação, e onde
poderão ser aplicadas sanções em caso de descumprimento de prazos ou metas.
Para o procurador federal Jorge Munhós, do MPF, a
instituição ainda não decidiu se vai exercer a prerrogativa prevista no acordo
de indicar um dos cinco pesquisadores do Conselho Consultivo. “Isso não foi
decidido ainda no MPF, se vamos indicar, se há interesse. Até porque a função
do conselho é muito acessória na estrutura de governança, meramente opinativa,
sem função deliberativa. É algo a ser estudado. Mas nem sabemos se a versão
final manteve essa indicação.”
Reparação
“O atendimento das vítimas é prioritário: nos três
primeiros anos a ênfase da execução do acordo é o atendimento das vítimas –
reparação, indenização, reconstrução de casas, reestabelecendo as comunidades.
Essa é a ênfase desses R$4,4 bilhões, o atendimento à reparação das vítimas
dessa tragédia”, disse Adams.
Além dos R$ 4,4 bilhões até 2018, as medidas
reparatórias têm um custo total estimado em R$ 20 bilhões, a serem investidos
ao longo dos 15 anos de vigência do acordo. “A reparação é a dragagem dos rios,
a indenização das casas [destruídas] e das pessoas. Tudo isso são medidas
reparatórias, medidas sem limite [de custos]. Toda reparação necessária será
integral”, afirmou Adams – embora o procurador Munhós alerte que as versões
anteriores do texto estipulavam sim limites de repasses por parte das empresas.
Segundo informações da assessoria de imprensa da
Presidência da República, os atingidos que não concordarem com os valores das
indenizações propostas pelas empresas poderão procurar a Justiça. Isso, no
entanto, não os exclui dos benefícios das ações socioeconômicas que serão
bancadas pela mineradoras.
Compensação
Além disso, também até 2018, as empresas investirão
outros R$ 500 milhões destinados especificamente para o saneamento básico nas
39 cidades da calha do rio Doce, a título de compensação. Outras 18 ações
compensatórias ambientais estão definidas no texto, como a recuperação da área
de 5 mil nascentes e da vegetação ao longo de 40 mil hectares, a instalação de
programas de monitoramento da qualidade da água e a construção de centros de
recuperação de fauna, entre outras. “Eu tive morte de ictiofauna [peixes], que
eu não vou recuperar aqueles indivíduos. Eu tive destruição de cadeia alimentar
dentro do rio. Eu não tenho como restaurar a cadeia alimentar, então você
compensa o dano”, explicou a ministra Izabella Teixeira.
Ao todo, segundo os ministros, o texto estima um
teto de R$ 4.1 bilhões nestas medidas compensatórias ao longo dos 15 anos de
cumprimento do acordo, ou seja, este é o teto dos investimentos que terão de
ser feitos pelas empresas além de reparar os danos. Já o valor total da
recuperação ambiental e de outras reparações socioeconômicas, segundo o
governo, pode oscilar em alguns bilhões, em torno da estimativa inicial de R$
20 bilhões, sendo impossível hoje, sem estudos completos de todos os impactos,
prever com exatidão quanto será necessário. Por isso, o orçamento será revisto
a cada três anos.
“Essa projeção permite que você inclusive gaste
mais. Nós não sabemos, e ninguém sabe, o quanto será necessário para reparar,
para indenizar. E ela não será limitada por causa disso, porque é indenização.
Em relação às compensações, [serão] R$ 240 milhões por ano, em 15 anos, mais os
R$ 500 milhões [do saneamento], que entendemos ser um volume de recurso
expressivo para as ações de compensação necessárias na região. Não é que estão
garantidos R$ 20 bilhões, o que está garantido são as ações, os 38 programas
que serão executados”, reforçou o advogado-geral da União.
Cerimônia
A cerimônia de assinatura do texto foi recheada de
congratulações, para todos os lados. Nenhuma palavra senão elogiosa foi dita
pelos representantes do Estado brasileiro aos presidentes e representantes das
mineradoras. “Nós vamos ter uma bacia do rio Doce melhor do que ela estava
antes da tragédia”, disse efusivo o ministro Adams. “O interesse comum engajou
a todos nós na busca de soluções”, comemorou a presidente Dilma Rousseff.
Pouca coisa foi falada sobre a prevenção de novos
desastres. “A tragédia nos deu lições sobre a necessidade de medidas ainda mais
bem estruturadas de prevenção de crises e preservação do meio ambiente”, disse,
de passagem, a presidente Dilma Rousseff – apesar de o governo apoiar um
projeto que tramita no Senado Federal e que pretende reduzir o rigor das licenças
ambientais para obras de infraestrutura estratégicas.
Apesar da pompa da cerimônia, a íntegra do acordo
não foi apresentada. Foto: Roberto Stuckert Filho/PR.
Adams enalteceu o papel das áreas jurídicas das
empresas e dos governos, por terem levado apenas três semanas para a formatação
final do texto. “Tinha reuniões que tinham mais de 40 pessoas, negociando
cláusulas. E quem sabe como é negociar cláusula, é difícil – se discute até
vírgula”, disse. Depois, o ministro afirmou, em tom apoteótico: “Nós vamos ter
uma bacia do Rio Doce melhor do que ela estava antes da tragédia, por causa
desse acordo”.
Para constrangimento de Adams, ele foi repreendido
pela ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira. “Foram quatro meses de
sofrimento, tá? Quatro meses. Três semanas? Nã-nã-não. Três semanas que você
está dedicado a isso. Você está indo embora, hoje é o seu aniversário, mas não
vai ficar isento não”, alfinetou. Izabella trouxe à tona o conteúdo do
telefonema que recebeu do governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT), no
dia do rompimento da barragem, 5 de novembro. “Mineiramente, ele me disse o
seguinte: é grande”, conta Izabella. “Ninguém tinha noção do que veio a ser, e
pode ser dito sem nenhuma restrição, o maior desastre ambiental do Brasil”,
completou.
Batizado pelo governador do Espírito Santo, Paulo
Hartung (PMDB) como um “termo de compromisso de recuperação da região do
entorno de Mariana” e “um termo de compromisso da recuperação do nosso querido
rio Doce”, o acordo foi celebrado por ele como ferramenta para se chegar a “um
Rio Doce muito melhor – não é melhor, é muito melhor! – do que a Bacia
Hidrográfica do Rio Doce estava no momento do desastre gravíssimo, que é o
maior acidente ambiental da história do Brasil”. Hartung reconheceu que apesar
do orgulho demonstrado pelos oradores, a assinatura do documento é só o começo.
“As tarefas mais difíceis estão pra frente ainda, tem muita coisa a fazer.”
A presidente Dilma Rousseff usou da fala também
para justificar o porquê da assinatura do documento, deixando de lado o embate
nos tribunais. “Nós queríamos mais celeridade. Mais importante, conciliamos
essa celeridade com a certeza de que nenhum respeito seria desrespeitado. Esses
eram os dois pilares fundamentais desse acordo, com a certeza de que nenhuma
reparação deixaria de ser feita, e todas as responsabilidades seriam
assumidas”. Segundo Dilma, entre as medidas de curtíssimo prazo previstas no
texto estão a reparação dos danos pessoais e a restauração das condições de
vida das vítimas e da população atingida.
Com um discurso aparentemente voltado aos
opositores do governo federal, a presidente disse ainda que o acordo “é uma
demonstração de que, quando todos querem, é possível superar crises e vencer
grandes desafios”. “A sociedade brasileira poderá olhar para Mariana, para
Minas e para o Espírito Santo, e indagar: se eles conseguiram em quatro meses
construir uma solução consensual, por que não se faz o mesmo com a crise
econômica que afeta o país?”, provocou.
No encerramento da fala de chefe do Executivo
federal, uma fala sintetizou o clima de toda a cerimônia: “O desastre vai ficar
na história do país, nós sabemos, mas nós queremos que, mais que o desastre,
seja o renascimento do rio Doce a mais importante memória a partir de agora”.
Fonte: Agência Pública
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