Desconstruindo
Luanda Sul.
Como uma offshore da Odebrecht investigada na Lava
Jato participou do projeto que levou a remoções violentas, segregação social e
enriquecimento da elite na capital angolana.
Por Eliza Capai e Natalia Viana, da Agência Pública
–
Há alguns meses o nome Osel Angola apareceu em meio
às investigações da Lava Jato. Segundo os investigadores, a conta da empresa no
Citibank em Nova York foi usada para transferir US$ 6,3 milhões em transações
que acabaram beneficiando os ex-diretores da Petrobras Paulo Roberto e Renato
Duque, numa operação de lavagem de dinheiro.
A Odebrecht Serviços no Exterior (Osel), com sede
nas ilhas Cayman, é uma das muitas offshores do grupo empresarial. Manteve um
escritório de representação em Angola entre 1985 e 2006, segundo a assessoria
de imprensa do grupo, quando executou um único projeto: a urbanização da parte
sul de Luanda. “Eu sei que é uma empresa do grupo Odebrecht e que assinou o
contrato por ser uma empresa da organização, mas como se executou esse projeto
em Angola e como foi essa relação não sei dizer pro senhor”, afirmou o
superintendente da Odebrecht, Antônio Carlos Dahia Blando, em depoimento à
Justiça Federal, em Curitiba.
Se na direção atual da Odebrecht em Angola a
lembrança é parca, nas ruas do bairro das Gaiolas, uma comunidade que resistiu
na área da monumental Talatona – como Luanda Sul é hoje conhecida –, a memória
ainda é fresca. O difícil é conseguir ouvi-la em meio às ruas de terra, casas
humildes e casarões coloridos, por causa do receio dos moradores. “Vivemos aí
num país de medo. A permanência do poder já é bastante tempo e as pessoas
reclamam. Então, quando você diz alguma coisa que não é de agrado do sistema,
vão falar, ‘esse homem, onde que ele vive?’ Para levantar quem eu sou não custa
nada”, justifica um homem ao negar a entrevista. O governo de José Eduardo dos
Santos, principal cliente da Odebrecht, já dura 36 anos.
“Fica seguro”, responde outro. “Às vezes também é
bom que o mundo saiba que existimos.”
Crianças no bairro das Gaiolas. Ao fundo, prédios
de Luanda Sul. Foto: Eliza Capai/Agência Pública
Nasce Luanda Sul
O projeto Luanda Sul foi pioneiro na reformulação
urbana da capital, um processo marcado por expulsões forçadas e massivas e
violências sistemáticas contra a população pobre e já traumatizada por duas
décadas de guerra civil.
Tudo começou em 1994, quando a Odebrecht ainda
engatinhava em Angola. A celebrada construção da hidrelétrica de Capanda, com
financiamento brasileiro e russo, e a operação da primeira mina de diamantes
haviam sido suspensas depois de serem invadidas pelas forças rebeldes da Unita,
que disputavam o território com o MPLA, partido que está até hoje no poder.
Desenvolver a cidade de Luanda foi uma nova aposta
da Odebrecht na vitória do MPLA. Durante a guerra civil, a capital viu uma
explosão na sua população. Os que fugiam dos violentos combates no interior
ocupavam terrenos vazios, eram acolhidos por moradores mais antigos ou
camponeses que tinham lavras nos arredores da cidade. De 500 mil habitantes em
1975, a população mais que decuplicou, chegando a cerca de 7 milhões
atualmente.
Em 1992, uma nova Lei de Terras determinou que toda
terra pertence ao Estado, que pode revogar o direito de uso dos moradores para
fins de “utilidade pública”. Pouco depois a guerra se acirrou; no final dos
anos 90, aumentaram as ocupações de áreas pouco habitadas, como Luanda Sul. Aos
olhos do governo do MPLA, essas ocupações eram ilegais – e seriam tratadas como
tal.
Para sanar o problema, em 2 de junho de 1994 o
governo provincial (estadual) de Luanda assinou com a Odebrecht Serviços no
Exterior (Osel) um contrato para o “Desenvolvimento Urbano Autofinanciado” da
capital, visando “inverter a tendência de ocupação desordenada e melhorar as
condições urbanas”. Entre os objetivos estava “evitar as ocupações ilegais de
terrenos, oferecendo alternativas planeadas e minimamente infraestruturadas”,
de acordo com o decreto publicado no Diário da
República.
A Odebrecht construiu infraestrutura urbana para o
bairro de 1,6 mil hectares (água, luz, esgoto, avenidas) e recebeu em troca a
cessão de direito de uso de terrenos, podendo até mesmo vendê-los.
Foi a
primeira parceria público-privada adotada no país, que na época era socialista.
Com transferência de tecnologia da Odebrecht, a empreiteira ajudou ainda a
formatar a empresa de capital misto Edurb – Empresa de Desenvolvimento Urbano –,
encarregada de administrar o território, uma sociedade do governo provincial de
Luanda com a construtora Prado Valladares, do engenheiro Lourenço Prado
Valladares, que chegara a Angola poucos anos antes a convite da Odebrecht.
Avenida em Talatona, como é conhecido o bairro
urbanizado de Luanda Sul. Foto: Ampe Rogerio/Rede Angola.
Por e-mail (confira aqui), Lourenço
disse à Pública que a Osel mantinha um gestor no projeto, atuando junto com a
Edurb até a conclusão do contrato, em 2011. Já o plano estratégico, partiu da sua
empresa. “A Prado Valladares, em 1994, após apresentar ao governo de Luanda o
Plano Estratégico para infraestruturação da expansão sul da cidade em questão,
com seu respectivo sistema de governança, foi convidada para associar-se ao
governo”, escreveu. “À Prado Valladares cabia conceber o Master Plan com os
modelos de gestão e realização das respectivas infraestruturas. Com isso,
pode-se dizer que a Edurb nasceu da concessão de ativos e de tecnologias de
desenvolvimento urbano para atuar como elo entre o setor público e setor
privado.”
No bairro das Gaiolas
Com o intuito de permitir a urbanização do sul de
Luanda, a Edurb buscou “retomar” os espaços ocupados. Para ouvir essa história,
a Pública esteve com André Augusto, vice-coordenador da ONG SOS Habitat, no
bairro das Gaiolas, numa tarde seca de setembro, época do “cacimbo”, a
estiagem.
As ruas de terra e as casas envelhecidas contrastam
com os prédios envidraçados, que sintetizam o que é o vistoso bairro de
Talatona, separado apenas por um muro.
“Aqui não tem asfalto porque é zona do povo. O
asfalto é só pra zona onde está o homem do governo, ou o homem que tem
colaboração com o governo”, diz André ao caminhar pelas ruas da comunidade. A
SOS Habitat foi formada em 2001 por vítimas de remoções como ele e é até hoje
uma das mais atuantes (e perseguidas) ONGs angolanas. Com sua camisa velha, mas
aprumada, para o dia de visitas a vítimas de demolições que não vê há muitos
anos, ele explica que no fim da guerra, entre os anos 2000 e 2002, muitos
moradores se instalaram no bairro das Gaiolas.
Criança no bairro das Gaiolas. Foto: Eliza
Capai/Agência Pública
É essa a história de Adão Miguel Oliveira, de 53
anos. Ele comprou uma parcela das lavras onde antes as “mamas” locais plantavam
mandiocais e se instalou com a família em 2001, um ano antes do fim do
conflito. “A Edurb começou a vir aqui lá pra 2003, mas lá também não foi fácil,
porque eles vinham na altura, partiam as casas, quer dizer, para permanecer
aqui não foi fácil”, conta Adão. “Eles diziam que é uma reserva fundiária do
Estado, começaram a vir aqui, a dizer que ‘não, vocês não têm direito de
permanecer e têm que sair’. Não ofereceram nada. Eles só falaram que vão nos
tirar daqui.”
André Augusto conta que o bairro foi alvo de
repetidas demolições. “A Edurb demolia as casas da população para dar espaço às
obras da Odebrecht. As pessoas levantavam umas paredes novamente, aí partiam
novamente. Isto aconteceu entre 2004 a 2007. Foi em 2007 que eles pararam
completamente de partir, de perseguir as pessoas”, diz ele.
Essas demolições faziam parte de uma onda de
expulsões massivas que atingiram também o centro da cidade e foram denunciadas
em dois relatórios contundentes da Anistia Internacional e da
Human Rights Watch em 2007. De acordo com a Human
Rights Watch, nos bairros das Gaiolas e Talatona (um antigo bairro
popular com o mesmo nome pelo qual Luanda Sul é hoje conhecido), cerca de 2.610
famílias estavam em risco de perder suas casas. Na comunidade de Talatona, a
ONG registrou durante sua pesquisa 14 casas demolidas.
Assim como em outros 16 bairros de Luanda, as
demolições eram feitas sem que se apurasse se os moradores tinham ou não
direito sobre a terra e “envolveram frequentemente intimidação, bem como
violência e destruição desnecessárias, que originaram por vezes reações de
confronto das pessoas que perderam as suas casas e os seus bens”, diz o
relatório. As vítimas não recebiam informações sobre o motivo, a data do
despejo ou o local de reassentamento. Eram apanhadas pelo que a ONG descreve
como “despejos surpresa traumatizantes”, quando se deparavam com as bulldozers
do governo e os caminhões que as levariam para longe dali.
Um documento da IFC –
International Finance Corporation, braço do Banco Mundial que financia a
iniciativa privada – afirma que, entre 1995 e 2005, 2 mil famílias foram
removidas de Luanda Sul pela Edurb. Conforme o documento, 90% dos moradores
eram “considerados pelo governo de Angola e pela Edurb como – tecnicamente
ilegais – colonos informais, tendo ocupado Luanda Sul depois de a terra ter
sido declarada fora do alcance para moradia”. Em 2005 a IFC deu um empréstimo
de US$ 10 milhões para a Odebrecht Serviços no Exterior (Osel) fazer
infraestruturas no projeto.
Lourenço Prado Valladares nega que tenha havido
demolições. Ele diz que a região foi escolhida por “ser área totalmente
desabitada, pelo fato de o terreno ser anteriormente utilizado para treinamento
e exercícios militares e pequenas lavras”, e argumenta que os moradores vieram
depois da construção das infraestruturas, principalmente da provisão de água.
“Ocorreram pressões de populares para invasões nas proximidades destas
infraestruturas com construções toscas utilizando-se chapas, plásticos,
papelões etc.”, escreveu. Assim, conclui: “É importante que se diga que não
houve realojamentos nem demolições de casas em Talatona, e sim um
reassentamento nos bairros próximos a Talatona, denominados na época de Sapu e
M’Bonde Chape. As lavras e pequenas benfeitorias rurais, preexistentes, foram
devidamente indenizadas”. No total, foram adequadamente reassentadas cerca de
3.300 famílias, diz ele. O arquiteto enviou um arquivo mostrando o fluxo de
trabalhos do projeto, que pode ser baixado aqui.
Chamem o brigadeiro
Na visão dos moradores do bairro das Gaiolas, a
história é outra. Para eles, se a Edurb não conseguiu arrancá-los dali, isso se
deve em parte a um senhor cujo sorriso não combina com o olhar sério e desconfiado.
Brigadeiro reformado com boas relações no governo, Augusto Pedro Simão guarda
na sua casa – uma das maiores do bairro – um enorme sofá de madeira entalhada,
da época colonial, seu espólio pessoal.
Augusto Pedro Simão, o Sr. Ringo, na sua casa no
bairro das Gaiolas. Foto: Eliza Capai/Agência Pública.
Quando os moradores se viram acossados pela Edurb,
convidaram o Sr. Ringo, como é conhecido, a se juntar à comunidade. Ele foi
morar lá em 2005, quando a briga já estava conflagrada, e logo se tornou
presidente da associação de moradores. Era, além de militar, um homem com
instrução, que sabia ao menos ler. “Ali já não houve conversações amenas, já
foi em termos de força, essa coisa toda, inclusive houve intervenção de ordem
pública para repor a ordem”, lembra. Até a sua casa chegou a ser alvejada pelos
tratores. “A Edurb veio à noite, partiram uma casa. Pensaram que fosse minha casa,
como eu era o responsável [pela associação de moradores], foram partir, mas era
de outra pessoa.”
Naquela altura, diz ele, “não havia negociações ou
indenização”: “A única coisa que houve foi a título de ludibriar-nos, posso
dizer assim. Nos sugeriram que conseguíssemos localizar um outro espaço. Só que
lá encontramos uma situação caricata: já lá havia casas que tinham sido
demolidas”, diz o Sr. Ringo. Ele refere-se ao Mbonde Chapé, área designada pela
Edurb para reassentamento.
Segundo a Human Rights Watch, também ali os
moradores originais foram expulsos antes que o terreno fosse urbanizado pela
Odebrecht. O relatório estima que, em 2006, aproximadamente 500 terrenos
tivessem sido “ilegalmente tomados” ou estivessem sob ameaça. “Em Mbonde Chapé,
vários terrenos foram despejados para a construção de uma área de
realojamento”, diz o texto. Moradores despejados contaram aos pesquisadores que
suas casas foram numeradas sem nenhuma explicação e demolidas em poucos dias.
Além disso, as indenizações foram distribuídas de maneira desigual, sem
avaliação do tamanho das casas ou benfeitorias, e sem nenhuma negociação. Uma
camponesa que morava ali desde 1975 relatou: “Ficamos à espera. Quando ele [o
representante do governo] chamou, rasgou um papel ao meio e pediu para assinar.
Eu não quis assinar sem saber o valor. Era 30 mil kuanza [aproximadamente US$
375]. Não aceitei. Quando fui lá para pagarem, já tinham destruído a minha
lavra”.
No caso das Gaiolas, a SOS Habitat interveio e
ajudou a coordenar protestos diante do escritório da Edurb e do governo
provincial. A repercussão internacional dos relatórios da HRW e Anistia também
ajudou. Em 2007, o poder público foi finalmente dissuadido, segundo o Sr.
Ringo. “O nosso grupo mesmo era de oficiais de alta patente, e não era bom
também que eles fizessem isso [demolir o bairro]. Havia alguns oficiais que já
haviam feito algum serviço para a ordenação, então não era bom nos tirar…”,
diz.
André Augusto, vice-coordenador da SOS Habitat.
Foto: Eliza Capai/Agência Pública.
“Não existe outra área onde outra empresa tenha
feito tanto como aqui”, diz André Augusto. “Só que não temos informação de como
as coisas funcionam porque aqui a informação é uma coisa muito fechada.” Ele
faz questão de ressaltar que o conflito dos moradores foi com o governo
provincial, não com a empreiteira. “Mas a nossa preocupação é que a Odebrecht
tem atuado num comportamento omissionista. Ela acompanha os acontecimentos, mas
finge que não aconteceu nada, e aí pega a obra, ganha o dinheiro e vai embora.”
Talatona é uma mina de ouro
Hoje, Luanda Sul não é nem sombra do que fez o
projeto receber comendas internacionais como o Prêmio Dubai 2000, na
Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos (UNCHS) e o Prêmio
Embaixador Estocolmo 2002, no Fórum sobre Cidades Sustentáveis. O bairro não
“resolveu as imensas necessidades de comunidades de baixa renda e deslocadas
pela guerra”, como prometido.
Nas suas ruas, diferentemente do resto da cidade,
quase não se vê gente – muito menos pobres. Com avenidas enormes de mão única,
muitas delas circulares, só se pode andar de carro, já que o transporte público
é inexistente; chegar de um ponto a outro demora um exagero. “A gente brinca
que Talatona foi projetada por um estagiário”, repetiu algumas vezes um
executivo da Odebrecht à reportagem. Prédios altos e envidraçados dividem
espaço com largos condomínios fechados, com playgrounds, quadras de esporte,
piscina e grama verde irrigada mesmo em plena época do cacimbo.
Dentro do
Bellas Shopping – o primeiro do país, construído pela Odebrecht – ou dos
restaurantes, veem-se muito mais brancos do que em qualquer outro lugar de
Luanda. Ali é o lar dos brancos, estrangeiros e poderosos de Angola.
A arquiteta portuguesa Sílvia Leiria Viegas, que
durante seis anos estudou a urbanização de Luanda para sua tese de doutorado,
Luanda, Cidade (im)previsível, pela Universidade de Lisboa, aponta uma divisão
clara: a população pobre “não cabe” no conceito de cidade que está sendo
construído em Luanda. “A ideia é: ‘queremos a cidade dos mais ricos, vamos
fazê-la à imagem dos que têm mais dinheiro. Só quem vai a Luanda é que consegue
entender a dimensão dos despejos e da periferização da pobreza, ou seja, os
pobres estão para ser expulsos para o mais longe possível.”
Usando os terrenos concedidos pelo governo, a
Odebrecht tornou-se a maior operadora do mercado imobiliário local, no qual uma
casa em um condomínio fechado pode chegar a mais de US$ 4 milhões. Eduardo
Mattos, diretor de Contrato da Odebrecht Infraestrutura, afirmou que a receita
com empreendimentos imobiliários em Talatona foi de cerca de US$ 1 bilhão na
última década. “Nós trouxemos para cá o conceito de condomínio-clube, que não
existia. Todos esses nossos empreendimentos são condomínios fechados, com
segurança, toda parte de instalações, geradores de energia, reserva de água
etc., sempre com foco no público de alta renda ou até um público voltado às
petrolíferas”, diz Mattos.
Alguns desses empreendimentos renderam divisas para
pessoas do círculo do presidente José Eduardo dos Santos. A Odebrecht construiu
para os funcionários da Chevron o condomínio Monte Belo, cujo valor imobiliário
ultrapassa US$ 250 milhões, em parceria com a Sakus – Empreendimentos e
Participações S.A. Segundo o jornalista investigativo
angolano Rafael Marques, a Sakus pertence ao vice-presidente angolano, Manuel
Vicente, e é administrada pelo seu enteado.
HidrelétricaEm Angola, a Odebrecht no espelho
ObrasA equação brasileira angolaUma aula sobre Angola.
Enquanto construiu o condomínio Kizomba para
funcionários da petroleira Esso, entre 2002 e 2006, a
Odebrecht manteve contrato com a empresa de segurança Teleservice, de
propriedade de alguns dos mais influentes generais do país – entre eles António
dos Santos França N’Dalu, que foi duas vezes vice-ministro da Defesa e é
tratado como “general dos generais”, um velho conhecido da empreiteira (leia mais aqui). Segundo
Mattos, as casas no condomínio com quadras poliesportivas, piscina e pista de
corrida podem chegar até US$ 4 milhões. Outras petroleiras como BP e Maisk têm
casas ali, assim como a própria Odebrecht; é onde mora o seu
diretor-superintendente.
“As pessoas que conseguiram casas nos condomínios
de Luanda Sul são as que trabalham para os bancos, para os ministérios. A
doação de habitações tornou-se um importante instrumento de cooptação
política”, explica António Tomas, professor da Universidade de Stellenbosch, na
África do Sul, e autor de um livro sobre o desenvolvimento urbano de Luanda.
Segundo ele, esses condomínios acabaram virando um mecanismo de transferência
de dinheiro do Estado para a elite angolana. “As casas em Luanda tornaram-se
uma fórmula de enriquecimento. Muitas pessoas que eram membros do partido ou
trabalhavam com o governo tinham residências deixadas pelos portugueses no
centro da cidade. Quando a Odebrecht começou a construir Talatona e começaram a
aparecer esses empreendimentos, muitas ganharam casas do Estado. Então
colocaram as suas casas para alugar a preços altamente exorbitantes. As
empresas que alugavam esperavam que esse favor abrisse portas”.
O jornalista Rafael Marques ilustra a prática com
uma história pessoal. Um dia, estava em um avião e um executivo do ramo
petrolífero confessou-lhe: “Estava sentado ao meu lado e embriagou-se; e disse
que ele não conseguia perceber por que o apartamento em que ele vivia sozinho,
de dois quartos, custava US$ 60 mil por mês. E a multinacional que alugou o seu
apartamento, uma multinacional europeia, já tinha pago com dez anos de avanço.
Esta multinacional não precisava pagar aos altos funcionários sem
justificativa. Podia legalmente apresentar nas contas para auditoria que tinha
alugado um apartamento a US$ 60 mil, porque o setor imobiliário é muito caro.”
Esse esquema permitiu, por um lado, o
enriquecimento de muitos dos membros do governo e, por outro, tornou-se uma
maneira de dar legalidade à corrupção. “Quando uma multinacional aluga uma casa
a este valor, está não só a legitimar pagamentos altamente corruptos, mas
também a legitimar o branqueamento dos capitais [lavagem de dinheiro], porque
depois este indivíduo que pertence ao poder pode retirar seu dinheiro pro
exterior com documentos devidamente verificados de que presta um serviço a uma
multinacional”, analisa Rafael.
“Eu conheço muita gente que fez a vida através
disso”, completa o professor António Tomas. “Mandaram seus filhos para estudar
no exterior, fizeram investimentos… Isso é completamente corrupto, mas é uma
corrupção altamente formalizada”.
Outras expulsões
Depois de ter desenvolvido Luanda Sul, a Odebrecht
construiu boa parte da Luanda que se vê hoje: a Estrada do Samba, as Vias
Expressas, a Estrada do Golfe, a Autoestrada Periférica, a ampliação do
Aeroporto 4 de Fevereiro. Alguns desses projetos levaram a mais remoções, como
foi o caso da Estrada do Samba; outros ainda vão gerar, como o BRT, Bus Rapid
Transport, com 53 quilômetros de extensão, que vai expulsar 7 mil famílias, segundo afirmou o ministro da
Construção ao site Rede Angola.
No entanto, o processo mais longo e chocante é a
destruição da Chicala, um musseque que desde a época da independência ocupava
uma bonita parte da baía de Luanda. As demolições ocorrem há vários anos. Ali,
ex-moradores e crianças montam barracas sobre os escombros para vender comida
durante o dia. No seu lugar prevê-se a construção de hotéis de luxo e um
calçadão com shopping a céu aberto e áreas verdes em frente ao mar.
A Odebrecht participa do projeto com as pontes
sobre as valas e ponte do Km 7 – financiada pelo BNDES e concluída em 2012 – e
obras de aterro hidráulico, proteção costeira, pavimentação, iluminação pública
para Nova Marginal, que ainda não começaram. Mas a construção da Nova Marginal
já foi usada como justificativa para a destruição do bairro de pescadores de
Areia Branca, em 2013, na zona da Chicala, em uma bonita península diante do
Mausoléu de Agostinho Neto, primeiro presidente de Angola livre.
Mais uma vez, os moradores foram retirados sem
nenhum aviso prévio e não receberam indenizações ou uma alternativa sequer, num
processo que André Augusto classifica como o mais grave da história da SOS
Habitat. “Integrantes da Casa Militar, da Polícia Militar e da administração de
Luanda cercaram a comunidade por quatro dias. Não conseguiam sair nem entrar.
As pessoas acabaram por perder todos os haveres que tinham no local, estoques
de alimento, e começaram a ser perseguidas pela polícia. Esse sofrimento durou
quase um mês. A situação abrandou, as pessoas encontraram um lugar por cima das
plataformas de drenagem e até hoje estão morando ali, em casas de chapas de
zinco”, diz ele.
Até hoje a estrada não foi construída. No lugar do
bairro, há alguns barracões militares e um grande vazio de areias brancas.
A Odebrecht participou também da outra face da
reformulação de Luanda – e das expulsões massivas: a construção de um
gigantesco projeto de moradia popular, o Zango, situado a 40 quilômetros do
centro de Luanda. Dentro do Programa de Realojamento das Populações do governo
angolano, iniciado em 2002, construiu 13,3 mil casas e 36,3 mil infraestruturas
de água e energia elétrica para as unidades habitacionais – uma parte desse
esforço recebeu financiamento de US$ 281 milhões do BNDES (saiba mais aqui). Para lá foram levadas mais de
200 mil pessoas, expulsas de diversos bairros centrais, “que se encontravam em
situações precárias de vivência, expostas a situações de risco (encostas, valas
etc.) ou em áreas de requalificação urbana”, segundo a assessoria de imprensa
da Odebrecht.
Em uma breve visita ao Zango 4 com representantes
da Odebrecht, em setembro do ano passado, a Pública ouviu dos moradores que as
primeiras casas entregues não possuíam piso nem quintal. Mas esse é apenas um
dos problemas. Um vídeo filmado em 2013 pela
SOS Habitat mostra a situação precária: as ruas eram de terra, as casas não
tinham reboco nem janelas suficientes. Os moradores, revoltados, relatam ter
sido despejados ali, dez pessoas em cada casa, sem eletricidade nem água.
Moradoras em meio às demolições no bairro da
Chicala. Foto: Eliza Capai/Agência Pública.
Em entrevista à Pública, Batista Mendonça,
coordenador da Comissão de Moradores do Zango 4, diz que, embora o problema de
falta de luz tenha sido razoavelmente sanado para os padrões caluandas – “Às
vezes temos luz, às vezes a luz vai, mas mais tarde vem”–, a falta de água
ainda é um problema recorrente. “A vida antes foi mais fácil porque as pessoas
tavam a trabalhar próximo da cidade.
Agora aqui no Zango tá muito difícil. As
pessoas acordam aqui 4h para chegar na cidade 6h para trabalhar. Muita gente já
perdeu o emprego através desse alojamento”, relata. Ele mesmo perdeu seu
trabalho no dia 5 de fevereiro de 2012 – e lembra a data com exatidão. Quando
chegou ali, não havia nem mesmo vans, ou “candongueiros”, que se aventurassem
até o Zango 4: os moradores tinham de ir a pé até outro conjunto habitacional
de onde saíam vans para a cidade. Hoje em dia, os candongueiros cobram até 50%
a mais se está chovendo.
Durante a entrevista, o calor se mistura com o
cheiro do lixo e as moscas interrompem o raciocínio de Batista. Há pilhas e
pilhas de lixo ao lado das casas. “Desde 2012 já tinha uma empresa. Essa
empresa não conseguiu recolher o lixo até hoje. Tá muito acumulado”, diz ele.
Quando as pilhas estão muito altas, a população rateia um galão de gasolina
para atear fogo – uma cena presenciada pela reportagem da Pública em diversos
bairros pobres da capital angolana.
Fonte: Agência Pública
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