Após
tragédia, crianças voltam à escola em busca de identidade em Minas Gerais.
Para o ano de 2016, a diretora de escola
Eliane esperava que muitos pais optassem por matricular os filhos em
escolas mais próximas de seus hotéis ou de suas residências provisórias; mas as
crianças continuaram a querer estudar na provisória Bento Rodrigues.
Por Cecília Garcia, do Promenino, com Cidade Escola
Aprendiz –
Era uma escola de corredores largos, por onde,
através das janelas, podia-se ver a movimentação do pequeno distrito que a
rodeava. Nas paredes, que nem se sabia tão frágeis quanto os cartazes de papel
nelas colados, estavam os desenhos dos alunos. Poucos traços coloridos em
formas de pessoas, mas por o serem, era possível conhecer os nomes e a família
de cada um dos estudantes. Meninos e meninas que moravam tão perto da Escola
Municipal Bento Rodrigues que de suas casas podiam ouvir o sinal tilintando.
Latidos de cachorro, pipas aprumadas no céu e bicicletas circulando por ali
compunham o cenário do subdistrito de 307 anos de idade.
Mariana é um município que, como tantos em Minas
Gerais, nasceu do processo de extração de minérios instalado em meados do
século 18 no Brasil, que tanto enriqueceu a corte portuguesa. Mais de 300 anos
depois, quem enriquece é a Samarco – e, por consequência, a Vale e a empresa
BHP Billinton, suas acionistas. Extraindo ferro, movimentava 80% das
arrecadações de Mariana, tornando a cidade dependente de sua atuação. Bento
Rodrigues, um dos subdistritos, ficava no caminho do complexo de barragens de
rejeitos tóxicos imóveis, viscosos e alaranjados.
Quando duas dessas barragens cederam, no dia 5 de
novembro de 2015, as cinco turmas da escola Bento Rodrigues estavam quase
encerrando suas atividades. Era 16h30, e se ouvia no ar um burburinho esquisito,
cada vez mais alto. A diretora da escola, Eliene G. dos Santos, percebeu uma
movimentação atípica nas ruas. Não foi antes de o marido aparecer na porta da
sala que chegou a informação do rompimento das barragens e da necessidade de se
evacuar a escola.
Foto: Rogério Alves, da TV Senado, via
Flickr/Creative Commons
Eliene correu pelos corredores, alertando os alunos
e colegas, aos berros. “As crianças ficaram tão atônitas que não conseguiam
sair do lugar. Não sei se eles pensaram que eu estava brincando, então tive de
gritar para correrem. Conseguimos salvar todo mundo”. Do alto de morro, após
cruzarem uma ponte que se quebrou como se feita de gravetos pela passagem de 62
milhões de metros cúbicos de lama tóxica, ela observou a escola que dirigia
desde 2013 ser engolfada pela massa ocre e sumir junto ao município.
O desaparecimento de uma comunidade que nasceu
pelas mineradoras e se extinguiu também por suas mãos teve sua síntese na
estrutura esquelética que sobrou da escola.
“Perdeu-se o chão”. Eliene assim descreve a
tragédia não só fisicamente – Bento Rodrigues tornou-se inabitável e seus
moradores foram relocados para hotéis na cidade de Mariana ou se abrigaram na
casa de parentes de distritos próximos, incapazes de resgatar animais de criação
ou geladeiras recém-pagas. Quando ela diz que ficaram sem chão, também o faz
metaforicamente, porque a história se perdeu na enxurrada: Eliene não acreditou
que fosse possível dar continuidade a um ano letivo tão despedaçado.
Processo de reconstrução
Três dias após a tragédia, a Secretária Municipal
de Mariana procurou Eliene em seu lar provisório e a convidou a pensar como
continuar as aulas em 2015. Anunciou que não seria tarefa fácil, porque todos
os alunos estavam muito assustados. Mas também entendeu: recuperar a escola
seria um processo decisivo para que as crianças começassem a superar a
tragédia. Depois de uma semana sem aulas, os estudantes da escola Bento
Rodrigues retomaram suas atividades alocados na escola Dom Luciano.
“Vimos que as crianças aos poucos iam se
recuperando, no ato de rever os amigos e os professores. Ficaram também muito
felizes de sair do hotel, porque a criança da Zona Rural quer correr na rua,
soltar pipa, nadar, andar a cavalo. Foi uma recuperação positiva do choque que
estavam vivendo”.
Contrariando as expectativas dos educadores e da própria
diretora, durante novembro e dezembro os alunos compareceram às aulas com alta
frequência, mesmo que isso significasse atravessar longas distâncias – as quais
não estavam acostumados.
Para o ano de 2016, Eliene esperava que muitos pais
optassem por matricular os filhos em escolas mais próximas de seus hotéis ou de
suas residências provisórias; mas as crianças continuaram a querer estudar na
provisória Bento Rodrigues. Está sendo um período sensível de adaptação. Turmas
de Educação Infantil e Ensino Médio dividem a atenção de poucos professores e
usam a escola durante o período da tarde. “É um desafio de coabitação”,
desabafa Eliene.
Resgate de identidade
Uma escola rural exerce um papel diferente na
comunidade do que uma escola do perímetro urbano, como explica Eliene. “Em toda
comunidade pequena, a escola é uma referência. Quando o aluno está na cidade,
até uma lan house pode ser referência para ele”. Para exemplificar as
diferenças, ela relembra que, na primeira reunião de pais que organizou, a
presença de mães e pais foi tão massiva que a diretora da escola Dom Luciano se
espantou.
É justamente a identidade da escola e seu papel
central no distrito que nenhuma lama tóxica pode soterrar. “Não queremos perder
nossa identidade; os costumes, as tradições e as festas. Temos de manter a
comunidade unida a partir da escola”. Lentamente, eles começaram a restituir
práticas comuns à sua rotina. Retornaram os costumes da fila, de cantar o hino
nacional às sextas-feiras e fazer orações antes das aulas.
A manutenção das práticas rurais também acompanha o
otimismo de que a situação seja passageira, e que no prazo de um ou dois anos
aconteça o reassentamento e a reconstrução do distrito Bento Rodrigues. “Nós
não vamos continuar na cidade. Os alunos precisam entender que estamos morando
nela provisoriamente, mas daqui um ou dois anos nós vamos voltar para nosso
distrito. Então vamos ter nosso cantinho de novo, não podemos deixar se perder
nossa cultura, porque depois para resgatá-la será complicado”, ela prevê.
Segundo nota exclusiva da Agência Pública,
firmou-se um acordo que define como Samarco, a Vale a BHP irão determinar o
auxílio e a reconstrução dos municípios afetados e o resgate ao meio-ambiente,
que continua seriamente comprometido. O acordo foi feito sem a participação de
nenhum dos moradores da cidade, e o destino da reconstrução de Bento Rodrigues,
do Rio Doce e outros distritos de Mariana permanece nas mãos de quem a
enterrou.
Mesmo seguras em sua nova escola, as crianças e os
adolescentes que presenciaram a tragédia de Mariana ainda se alarmam a qualquer
barulho ou perturbação. A diretora Eliene relata que, em uma ocasião, a caixa
da água encheu mais do que devia, provocando um barulho incomum. Crianças e
adolescentes formados correram em desespero, em busca de abrigo.
O psicólogo Márcio Gagliato trabalhou com crianças
em situações de desastre, como as da Faixa de Gaza e as afetadas pelo tsunami
que atingiu o sudeste asiático em 2004. Para ele, é absolutamente fundamental
acabar os com mitos de que as crianças se recuperam mais rápido em situações de
tragédia, ou que têm mais capacidade de adaptação.
“É importante evitar suposições genéricas sobre a
forma como as crianças vão responder a desastres, pois algumas terão grande
tolerância e resistência, enquanto outros vão ser muito mais vulneráveis.
Vários fatores estão em jogo, como o perfil psicológico da criança antes do
evento, a qualidade da presença e vínculo de um adulto cuidador que o auxilie
(ou sua ausência), o significado e consciência do desastre, a exposição direta
ao desastre, perdas dos fatores de proteção (entes, rotina, amigos, bens), e
assim por diante.”
Ele também aponta que, embora sejam experiências
diferentes de Mariana, tanto em Gaza quanto no sudeste asiático, as pessoas
estavam em um estado de medo generalizado, e isso afetava imensamente as
crianças, deixando-as confusas e inseguras. Não evitar falar sobre o assunto é
um primeiro passo para a recuperação. “É comum crianças fazerem perguntas sobre
o ocorrido na proporção do quanto as afetam, e inclusive repetir as perguntas
que as incomodam, mesmo que os cuidadores já tenham tentado respondê-las. Isso
ajuda a expressar e elaborar seus medos e fantasias sobre a tragédia”.
Por fim, Marcio frisa a importância a escola e seu
papel no apoio as crianças, “Eu me lembro de alguns desastres, que, por
exemplo, professores foram os primeiros a receber suporte e capacitação para
poderem lidar com as crianças no retorno as aulas. Nas primeiras semanas de
aula, o foco não era o currículo normal como matemática ou ciências, mas
integração de atividades inspiradas em ajudar as crianças, como jogos,
brincadeiras, informação e atividades de expressão.”
No que concerne ao enfrentamento da crise, ouvir a
comunidade é vital: “Não se deve medir esforços para escutar profundamente as
famílias e comunidades afetadas, e reconhecer seu protagonismo na identificação
e construção dos mecanismos de suporte”.
Rastro de Lama
O documentário Rastro de Lama, projeto
de Aline Lata e Helena Wolfenson, acompanha a história de dois moradores de
Bento Rodrigues e sua luta para recuperar casa e vidas perdidas na onda de lama
tóxica.
O filme é um esforço para que a história do crime
ambiental em Mariana e seus subdistritos não seja esquecida e para que a Vale,
a Samarco e BHP Billinton sejam punidos.
O projeto está em fase de arrecadação
no Catarse e depende de contribuição para ser finalizado.
Fonte: WWF Brasil
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