“Você já
está indo embora? Esse não é o horário de saída das domésticas”.
Nos últimos dias as redes sociais têm polemizado o
caso da professora que foi “confundida” com uma faxineira. Luana Tolentino
caminhava pelas ruas de Belo Horizonte quando foi abordada por uma senhora
branca que perguntou se ela fazia faxina. “Você faz faxina? Não, faço mestrado.
Sou professora” é a frase que viralizou nas redes sociais. Mas o que está por
trás deste episódio? Sim, o racismo.
O que causa incredulidade na senhora envolvida no caso
da docente é o fato de que apesar de a cada dez brasileiros, três serem
mulheres negras, os números no mercado de trabalho não exprimem esta realidade,
sobretudo nos cargos de gestão. Os afrodescendentes ocupam apenas 4,7% dos
cargos executivos, segundo levantamento do Instituto Ethos, no Perfil Social,
Racial e de Gênero das 500 maiores empresas do Brasil e suas ações afirmativas.
Neste Dia Internacional da Mulher Negra Latino
Americana e Caribenha, criado para fortalecer e estimular a reflexão sobre a
condição dessas mulheres, o Instituto Ethos conversou com Liliane Rocha,
fundadora e CEO da Gestão Kairós, associada Ethos, que desenvolve trabalhos
voltados à inclusão e sensibilização para promover a diversidade no ambiente
corporativo.
Liliane
Rocha
Qual o maior desafio enfrentado pela mulher negra
no mercado de trabalho atualmente?
Liliane Rocha: Considerando que as mulheres negras
não são uma massa única e uniforme, sempre acho esta questão complexa. Vamos
lembrar que existem mulheres negras e PcDs, negras e LGBTs, negras e jovens ou
idosas. De toda forma, se formos analisar a questão da mulher negra em geral,
os estudos apontam que caso continuemos no mesmo ritmo de ações afirmativas e
movimentação social, mulheres negras demandarão mais anos por equidade salarial
do que mulheres brancas. Além disso, as mulheres negras estão em maior
percentual entre os desempregados e no final da linha quando olhamos para faixa
salarial por grupos. Detalhando: homens brancos ganham mais, depois mulheres
brancas, homens negros e no final da linha mulheres negras. Precisamos nos
lembrar que no Brasil foram cerca de 380 anos de escravidão, para cerca de 129
anos de histórico de abolição, ou seja, 1/3 do tempo. Por isso, é obvio que a
herança do racismo permanece de forma introjetada na sociedade.
O que precisa ser feito para que o Brasil tenha
mais CEOs negras, como você e a Rachel Maia, da Pandora?
Liliane Rocha: As ações necessárias para mudar essa
realidade são diversas. Precisam ser coordenadas com esforços do primeiro,
segundo e terceiro setor e demanda a participação de toda a sociedade. De toda
forma, para ser pragmática e deixar uma luz no final do túnel, o primeiro passo
é atuar em educação para a diversidade, neste ponto me refiro a ensino formal,
em escolas públicas e particulares desde a infância. E também em governos e
empresas. Focar em captar, reter, desenvolver esta parcela da população, bem
como, atuar na cultura organizacional por meio de Programas de Diversidade que
foquem na quebra de paradigmas e ampliação de conhecimento é fundamental.
As cotas em universidades públicas federais
completam 5 anos, além disso o Prouni também contribuiu com um contingente de
mulheres negras que passaram a ter acesso à graduação. Ainda assim, qual o
argumento utilizado pelo setor corporativo para a desigualdade de gênero e
racial, principalmente em cargos de gestão?
Liliane Rocha: O modus operadis atual é tão
intrínseco que por vezes percebo que o mercado não se dá ao trabalho de
elaborar justificativas, as coisas simplesmente são como são. De toda forma,
quando há alguma tentativa de justificar o injustificável os argumentos são de
que “não há negros (as) capacitados”, “não há negros (as) nesta área de
atuação”, “não há negros (a) oriundos nas faculdades de primeira linha que
queremos nesta organização”. Ou ainda, em uma tentativa desesperada de se
eximir “negros, mulheres negras, não têm interesse em trabalhar neste setor
empresarial, nesta área, etc”. Além daquela falácia de que as mulheres não
querem ascender, pois priorizam equilíbrio de trabalho e vida, como se os
homens não tivessem esta demanda também. São conceitos, pré conceitos, vieses
que precisam ser desfeitos, descontruídos para que possamos construir algo
diferente. Sendo este algo o conceito de valorização da diversidade como valor
humano e de vantagem competitiva. Ressalto que existem algumas empresas que são
referência e têm realizado um trabalho forte e consistente no tema, inclusive
parceiras da Gestão Kairós que admiro muito. Também é preciso atentar para o
diversitywashing – lavagem da diversidade (termo que se refere a maquiar uma
situação). Empresas que se posicionam em comunicação com ênfase, mas ainda
precisam avançar na captação, retenção, desenvolvimento e cultura
organizacional relacionada a públicos diversos, em destaque aqui mulheres
negras.
O olhar pejorativo e associação de mulheres negras
ao subemprego e ao serviço doméstico ainda persistem, sobretudo por parte dos
contratantes?
Liliane Rocha: Está visão é bem pessoal, mas creio
que sim. Certa vez no horário de almoço, com roupa executiva, fui almoçar na
casa de uma amiga que mora em um prédio de luxo. Mesmo estando com vestimenta
social, quando eu estava saindo para ir embora, uma funcionária do prédio me
parou e disse: “Você já está indo embora?”, respondi: “Como assim, se já estou
indo embora?”. Ao que ela contestou: “esse não é o horário de saída das
domésticas”. Enfim, sem demérito nenhum em ser confundida com doméstica, uma
função essencial, digna e até, equivocadamente, muito desvalorizada no Brasil,
questiono por que uma mulher negra em um determinado contexto obrigatoriamente
deve ser vista como doméstica, vendedora…sendo que sabemos que existem diversos
perfis e fenótipos de pessoas nas mais diferentes funções em nossa sociedade?
Nas empresas, acredito que o ritmo é o mesmo. Se o contratante tem em mente a
percepção de que mulheres negras estão sempre ligadas ao trabalho braçal, como
poderá contratá-la como gerente? E como diretora? Cria-se uma barreira
invisível, mas que de tão real, quase se pode tocar.
“Se o contratante tem em mente a percepção de que
mulheres negras estão sempre ligadas ao trabalho braçal, como poderá
contratá-la como gerente? E como diretora? Cria-se uma barreira invisível, mas
que de tão real, quase se pode tocar”.
Qual o principal motivador para a criação da Gestão
Kairós?
Liliane Rocha: Ao longo de 13 anos em grandes
empresas nacionais e multinacionais no Brasil e na América Latina, inclusive na
posição de gestora, tive oportunidade de aprender, encarar desafios, implantar
do zero áreas de Sustentabilidade, Responsabilidade Social e Diversidade.
Participei de reuniões com acionistas, CEOs e líderes nacionais e
internacionais. No entanto, já de dentro das empresas eu percebia que eu havia
construído uma jornada e um legado que poderia ser disseminado em larga escala
com mais empresas, em novos contextos, gerando mais impacto. Por isso, em
janeiro de 2015 abri a Gestão Kairós consultoria de Sustentabilidade e
Diversidade, comecei a dar palestras, aulas em faculdades, escrever livros e
trabalhar de todas as formas possíveis para apoiar empresas, governos e pessoas
a construir novos caminhos e processos mentais que contribua para uma forma de
pensar e atuar mais sustentável e inclusiva. Recentemente lancei o livro “Como
ser um líder inclusivo”, pela editora Scortecci, no qual aprofundo de forma
didática e simples nestes temas.
De acordo com o Perfil Social, Racial e de Gênero
das 500 maiores empresas do Brasil e suas ações afirmativas mais de 55% dos
brasileiros são afrodescendentes, mas apenas 4,7% ocupam cargos executivos.
Como a Gestão Kairós atua junto aos clientes a fim de reverter este cenário?
Liliane Rocha: Parabenizo ao Ethos pela elaboração
do Perfil, utilizo como base há muitos anos e considero este material
excelente. Respondendo à questão, sendo uma profissional com MBA Executivo em
Gestão da Sustentabilidade e mestranda em Gestão de Políticas Públicas, ambas
pela FGV, há uma perspectiva intrínseca de gestão do conhecimento, indicadores,
processos, metas e foco para resultados em todos os trabalhos que realizamos na
Gestão Kairós. Entendo que aprofundar o conhecimento sobre referências do
mercado no Brasil e no mundo, estudos setoriais, legislação, projetos de lei
tramitando, dados e indicadores nacionais e globais de vantagem competitiva,
somados ao mergulho no entendimento da cultura, documentos, projetos, realidade
e indicadores da própria empresa é o melhor caminho para construir a estratégia
da diversidade em uma empresa. A partir destas ações é possível criar um
Programa consistente, customizado a realidade especifica do contexto (neste
sentido não há receita de bolo) para apoiar a empresa a se tornar mais
inclusiva, portanto mais justa e mais competitiva.
Por Rejane Romano, do Instituto Ethos
Fonte: ENVOLVERDE
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