Fracionamento
da produção em escala global mascara danos ambientais, aponta pesquisa.
Estudo está fundamentado em conceitos como
“neoextrativismo” e “comércio ecologicamente desigual”
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A ideia de que as economias desenvolvidas passam por uma fase de “desmaterialização”, concentrando-se em atividades criativas e de serviços que consomem pouco material e são pouco agressivas ao meio ambiente, como pesquisa, design e vendas, é uma espécie de ilusão proporcionada pelo fracionamento da produção industrial em cadeias globais, e mascara o dano ambiental e social produzido nos países onde são extraídas as matérias-primas, diz a pesquisadora Beatriz Macchione Saes. Ela é autora da tese de doutorado “Comércio ecologicamente desigual no século XXI: evidências a partir da inserção brasileira no mercado internacional de minério de ferro”, defendida no Instituto de Economia (IE) da Unicamp.
“Na medida em que as economias avançadas
especializam-se em etapas localizadas nas duas pontas das cadeias de produção,
baseadas em ativos intangíveis (pesquisa, desenho, marketing etc.), o peso
material de suas economias se reduz em relação ao PIB, mas a captura da maior
parcela do valor adicionado das cadeias mantém padrões de consumo elevados,
baseados em estoques materiais ‘ocultos’ em outros países”, diz a introdução da
tese.
A pesquisadora Beatriz Macchione
Saes, autora da tese: “A ausência de visões e modelos de desenvolvimento
alternativos contribuiu para reforçar o caráter estrutural do comércio
ecologicamente desigual Norte-Sul”
No desenvolvimento da tese, Saes se vale de
conceitos como “comércio ecologicamente desigual” e “neoextrativismo”. “A ideia
de comércio desigual tem várias décadas”, disse ela. “Seus propositores, como
Celso Furtado, discutem a deterioração dos termos de troca: pensam nos preços e
na relação dos preços dos produtos industrializados e das matérias-primas, e
como essa relação, ao longo do tempo, tende a produzir preços mais favoráveis
aos produtos industrializados”, num desequilíbrio entre países desenvolvidos e
países periféricos, fornecedores das matérias-primas.
“O comércio ecologicamente desigual parte daí mas
adota outra perspectiva, pensando muito mais a questão ambiental e material,
não monetária”, explica a pesquisadora. “Creio que um dos primeiros autores a
levantar essa ideia foi Stephen Bunker [sociólogo americano, autor do livro
‘Underdeveloping the Amazon’, ou ‘Subdesenvolvendo a Amazônia’, falecido em
2005]. Ele estava estudando a Amazônia brasileira e falando, bom, a gente não
precisa olhar muito os preços, mas apenas olhar de uma perspectiva material e
energética, e é possível ver que os países produtores de matérias-primas
alimentam o metabolismo social global e particularmente dos países
centrais ”.
“Metabolismo social”, diz Saes, é o fluxo
energético e de material das economias, o que consomem para produzir seus bens
finais. “A finalidade dos países produtores de matérias-primas seria alimentar
esse metabolismo social de economias desenvolvidas, e isso levaria a uma
dificuldade de desenvolvimento desses países, agravada pela ausência de um
poder político mais forte, que absorvesse benefícios do comércio internacional.
É nos anos 80 que surge essa discussão do comércio internacional numa
perspectiva de fluxo de materiais, não só de dinheiro”.
A tonelada de minério de ferro que efetivamente
cruza a fronteira rumo aos países desenvolvidos, exemplifica a pesquisadora,
demanda muitos outros recursos do país de origem que são mobilizados para produzi-la,
como água e perda de biodiversidade. “A partir dos anos 90 essa ideia começa a
se consolidar na chamada pegada ecológica, ou pegada material, que é o que mais
discuto no meu trabalho: cada produto final produzido, que existe por causa
desse material que passa a fronteira e deixa uma marca no país original,
requereu uma grande quantidade de material” que acaba não entrando na conta de
quem enxerga a “desmaterialização” das economias desenvolvidas.
Neoextrativismo
Já o termo “neoextrativismo” aparece no contexto de
uma crítica aos governos latino-americanos ditos progressistas, surgidos a
partir do início deste século, que estimularam a produção e exportação de
commodities. “Em termos estruturais da economia, esses governos atuam muito
mais no sentido de estimular setores primários do que outros setores mais
complexos, e nessa medida alguns autores vão falar que se trata de um
neoextrativismo, alguns falam em ‘neoextrativismo progressista’”. A socióloga
argentina Maristella Svampa vai se referir a num “Consenso das Commodities”,
num paralelo ao Consenso de Washington dos anos 1980.
Mas se esse novo “Consenso” permitiu à América
Latina aproveitar o boom das commodities e deu aos governos mais à esquerda a
oportunidade de investir em programas sociais, ele também deixou para trás
grandes passivos ambientais, problemas sociais envolvendo povos indígenas e
populações deslocadas, e representou uma “integração subordinada” nas cadeias
globais de produção.
“Subordinada no sentido de exportar produtos primários e
não buscar avançar em etapas que geram maior valor adicionado nessas cadeias”,
diz Saes.
Em sua tese, a pesquisadora descreve o
desenvolvimento da mineração de ferro no Brasil como um processo
neoextrativista. Diz o texto: “O modelo ‘neoextrativista’ foi evidenciado pelas
disputas em torno da legislação ambiental brasileira, em que prevaleceu o
‘interesse nacional’ como defendido pelo setor minerário, a despeito de outros
interesses e valores concorrentes à mineração. Assim, a ausência de visões e
modelos de desenvolvimento alternativos contribuiu para reforçar o caráter
estrutural do comércio ecologicamente desigual Norte-Sul”.
Fonte: JORNAL
DA UNICAMP
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