Com a
Rota da Seda, a China entra no vácuo aberto por Trump.
por Carlos Drummond, especial para Carta
Capital —
Pequim conecta
66 países em três continentes com o canteiro de obras global. O Brasil de Temer
despreza os investimentos.
O Deutsche Bank, maior banco da Alemanha, anunciou
em maio sua participação, com 3 bilhões de dólares, no financiamento do projeto
chinês das novas Rotas da Seda, de conexão com países da Ásia, África e Europa
por ferrovias e estradas, ao Norte, e por mar, ao Sul.
A decisão, que deverá ser acompanhada de
iniciativas semelhantes de várias instituições financeiras, é uma resposta
positiva ao chamamento do presidente Xi Jinping de unir aquele que é
considerado o maior programa de infraestrutura do mundo ao plano europeu de
investimento, conhecido como Plano Juncker. Além de vias de transporte, serão
construídos portos, aeroportos, barragens, dutos de petróleo e gás, obras para
geração e distribuição de eletricidade e telecomunicações, sistemas de água e
esgoto e habitações.
DPA/FotoArena
Na
reunião de cúpula em Pequim, Xi Jinping, o anfitrião, Vladimir Putin,
presidentes de vários países e um funcionário brasileiro do 3º escalão.
A união dos projetos chinês e europeu de
investimentos significa a ocupação de parte do espaço deixado com o abandono,
pelos Estados Unidos, por iniciativa de Donald Trump, dos tratados Transatlântico e Transpacífico, propostos
pelo ex-presidente Barack Obama para barrar a influência econômica do país
oriental no mundo.
A decisão do Deutsche Bank foi anunciada duas
semanas depois da realização do Belt and Road Forum, em Pequim, sobre as Rotas da Seda, convocado por Xi Jinping e
prestigiado por 29 chefes de Estado, inclusive o presidente Vladimir Putin, da
Rússia. A América Latina foi representada por dois presidentes, Mauricio Macri,
da Argentina, e Michelle Bachelet, do Chile. O Brasil enviou só seu secretário
da Presidência da República.
O pouco caso brasileiro para com o projeto chinês,
considerado a maior oportunidade de investimentos e negócios internacionais das
últimas décadas e de grande significado político e diplomático, ocorre no
quarto ano de economia doméstica estagnada, sem que o governo consiga colocar
em pé nem mesmo seu acanhado programa de infraestrutura.
Lançada em 2013, a iniciativa adota o mesmo nome da
estrada construída entre 206 a.C. e 220 d.C., durante a dinastia Han, e tem
potencial para ser a maior plataforma mundial de colaboração regional, segundo
Kevin Sneader, presidente da consultoria McKinsey na Ásia. Abrange 66 países,
com 65% da população do planeta, cerca de um terço do PIB e um quarto de todo o
transporte de mercadorias e serviços.
Só no ano passado, os projetos e negócios
realizados geraram 494 bilhões de dólares, contabiliza a consultoria PwC.
Números preliminares da McKinsey indicam que os novos empreendimentos
anunciados em 2016 somaram 400 bilhões de dólares, valor 2,1% acima do
previsto, mas eles podem superar em mais de 10% as projeções, prevê a
consultoria.
Banco de
Investimento em Infraestrutura, criado pela China, é um dos financiadores das
obras (Foto: Li Xin/Xinhua via Zuma/FotoArena)
A PwC estima que a China gastou o equivalente a 3
trilhões de dólares em infraestrutura no ano passado, valor 10% acima de 2015 e
40% superior à média dos últimos cinco anos. Os investimentos fazem parte da
estratégia definida por Pequim para enfrentar tanto as dificuldades econômicas
internas quanto a Grande Recessão mundial e tem força suficiente para conduzir
a uma nova etapa da globalização, avaliam vários economistas.Marcos Antonio
Macedo Cintra, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e Eduardo
Costa Pinto, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, explicam a estratégia
no artigo “China em Transformação: Transição e Estratégias de Desenvolvimento”.
Apesar da desaceleração, dizem, a economia chinesa permanece uma das mais
dinâmicas do mundo e continua a criar entre 12 milhões e 13 milhões de postos
de trabalho urbanos ao ano.
Com o aumento da taxa de investimento, de 40% do
PIB para 47%, entretanto, o crescimento ficou desequilibrado, pois gera
capacidade ociosa em inúmeros setores produtivos e passa a depender da
construção de obras gigantescas, da expansão do mercado imobiliário, do
endividamento das províncias e dos governos locais, bem como da elevada
alavancagem de alguns segmentos dos setores bancário e não bancário.
Busca-se, assim, um novo regime de crescimento
sustentável, ancorado em um dinamismo menos intensivo em capital e em energia,
e ainda um novo contrato social (um Estado de Bem-Estar Social com
características chinesas) para a redução das desigualdades sociais e regionais
e a implementação de maior cobertura no sistema de saúde pública e de
previdência, sublinham os economistas.
A provisão de bens públicos universais, o
desenvolvimento de uma urbanização e uma industrialização com menor impacto
sobre o meio ambiente, a ampliação da renda e do consumo da população são os
pilares do planejamento estratégico que visa reformar o regime de crescimento
nos próximos anos.
“Esse caminho de desenvolvimento, ainda em
construção, pressupõe um processo de aprendizado contínuo com avanços e recuos.
Articula uma estratégia nacional, inserida regional e globalmente, que visa
tornar a China um país moderno, rico e poderoso. As políticas macroeconômica,
industrial, de ciência e tecnologia, externa e de segurança são direcionadas
pelo Estado para a construção de uma estabilidade política, a melhora das
condições de vida do povo chinês e a reconquista de uma posição internacional
autônoma.”
Os megaprojetos internacionais de infraestrutura
são, conforme destacado acima, um dos eixos da transição interna e, ao mesmo
tempo, da redefinição das relações com o restante do mundo, por desencadearem
um processo de reconfiguração da ordem global. Não se trata, entretanto, de uma
opção tirada da cartola, como provavelmente imaginam aqueles analistas
incansáveis na elaboração reiterada de previsões furadas de derrocada do país
asiático por insubmissão ao livre-mercado.
“A construção de infraestrutura para fomentar o
comércio e a estabilidade social foi uma pedra fundamental da própria
prosperidade de longo prazo da China durante mais de 2 mil anos. A política
recentemente enunciada baseia-se na história de antigas redes de comércio e
transmissão de cultura entre esse país, a Ásia Central e o Sudeste Asiático. A Europa está
no longínquo terminal Oeste dessas redes”, explica o economista Peter Nolan,
professor da Universidade de Cambrige e consultor do governo chinês, no
livro Understanding China: The Silk Road and the Communist Manifesto.
O trem
Golden Eagle percorre trecho recém-construído da nova Estrada da Seda, entre a
Ásia e a Europa.
O governo não abre mão da estratégia
político-econômica nem da sua permanente revisão e reformulação, em sintonia
com a dinâmica da realidade. A planificação estratégica visa à harmonia, ou
seja, o equilíbrio de forças, destacam Cintra e Pinto. Nesse sentido, os
interesses privados ou capitalistas não devem ser poderosos o suficiente para
ameaçar a supremacia incontestável do Estado, que mantém amplo conjunto de
empresas e bancos públicos e regula rigorosamente diversas esferas econômicas e
as relações com o exterior.“Os mecanismos de mercado – a taxa de juros, a taxa
de câmbio, a tributação, os preços – são considerados um instrumento e não um
fim em si mesmos e a abertura assume a condição de eficácia que conduz a uma
diretriz operacional, qual seja, alcançar e ultrapassar os concorrentes
estrangeiros”, esclarecem os autores do artigo.
As adequações da estratégia ocorrem por meio de
reformas, que consistem em mudanças feitas de modo integrado, como detalham os
economistas Michel Aglietta e Guo Bai, no livro China’s Development: Capitalism
and Empire: “A reforma é a transformação conjunta de estruturas e instituições
econômicas. É pluralista e alimenta-se das contradições que gera, em um
processo interminável. Não tem qualquer referência em relação a qualquer modelo
ideal.
O seu significado não é teleológico; é imanente à
prática histórica. Graças à continuidade da liderança política, a reforma pode
ser gradual, informada por uma visão de longo prazo e testada no experimento
pragmático. O planejamento estratégico visa à harmonia, que é o equilíbrio de
forças que contribui para reforçar a soberania do Estado. Consequentemente, interesses
capitalistas nunca serão tão poderosos a ponto de ameaçar a supremacia
primordial do Estado. É por isso que o Estado mantém um grande domínio de
propriedade soberana e regula firmemente as finanças”.
O avanço chinês foi muito além das elucubrações
ocidentais. Transcorrido um quarto de século desde as reformas iniciadas entre
1989 e 1990, chama atenção Nolan, o cenário parece muito diferente daquele
amplamente previsto e desejado no Ocidente. “O colapso do ‘Império do Mal’ na
União Soviética não foi seguido pelo colapso do regime do Partido Comunista na
China.
A ‘mudança de regime’, que muitas pessoas ainda
esperam e trabalham para acontecer, não ocorreu. O PCC tem 87 milhões de
integrantes e em 2021 celebrará o centenário da sua fundação. Sob seu comando o
país experimenta a era mais notável de crescimento e desenvolvimento da
história moderna. Sob o guarda-chuva protetor da estabilidade política e
social, conquistou três décadas de crescimento em alta velocidade.”
Com o controle absoluto sobre o sistema político,
o Partido Comunista Chinêsrestaurou a legitimidade
anteriormente personificada no imperador, acrescentam Cintra e Pinto. Ele
prolongou e radicalizou uma tradição milenar ao criar uma espécie de “dinastia
mandarim”, que segue governando a China segundo os mesmos preceitos morais
confucianos do período imperial. (Carta Capital/Envolverde)
Fonte: ENVOLVERDE
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