segunda-feira, 31 de julho de 2017

Advogada indígena reforça: Sim, os direitos indígenas existem!
Autor Sucena Shkrada Resk - 28/07/2017
Por Sucena Shkrada Resk/ICV
A #SérieUniversoIndígenaMT do Instituto Centro de Vida (ICV) tem como terceira entrevistada a advogada Joênia Wapichana (Joênia Batista de Carvalho), primeira mulher indígena a se formar em Direito no Brasil, que atua como coordenadora do departamento jurídico do Conselho Indígena de Roraima (CIR).

Sua fala resgata a importância do valor dos instrumentos legais e jurídicos indígenas nacionais e internacionais, frente a pressões políticas e legislativas cada vez mais acentuadas no Brasil. Neste hall, está a recente aprovação do presidente Michel Temer ao parecer favorável à tese do marco temporal da Advocacia-Geral da União (AGU), que pode travar a demarcação de terras indígenas no Brasil. São cerca de 750 processos atualmente em tramitação. Como também, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/2000, que tramita no Congresso Nacional.

ICV: No contexto da legislação nacional, quais são os principais direitos indígenas? E quais são os mais violados, em especial, na Amazônia?

Joênia Wapichana: Temos um guarda-chuva de direitos, que é nossa própria Constituição federal de 1988. É uma garantia super inovadora que passou a conceder e garantir que fossem implementados, por meio dos artigos 231 e 232 principalmente. Primeiro reconhece o direito à diversidade cultural. 

Isso significa reconhecer a diferença cultural que permite um tratamento diferenciado para a implementação. Havia um conceito de que os indígenas seriam incapazes de seguir sua própria vida. 

Depois, o outro direito é a garantia à própria terra e aos territórios. A Constituição assegura o direito originário como garantia à demarcação, considerando os aspectos espiritual, ambiental e as necessidades econômicas. Estes pontos rebatem o marco temporal que a gente ouve, e advogados do agronegócio têm usado esta tese para desrespeitar o direito territorial. Já o artigo 232 da Constituição, dá legitimidade processual, garantindo a intervenção do Ministério Público para defender os direitos indígenas.

Joênia Wapichana, na Rio+20, em 2012

ICV: Qual é a pressão exercida pela Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215?

Joênia Wapichana: O Estado determina que o poder executivo, no caso, a União cumpra a demarcação das terras indígenas, mas também proteja os seus bens. Isso quer dizer implementar programas, políticas que sejam fundamentais para conservação dos territórios, dos bens naturais e das culturas. A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215 quer mudar isso, o que não pode ocorrer, pois são cláusulas pétreas, fundamentais à sobrevivência dos povos indígenas. Toda população vai ser afetada e é preciso ter união das organizações indígenas para a defesa dos seus direitos.

ICV: E o papel do Congresso Nacional atualmente com relação aos direitos indígenas?

Joênia Wapichana: Muitos projetos tentam abrir as terras indígenas para arrendamentos, mineração e hidrelétricas. O Congresso Nacional (parte) está priorizando o agronegócios, que beneficia meia dúzia de pessoas, sendo que muitas envolvidas em corrupções. Os mais vulneráveis hoje são os povos indígenas, que não têm representantes no Congresso. Muitas vezes são recebidos com gás, spray de pimenta e não conseguem se manifestar. Quando têm um espaço a ser considerado, é o mínimo. É uma pena, pois temos tudo para melhorar a política no Brasil.
Joênia Wapichana esteve na Conferência do Clima da ONU – COP 18, em Doha, Catar, no ano de 2012

ICV: No campo internacional, qual é a importância da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)?

Outra legislação que traz conceitos e direitos importantes é a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Estado brasileiro. Foi aprovada quase na mesma época de nossa Constituição e trouxe avanços. Garante o direito à consulta prévia, livre e informada, fala que o próprio Estado brasileiro tem a obrigação de realizar a consulta em todas as medidas legislativas e administrativas. Este é um peso muito grande, porque o Estado brasileiro não tem o costume de ouvir e realizar este tipo de consulta. É justamente para tentar ter um procedimento adequado.

O Estado precisa abrir um diálogo, que tem de ser considerado de boa fé e que tenha a intenção não somente de ouvir, mas de aceitar esses critérios para que haja a realização de políticas efetivas. Os povos indígenas têm o direito de ser consultados quanto à forma que pensam em todas as fases de sua realidade geográfica e étnica. A fim de que ocorra o diálogo, é preciso adaptar as informações à sua linguagem, para que possam entender, ouvir e dar sua opinião, inclusive, para ter o direito de dizer não, na minha avaliação. A Convenção fala da autonomia e da autodeterminação, para que os povos indígenas possam decidir sobre o que vai acontecer em sua própria ‘casa’.

ICV: Há outro instrumento internacional significativo quanto aos direitos indígenas?

Joênia Wapichana: Outro grande direito é a própria Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas da Organização das Nações Unidas (ONU), que foi aprovada em 2007. É uma carta de intenções, mas tem um peso muito grande porque dá um direcionamento para que os países realizem suas políticas públicas com princípios à proteção cultural indígena principalmente.

ICV: Pequenos a grandes projetos de empreendimentos hidrelétricos estão sendo instalados nas proximidades de terras indígenas, como ocorre, sub-bacia do Teles Pires, no MT e Pará, na Amazônia e estão planejados também para a sub-bacia do Juruena, na Bacia do Tapajós. Quais são os principais direitos indígenas que devem ser respeitados, desde a concepção dessas usinas (ou hidrovias, entre outros empreendimentos…) até o Programa Básico Ambiental Indígena (PBAI)? 

Joênia Wapichana: Na implementação de qualquer empreendimento que afete povos indígenas, devem ser reconhecidos todos os direitos citados acima. As empresas devem manter salvaguardas, criar procedimentos vinculantes no processo de consulta adequada e pensar na legislação indigenista e ambiental, que considerem todos os impactos e promovendo ações de adaptação e mitigação. Precisam respeitar os direitos territoriais e principalmente o direito de os indígenas dizerem ‘não’. 

Deve haver consciência de que empreendimentos próximos a terras indígenas, podem trazer impactos. Por isso, nos projetos e planos, têm de ser levados a sério laudos e perícias, estudos de impacto ambiental, também considerando os aspectos culturais, sociais e territoriais.
ICV: Como exemplo, citamos casos de comunidades indígenas, na sub-bacia do Teles Pires, entre Mato Grosso e Pará, que reivindicam escuta, informações precisas e participação ativa desde a fase de proposta dos projetos, que segundo eles, afetam a memória imaterial até a segurança alimentar, após a implementação. Como podem defender esses direitos e encontrar respaldo nas leis?

Joênia Wapichana: Os mecanismos de defesa de direitos que temos no Brasil são ações jurídicas e civis públicas que podem ser verificadas com o Ministério Público, mas as próprias organizações indígenas e aliados podem agir juridicamente, como politicamente ao fazerem campanhas e divulgarem impactos. Também há acessos internacionais, aos quais podem ser apresentadas denúncias, como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA), o Comitê para Eliminação da Discriminação Racial, da ONU, baseado em convenção internacional . Discutem a violação principalmente quanto ao direito de consulta. Há também as ouvidorias, para fazer uma cobrança pública de direitos.

ICV: Como analisa a crise política atual no país, em especial, na gestão da Fundação Nacional do Índio (Funai)?

Joênia Wapichana: A atual situação política do país é de pressão à Fundação Nacional do Índio (Funai). Considero que este quadro é de retrocesso nos direitos, para impedir demarcações de terra indígenas no país. Hoje é o único órgão indigenista federal e que está completamente sucateado, sobrevivendo com 36% de seu quadro de servidores e orçamento minúsculo para fazer monitoramento e fiscalizações em quase 13% do Brasil. É uma injustiça e crueldade. Existe uma falta de consideração aos povos indígenas ao não incluir a Funai como órgão essencial ao país.

ICV: A tese do marco temporal foi uma condicionante específica exposta pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no processo de demarcação da Terra Indígena Raposa – Terra do Sol, em Roraima, no ano de 2009, mas não passou ainda por decisão do plenário. O presidente Michel Temer recentemente assinou o parecer favorável à interpretação de se estendê-la a todo país, tese defendida pela Advocacia-Geral da União. Sendo assim, só poderá haver demarcação de TIs, pela administração pública federal, em áreas ocupadas por indígenas até a Constituição, de 5 outubro de 1988. Qual a sua avaliação sobre esta questão?

Joênia Wapichana: O parecer da AGU é absurdo. Cada caso é um caso. Quer criar jurisprudência, porque assim poderá paralisar todos os procedimentos de demarcação de terra indígena no país. Os processos têm de ser efetivados, temos a Constituição e o Decreto nº 1775/96 ainda em vigor. Os direitos constitucionais asseguram os direitos originários dos povos indígenas sobre as terras tradicionais justamente por segurança de serem imprescritíveis, inalienáveis e indisponíveis. Isto está nos artigos 231 e 232, com cláusulas pétreas fundamentais para a vida dos povos indígenas. 

Relacionado a isso, o Supremo Tribunal Federal nos embargos declaratórios decidiu da seguinte forma sobre o embargo da petição 3388, que é justamente a que o parecer da AGU utiliza para tentar efetivar uma interpretação governamental: que não vincula juízes e tribunais a exames de outros processos em terras indígenas diversas. Também expõe que a ação relacionada somente à TI Raposa Serra do Sol.

Nessa linha, o STF deixou bem claro que não é vinculante para outras demarcações. Só tem força intelectual e persuasiva. Mesmo assim para a Raposa Serra do Sol, esta decisão é injusta. Nós (do movimento indígena) tentamos que não fosse contemplada esta condicionante, pois seria totalmente violado este direito. Agora os povos indígenas estão muito preocupados de se colocar esta condicionante como regra geral. Existe um clima de intranquilidade, com esta postura do presidente. Estas proposições que restringem direitos e paralisa a demarcação de Tis, também estão na PEC 215, é bom lembrar. Nestas condições, o presidente parece querer angariar apoio de bancadas anti- indígenas, no Congresso Nacional, para que ele não responda processo no Supremo (condição política em que se encontra hoje).



Fonte: ICV

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