Precisamos
de desenvolvimento?
Guilherme Carvalho¹ –
A história não se repete, nem como farsa. Contudo,
alguns dilemas parecem permanentes. A questão de como garantir o
desenvolvimento econômico constante e ascendente é um deles, especialmente para
os blocos de poder que se sucedem à frente do Estado brasileiro.
Na década de 1910, a economia da borracha na
Amazônia vivenciou profunda crise por conta do plantio em larga escala
promovido pelos ingleses na Ásia. O comércio e a incipiente indústria locais
entraram em colapso. A borracha amazônica se tornou secundária e isto
repercutiu pesadamente sobre as contas nacionais. Ao longo daquela década se
instaurou um interessante debate sobre o futuro da economia e as alternativas
para o desenvolvimento econômico da região. As elites se dividiam quanto ao que
se deveria promover. Alguns defendiam que a crise era temporária e que o preço
do produto voltaria a subir. Outros apostavam na pecuária, no café, na
agricultura familiar, na mineração e por aí vai. Todavia, o governo paraense
pouco podia fazer para reverter tal situação, sequer conseguia mobilizar forças
policiais para combater os índios urubu que, a partir do Maranhão, avançavam
sobre o território paraense, esta uma grande reivindicação das elites políticas
àquela época. O desenvolvimento parecia ameaçado.
Passaram-se os anos e, apesar de seu pouco peso
político nas estruturas de poder que realmente decidem o presente e o futuro
desta região, a Amazônia continua a ser relevante para a balança comercial e a
entrada de dólares, bem como para efetivar a tão sonhada integração econômica
da América do Sul; em que pese manter-se entre os piores Indicadores de
Desenvolvimento Humano (IDH) do país, ser palco de conflitos territoriais, que
levam anualmente ao assassinato de indígenas, camponeses, agentes pastorais e
outros ativistas sociais, e da expropriação
em larga escala estimulada pelo Estado brasileiro em favor de
transnacionais – aí incluídos bancos, empreiteiras, agronegócio etc –
e de segmentos empresariais brasileiros associados a elas.
A história não se repete, nem como farsa. Contudo,
alguns dilemas parecem permanentes. A questão de como garantir o
desenvolvimento econômico constante e ascendente é um deles, especialmente para
os blocos de poder que se sucedem à frente do Estado brasileiro. Todavia,
parcela expressiva da esquerda e dos governos considerados progressistas também
comunga de uma visão crescimentista da economia, fundada na exploração
intensiva da natureza, tal como no Brasil de Lula e Dilma, na Venezuela de
Chávez e Maduro, na Bolívia de Evo Morales ou no Equador de Correa.
Segundo o nosso grande mestre Celso Furtado,
“progresso” e “desenvolvimento” se constituíram em poderosos instrumentos de
justificação política e ideológica de todas as atrocidades cometidas pelos
europeus quando da sua chegada na América². Ainda hoje ambos os termos são
fartamente empregados pelas forças conservadoras para combater qualquer
iniciativa que se oponha ao modelo hegemônico, assim como é parte constitutiva
do discurso dominante em defesa do desmonte da legislação ambiental, da
instalação de complexos
logísticos de infraestrutura para incrementar a exportação de commodities,
da redução do tamanho de áreas de preservação e do erguimento de obstáculos
para a demarcação de novas áreas indígenas ou quilombolas (Brasil); da extração
do petróleo existente em terras indígenas (Equador); da expansão do monocultivo
de soja (Bolívia); da cessão de vastos territórios para as indústrias
petroleira e madeireira (Peru); da construção de hidrelétricas e expansão de redes
de distribuição de energia (Venezuela) etc. Nesse contexto, ser tachado de
opor-se ao “progresso” e ao “desenvolvimento” é carregar uma pecha difícil de
ser arrancada, é sofrer tentativas de desmoralização pública, é ser
compulsoriamente colocado em confronto com desejos cotidianamente estimulados
na sociedade: consumo, crescimento econômico, riqueza, controle sobre a
natureza…
(Foto:
José Cruz/ ABr)
O fato é que “desenvolvimento” se tornou,
particularmente após a Segunda Guerra Mundial, uma poderosa ferramenta
político-ideológica habilmente utilizada pelo imperialismo dos Estados Unidos
para fazer valer seus interesses ao redor do mundo. Desde então o discurso do
desenvolvimento vem sendo empregado de forma a evidenciar diferenças (reais e
supostas) entre os países e no interior destes: avançados versus atrasados,
desenvolvidos versus subdesenvolvidos, modernos versusarcaicos
ou tradicionais, entre outras. Contudo, a própria guerra mostrou que não
caminhamos necessariamente a um futuro promissor já que adquirimos até mesmo a
capacidade de nos exterminar enquanto espécie, agora aprofundada por conta
dos desequilíbrios
climáticos promovidos pela ação humana.
Diferentemente do que foi apregoado por W. W.
Rostow³, não há etapas a serem cumpridas que levarão a todos rumo ao
desenvolvimento e à felicidade, basicamente por dois motivos: o planeta não
suportará os níveis exorbitantes de consumo, de produção de dejetos e de degradação
ambiental; e as condições históricas que permitiram Estados Unidos, França,
Alemanha e as demais nações do G-7 chegarem onde chegaram não serão
generalizadas aos demais, pois como bem disse Ha-Joon Chang a “escada foi
chutada” [4]. Um ou outro país, como no caso da China, poderá aproximar-se, mas
isto jamais abarcará o restante. A tendência é que apenas uma pequena fração
das populações dos demais acumule riqueza suficiente para usufruir dos altos
padrões europeu ou estadunidense, evidenciando as profundas desigualdades neles
existentes.
E como pano de fundo disso tudo está o fato de nos
encontrarmos em um momento denominado pelo historiador camaronês Achille Mbembe
como o “fim da era do humanismo” [5]. Uma era em que, segundo podemos apreender
de suas reflexões, a ameaça que se coloca para a humanidade é o confronto entre
democracia e o capital cada vez mais financeirizado:
[…] Em qualquer caso, é um sintoma de
mudanças estruturais, mudanças que se farão cada vez mais evidentes à medida
que o novo século se desenrolar. O mundo como o conhecemos desde o final da
Segunda Guerra Mundial, com os longos anos da descolonização, a Guerra Fria e a
derrota do comunismo, esse mundo acabou.
Outro longo e mortal jogo começou. O
principal choque da primeira metade do século XXI não será entre religiões ou
civilizações. Será entre a democracia liberal e o capitalismo neoliberal, entre
o governo das finanças e o governo do povo, entre o humanismo e o niilismo.
O capitalismo e a democracia liberal
triunfaram sobre o fascismo em 1945 e sobre o comunismo no começo dos anos 1990
com a queda da União Soviética. Com a dissolução da União Soviética e o advento
da globalização, seus destinos foram desenredados. A crescente bifurcação entre
a democracia e o capital é a nova ameaça para a civilização.
Apoiado pelo poder tecnológico e militar, o capital
financeiro conseguiu sua hegemonia sobre o mundo mediante a anexação do núcleo
dos desejos humanos e, no processo, transformando-se ele mesmo na primeira
teologia secular global. Combinando os atributos de uma tecnologia e uma
religião, ela se baseava em dogmas inquestionáveis que as formas modernas de
capitalismo compartilharam relutantemente com a democracia desde o período do
pós-guerra – a liberdade individual, a competição no mercado e a regra da
mercadoria e da propriedade, o culto à ciência, à tecnologia e à razão.
É possível identificar “pontos de contato” entre o
pensamento de Mbembe com as formulações de Dardot e Laval. Para estes o
“neoliberalismo não é apenas uma ideologia, um tipo de política econômica. É um
sistema normativo que ampliou sua influência ao mundo inteiro, estendendo a
lógica do capital a todas as relações sociais e a todas as esferas da vida”
[6]. Ao falarmos de neoliberalismo, normalmente ressaltamos as privatizações,
as propostas de redução do tamanho do Estado ou a focalização das políticas
governamentais. Contudo, talvez mais importante do que isso tudo é
compreendermos que a característica fundamental do neoliberalismo é que ele se
mostrou capaz de moldar nossas subjetividades – ou como afirma Mbembe, de
anexar o núcleo dos nossos desejos, nos fazer parte do jogo a fim de garantir a
reprodução do sistema, mesmo quando nos dispomos a destruí-lo [7]. O que está
em jogo com o neoliberalismo é “nada mais nada menos que a forma de nossa
existência, isto é, a forma como somos levados a nos comportar, a nos
relacionar com os outros e com nós mesmos. O neoliberalismo define certa norma
de vida nas sociedades ocidentais e, para além dela, em todas as sociedades que
as seguem no caminho da ‘modernidade’”[8]. Por outro lado, o neoliberalismo
busca livrar-se de todas as amarras, daí que a democracia e qualquer forma de
controle social são encaradas como um estorvo, algo a ser superado. É o governo
das corporações que se materializa de diferentes formas, seja como a troika na
Europa ou através da completa rendição do Congresso Nacional aos ditames dos
grandes grupos privados – Globo, Odebrecht, JBS, Vale, agronegócio etc –
aliançados ao Judiciário e a outros segmentos promotores do golpe.
As reformas da previdência e trabalhista, a
aprovação do Código Florestal, a revisão das áreas de preservação e a completa
destruição dos direitos garantidos na Constituição de 1988, entre outros,
evidenciam a crescente perda de qualquer noção de solidariedade e da
conformação de um processo em larga escala de eliminação seletiva, e nos
colocam diante da questão se de fato a era do humanismo terminou. E nesse
contexto o Estado se constituiu num instrumento chave para a afirmação
neoliberal. Portanto, acreditar que a eleição de Lula em 2018 ou diretamente
ainda em 2017 será capaz de reverter esse quadro sem romper decididamente com
esta estrutura estatal é bem mais do que simples ingenuidade. Todavia, é
preciso buscar romper também com o sistema normativo que nos foi imposto, que
nos relega aos estreitos limites do debate sobre desenvolvimento e crescimento
econômico. Daí afirmarmos que estes não nos servem como parâmetros de análise
das novas dinâmicas surgidas com a globalização e nem como estratégias
políticas em vista da superação do capitalismo.
(Foto:
Hebert Rondon/ Ibama)
Uma questão chama atenção no Brasil quando
observamos as diversas iniciativas de resistência ao avassalador processo de
expropriação territorial em andamento: os povos originários, camponeses,
quilombolas, ribeirinhos, as comunidades de fundo de pasto e pesqueiras e
outros mais não restringem suas críticas ao modelo hegemônico de
desenvolvimento. Suas lutas, suas pautas, suas formulações e seus próprios
modos de vida expressam uma contundente crítica civilizatória. Esta é, a meu
ver, uma das diferenças qualitativas em relação a boa parte do movimento
sindical operário, por exemplo; este majoritariamente preso às armadilhas do
debate sobre desenvolvimento e/ou crescimento econômico. É bem verdade que
mesmo nos segmentos citados anteriormente há diferenças nada desprezíveis, como
no caso das contendas sobre a Redução
das Emissões por Desmatamento e Degradação (REDD) ou o mercado de carbono,
mas mesmo isto não desqualifica suas críticas ao sistema-mundo capitalista,
moderno, colonial, antropocêntrico, machista e racista, na feliz expressão do
professor Carlos Walter Porto-Gonçalves.
É preciso olhar detidamente para esses segmentos.
Eles têm muito a nos dizer. As manifestações de junho de 2013 foram
importantes? Claro que sim! Mas porque a maioria das análises sobre a retomada
das mobilizações sociais no país negligencia o fato de que em abril daquele
mesmo ano os povos indígenas se puseram em confronto decisivo pelos seus
direitos com os poderes constituídos?
Os confrontos abertos ocorridos naquele
período foram tão incisivos quanto os de junho. Qual o motivo desse não
reconhecimento? A renitente
resistência dos Munduruku da bacia do Tapajós forçou o governo federal
e abandonar a ideia – ao menos até o momento – da construção de hidrelétricas
em seus territórios. Eles conseguem aliar ação em rede, conformando um sistema
de apoio e solidariedade desde o plano local até o internacional, com a
aplicação de variadas estratégias de ação, lutando no marco da
institucionalidade, como a exigência de que sejam consultados com base nos
dispositivos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT),
mas não se rendendo exclusivamente a ela. Exemplo disso foram as iniciativas
para realizarem a autodemarcação de suas terras ou quando da expulsão de seus
territórios de pesquisadores envolvidos com o levantamento de informações para
os Estudos de Impacto Ambiental (EIA).
(Foto:
Welington Pedro de Oliveira)
Os modos de vida desses segmentos e o controle que
exercem sobre muitos territórios os fizeram ser considerados inimigos a serem
batidos pelo bloco de poder a frente do aparelho do Estado brasileiro.
A nova
etapa de acumulação ampliada do capital, baseada na financeirização e no controle
sobre as próprias bases da reprodução da vida, seja através do patenteamento do
conhecimento ou do mercado de carbono, os tornam atores sociais relevantes nas
lutas por mudanças estruturais na sociedade. Daí que os debates sobre
desindustrialização ou reprimarização da economia tendem a agregar muito pouco
quando vinculadas à questão do desenvolvimento e do crescimento econômico. E,
pior, quando desconsideram atores sociais que na atualidade executam a crítica
mais contundente ao nosso modelo civilizatório.
[1] Artigo de Guilherme Carvalho, coordenador do
programa da FASE na Amazônia e doutor em Planejamento do Desenvolvimento
Socioambiental pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal
do Pará (NAEA/UFPA), originalmente
publicado no Le Monde Diplomatique Brasil.
[2] FURTADO, Celso. Introdução ao desenvolvimento:
enfoque histórico-estrutural. 3.ed. São Paulo: Paz e Terra. 2000.
[3] ROSTOW, W. W. As etapas do desenvolvimento
econômico. Zahar, 1974.
[4] CHANG, Ha-Joon. Chutando a escada:
desenvolvimento em perspectiva histórica. Editora Unesp, 2004.
[5] MBEMBE, Achille. “A
era do humanismo está terminando”.
[6] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão
do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Trad. Mariana Echalar. 1.ed. São
Paulo: Boitempo, 2016, p.7.
[7] Dificilmente algum de nós coloca os filhos para
estudar inglês pensando nas leituras de Shakespeare.
[8] Ibidem. p.16.
Fonte: ENVOLVERDE
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