Unesco
estuda candidatura do Cais do Valongo, no Rio, a patrimônio mundial.
Isabel Vieira, Agência Brasil
Por ser o único ponto de desembarque do tráfico
negreiro que restou preservado, o Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, já
declarado patrimônio carioca e nacional, deve se tornar patrimônio mundial da
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
Quadro de Rugendas sobre o desembarque de escravos
negros no Cais do Valongo, Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro – Por ser o único ponto de
desembarque do tráfico negreiro que restou preservado, o Cais do Valongo, no
Rio de Janeiro, já declarado patrimônio carioca e nacional, deve se tornar
patrimônio mundial da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência
e a Cultura (Unesco).
Em setembro, uma comissão do órgão vistoriou o
antigo atracadouro e a expectativa é de que em maio o Brasil saiba se são
suficientes as condições apresentadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (Iphan) em um dossiê de 400 páginas. A decisão final será
anunciada em junho de 2017.
A vista para um longo vale entre os morros da
Conceição e do Livramento era o que aguardava os sobreviventes que
desembarcavam no Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, depois de uma viagem
degradante entre a África e o Brasil, entre 1774 e 1843.
Dos 4 milhões de pessoas escravizadas do outro lado
do Atlântico e que chegaram para o trabalho forçado na época da colônia, nas
fazendas ou na contabilidade dos negócios, 1 milhão passaram pelo Valongo – o
que torna o porto a principal porta de entrada de homens e mulheres
escravizados nas Américas.
O Cais do Valongo foi desativado por leis que
proibiam o tráfico transatlântico no século 19 e foi aterrado para receber a
imperatriz Teresa Cristina, em 1843. Recentemente, durante obras de revitalização
da região portuária, ele acabou redescoberto, com a ajuda de especialistas.
Cais do Valongo em seu atual estado de conservação.
“A sociedade sempre se manteve atenta, os moradores
da região sempre guardaram, na sua saga da oralidade, a força desse espaço; a
academia, quando a escavação [das obras de revitalização] começou,
imediatamente disse: ‘Atenção, o Cais do Valongo está aí’, quer dizer, a
cidade, por meio de seus habitantes, nunca esqueceu o que se passou nesse
pedaço de terra”, explicou o antropólogo e coordenador da candidatura do cais a
patrimônio, Milton Guran.
No local, foram encontrados milhares de vestígios
da passagem de africanos de várias partes. Entre os objetos, búzios do
indo-pacífico, utilizados à época como moedas, além de colares, cachimbos,
brincos e braceletes. São mil caixas, com 1,5 milhão de peças, guardadas em um
galpão e que só devem ser expostas ao público em 2018. A prefeitura fechou
contrato com um laboratório de arqueologia e um termo com o Ministério Público
Federal para cuidar do material.
O ex-secretário executivo de Políticas de Promoção
da Igualdade Racial e morador do bairro Giovanni Harvey, que acompanha desde o
início a criação do sítio histórico do Cais do Valongo, afirmou que o local é
parte de um “quebra-cabeça’ da diáspora africana.
“Há uma visão romantizada que acha que a chegada ao
Cais do Valongo era a chegada do pai, da mãe e dos filhos, mas não é isso. É a
chegada de uma pessoa que foi apartada de sua vida, de sua família, de tudo. Há
três, quatro séculos, um ser humano era colocado em um barco sem ter nenhuma
noção de para onde estava indo”, disse. “O cais é uma referência material, dá
concretude a essa chegada de africanos escravizados”, acrescentou Harvey, que
já esteve na Casa dos Escravos, em Goré, no Senegal, na Costa Oeste da África,
onde os escravizados eram embarcados.
Na avaliação do ex-secretário, que já foi consultor
das Nações Unidas, o reconhecimento do Valongo permite refletir sobre o passado
e pensar o futuro, assim como o Museu Nacional da História e Cultura
Afro-Americana, inaugurado em setembro nos Estados Unidos.
Milton Guran também aposta no tombamento do cais
por ser um marco da violência da escravidão e único. “Este é o único porto de
desembarque que se preservou materialmente no mundo, não tem outro”, afirmou.
Ele lembrou que já foram tombados pela Unesco os portos de embarque de Goré, no
Senegal, o Castelo El Mina, em Gana, e da Ilha de Moçambique.
O antropólogo, que estudou o retorno de pessoas
escravizadas ao Benin, também defende a criação de um “memorial de celebração
da herança africana” sobre a contribuição de africanos e de seus descendentes
ao Brasil. “No dossiê da candidatura explicamos que todo o bairro do cais tem
uma unidade e importância histórica”, citando, como exemplo, em frente ao
Valongo, o prédio das Docas Dom Pedro II, projetado pelo engenheiro negro André
Rebouças.
Pequena África
Jean Baptiste Debret – Escravo sendo castigado.
A região do Cais do Valongo, centro do comércio
escravagista, também guarda vestígios de casas nas quais pessoas negras
recém-chegadas da África eram vendidas como objetos, como mostram as imagens
dos artistas Jean Baptiste Debret, Johann Moritz Rugendas e Maria Grahan. Bem
perto, está aberto à visitação o Cemitério dos Pretos Novos, onde eram
depositados corpos de jovens e crianças, principalmente, que não sobreviviam
até a chegada ao Brasil.
Na mesma região, chamada de Pequena África pelo
artista negro Heitor dos Prazeres, por influência da ocupação de africanos e
seus descendentes, nasceram as primeiras associações que promoviam cortejos de
carnaval (ranchos), candomblés e casa de angus.
“Não é à toa que o Rio de Janeiro é um polo de
produção e renovação cultural no Brasil e no mundo”, disse, em vídeo do Iphan,
a professora Martha Abreu, da Universidade Federal Fluminense, uma das autoras
do dossiê de candidatura do cais a patrimônio.
Fonte: ENVOLVERDE
Nenhum comentário:
Postar um comentário