A
geografia da vergonha.
José Eli da Veiga – Professor sênior do Instituto
de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (IEE/USP)
José Eli da Veiga –
Deveria ser inaceitável que ainda houvesse
multidões condenadas a abjetas condições de vida após um século e meio de
vertiginosa aceleração de processos civilizadores, que se seguiu a mais de dez
milênios de lentos progressos, mas marcados por cruciais surtos de
desenvolvimento. Quanto tempo ainda será necessário para que isso termine?
Depende do que se entenda por pobreza.
Pela convenção dominante, pobre seria quem
sobreviveu em 2012 com renda inferior a US$ 1,90 ao dia. Abaixo dessa “linha”
estavam 12,7% da população mundial. Mas, como se sabe, com imensas
discrepâncias espaciais.
No Leste Asiático (que inclui a Coreia do Sul),
6,5% da população se enquadrava nessa condição, apesar das extraordinárias
proezas do despotismo esclarecido na China. Proporção superior à da América
Latina e Caribe (5,6%) e bem superior à do Norte da África (1,7%). Com o
Oriente Médio nem dá para comparar, já que razoáveis dados estatísticos estão
entre as vítimas de tantas conflagrações. E parece até desnecessário mencionar
o sucesso do grupo de 55 países ditos desenvolvidos, que já se libertaram desse
tipo de flagelo.
Brasil tem mais da metade da população sem acesso a
esgoto, e está na 112ª posição no ranking do saneamento.
Na margem oposta, desempenhos piores que o do Leste
Asiático ocorriam nas duas regiões vizinhas do mesmo continente: o Sul com 8,3%
e o Sudeste com 15,4%. Assim como no Cáucaso, com 11,6. Mas nada que se
aproximasse dos dois mais calamitosos casos de subdesenvolvimento: a África
Subsaariana, com trágicos 42,6%, e a Oceania (sem Austrália e Nova Zelândia),
com 29,7%.
Ao contrário do que parece, esse é um panorama que
autoriza razoável grau de otimismo para 2030, prazo de validade dos dezessete
Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) adotados pela comunidade global
em setembro de 2015. Pois, bastará mais do mesmo. Se o crescimento econômico
mundial puder manter o padrão dos primeiros quinze anos deste século, é
provável que em 2030 somente em partes da África e da Oceania ainda restem
intoleráveis contingentes de párias por insuficiência de renda.
O problema, contudo, é que essa agenda reconhece, desde
seu primeiro objetivo, que a pobreza não se resume a insuficiência de renda. É
imprescindível ter em conta as demais privações sofridas no porão da sociedade,
pois a incidência de pobreza não é obrigatoriamente determinada pela renda.
Só que o pensamento convencional continua a
hostilizar essa conjectura. Por isso, é indispensável perguntar, por exemplo,
se faz sentido não contabilizar como pobre alguém que sobreviveu 2015 excluído
do elementar direito humano à higiene propiciada por saneamento básico. Não
seriam pobres as famílias das crianças mortas no ano passado por recorrentes
diarreias causadas pela convivência com esgoto a céu aberto?
Tal indagação seria improcedente, claro, se
houvesse correlação entre as duas privações citadas: a de renda e a de higiene.
Mas não há.
Para começar, no Leste Asiático 22,6% da população
continuava em 2015 sem saneamento, malgrado o espetacular desempenho chinês.
Mais que o triplo de pessoas privadas de higiene do que pessoas com menos de
US$ 1,90 ao dia. Isto é, havia por ali perto de quatro vezes mais pobres do que
faria pensar o bitolado critério da pobreza de renda.
Nas demais regiões do globo ocorrem diversos graus
dessa mesma disparidade, com uma única exceção. Em 2015, só no Cáucaso a
privação de renda superava a privação de higiene: 11,6% contra 4,1%. Até no
clubinho dos desenvolvidos havia 4,4% das pessoas sem acesso a saneamento,
enquanto no restante do mundo elas chegavam a 38,2%. Pior: atingiam impensáveis
65,5% nos 48 países classificados como “os menos desenvolvidos”.
Aí está, em síntese, a distribuição geográfica da
vergonha que pode ser descrita graças ao ótimo anexo estatístico do primeiro
relatório de acompanhamento dos ODS, que acaba de ser lançado pelo Conselho
Econômico e Social da ONU. Proíbe qualquer esperança de que a pobreza seja
minimizada em quinze anos.
E podem ser úteis mais três observações:
Primeiro, justificar por que esgoto inacessível é a
pior das mazelas de todas as civilizações contemporâneas. Porque sofrer
recorrentes infecções parasitárias na primeira infância reduz a inteligência,
diz estudo coordenado por Christopher Eppig, que está nos “Proceedings of the
Royal Society” (277: 38013808). O cérebro é o órgão do corpo humano que mais
consome energia: 87% no recém-nascido, 44% aos cinco anos, 34% aos dez. As
infecções parasitárias desviam energia para ativar o sistema imunológico.
Repetidas diarreias até os cinco anos roubam do cérebro as calorias necessárias
a seu desenvolvimento.
Segundo, relembrar o escandaloso desempenho do
Brasil. Ter mais da metade da população sem acesso a esgoto o coloca na 112ª
posição no ranking mundial do saneamento (atrás até do Paraguai, na 101ª). E
isso apesar de o país alcançar a 75ª colocação nas classificações por IDH ou
por PIB per capita (PPC).
Finalmente, mas não menos importante, anunciar que
será consagrada ao saneamento a edição da ótima revista online “Página 22” que
está para sair: www.pagina22.com.br/
—–
*José Eli da Veiga é professor sênior do
Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (IEE/USP) e autor
de “Para entender o desenvolvimento sustentável” (Editora 34, 2015).
Fonte: www.zeeli.pro.br
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