A metade
que falta para as princesas.
Por Maria Helena Masquetti*
“Socorro, socorro, estou me afogando!”, grita a
pequena Abigail, de 4 anos, para seu príncipe encantado, num trecho do livro
“Em defesa do faz de conta”, da psiquiatra e ativista norte americana, Susan
Linn. O resto, a própria Susan descreve, uma vez que participou pessoalmente da
brincadeira: “Curiosa para ver o que Abgail faria, pulei no mar e logo comecei
a gritar: ‘Socorro, não sei nadar!’. De repente, a história mudou. ‘Eu lembrei
como se nada!’, exclamou a pequena, saindo em meu socorro, salvando-se a si
mesma e ao príncipe.”
Esta citação de Susan remete imediatamente a dois
fatos que clamam por uma reflexão. Por um lado, trata-se da chamada Escola de
Princesas onde meninas, só meninas, imersas num ambiente absolutamente cor de
rosa, aprendem, a partir dos quatro anos, sobre etiqueta, cosmética, culinária,
arrumação da casa, participam de passeios de limusine e, conforme exalta uma
das mães: “Acredito que ela não vai dividir grandes funções com o marido porque
ela vai pedir que o marido compre aquela flor, ela vai pedir que o marido traga
aquele detalhe que ela quer pra dentro de casa.”
Quanto ao outro fato, o próprio nome diz de sua
contraposição ao primeiro: Curso de Deprincesamento, criado pela Oficina de
Proteção dos direitos da Infância da cidade de Iquique, no Chile. O propósito é
estimular a autonomia das meninas, de nove a quinze anos, para ampliar nelas as
possibilidades do que é ser mulher a fim de se defenderem de abusos. E também
para extinguir conceitos como a procura do príncipe encantado como forma de
serem mantidas ou salvas por eles como retratam a maioria dos filmes baseados
em versões praticamente comerciais dos contos de fada originais.
Se é de se lamentar que os abusos contra a mulher
levaram a organização chilena a adotar um curso onde meninas tenham que aprender
a se defender numa cultura machista, é surpreendente também que tantas mulheres
apoiem a ideia de especializar suas filhas para bem servir em lugar de
estimulá-las na busca da autonomia.
É urgente refletir, então, sobre o quanto a cultura
da fragilidade coloca as mulheres cada vez mais para fora do cenário
profissional e político. Em lugar de príncipes encantados, a verdadeira metade
que falta para elas é, por exemplo, a ocupação igualitária nas tribunas e
cargos públicos, a equiparação de seus salários com os de homens na mesma
função, o fim da violência doméstica, a proibição de seu uso como mero objeto
sexual tão impunemente visível até nos comerciais de cerveja e a erradicação
dos estupros cuja culpa ainda recai muitas vezes sobre elas mesmas sob alegações
cínicas, incluindo o tipo de roupa que estariam usando, principalmente se não
for cor de rosa.
Escola de Princessas ensina culinária, etiqueta e
dicas de beleza para meninas. Foto: Divulgação.
Vale imaginar o que devem entender os meninos que
hoje veem meninas se embrenhando em cursos para melhor atendê-los no futuro
enquanto o contrário é impensável para eles. Se criar os filhos e cuidar da vida
doméstica são tidos como tarefas exclusivas da esposa, o que sobrará para estes
meninos a não ser a constatação de que nasceram para governar enquanto elas
nasceram para ser, quando muito, primeiras damas?
E como por trás de uma insensatez geralmente tem
outra, o que dizer a respeito do encurtamento da infância causado por todo esse
chamamento das crianças para questões do mundo adulto? O simples consenso geral
de que as crianças devem brincar em lugar de se preparar para matrimônios ou
aprender a se defender de abusos, já seria um indicativo forte de nossa
evolução. Isto porque, brincando livres das competições adultas, meninas e
meninos têm a oportunidade de construir sua identidade única, de se expressar
com liberdade, de confirmar sua dependência mútua, de descobrir seus genuínos
desejos e de crescerem para ser o que quiserem ser, num mundo nem rosa nem
azul, mas da cor da igualdade de gênero e do respeito aos direitos.
* Maria Helena Masquetti é
graduada em Psicologia e Comunicação Social, possui especialização em
Psicoterapia Breve e realiza atendimento clínico em consultório desde 1993.
Exerceu a função de redatora publicitária durante 12 anos e hoje é psicóloga do
Instituto Alana.
Fonte: ENVOLVERDE
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