A
ecologia deles e a nossa.
Por Razmig Keucheyan*
Há mais de 40 anos, filósofo André Gorz
alertava: capitalismo tentaria capturar causas ambientais. Antídoto: a ideia
radical de que uma boa vida não está ligada a privilégios, mas à construção do
Comum.
Há 42 anos, em 1974, André Gorz publicava na
revista Le sauvage um texto famoso, intitulado Leur écologie et la nôtre. Le
Monde diplomatique reeditou em 2010 extratos desse texto. E compreende-se
porque: é simplesmente espantosa a previsão de Gorz, sua capacidade de
antecipar a evolução das relações entre o capitalismo e a natureza. Gorz
descreve desde 1974 o mundo em que o nosso está se transformando.
Veja o que diz Gorz:
“A consideração de exigências ecológicas (…) já
tem bastante adeptos capitalistas, porque sua aceitação por parte do poder do
dinheiro torna-se uma séria probabilidade. [A luta ecológica] pode criar
dificuldades para o capitalismo e forçá-lo a mudar; mas, depois de resistir por
muito tempo na base da força e da astúcia, o capitalismo finalmente cederá,
porque o impasse ecológico terá se tornado inelutável; ele absorverá essa
restrição, como absorveu todas as outras.”
O argumento de Gorz é simples: o capitalismo é um
sistema resiliente. Pode encontrar dificuldades por causa da crise ecológica,
mas no final se adaptará. Por que Gorz diz isso? Se o capitalismo conseguiu
existir durante três séculos, é porque beneficiou-se de uma natureza gratuita,
uma natureza que não era preciso “reproduzir”. Essa natureza gratuita, o
capitalismo a utilizou como input e como output ao mesmo tempo. A natureza
constituiu-se em fonte de inputs gratuitos para o capitalismo, pois, desde que
existe, o sistema captura os recursos naturais “brutos” para transformá-los em
produtos. Mas a natureza constituiu-se também em output, uma “cesta de lixo
global” onde são despejados os dejetos da acumulação do capital, isso a que os
economistas neoliberais chamam pudicamente de “externalidades negativas”.
Com a crise ambiental, a natureza não exerce mais
essa dupla função de input e output gratuitos para o capitalismo. A dialética
do sistema e da natureza entra em crise. Certos recursos naturais cruciais para
a vida das sociedades modernas (água, combustíveis fósseis, ar não poluído
etc.) estão desaparecendo, enquanto a manutenção ou limpeza do meio ambiente
tornam-se mais e mais caros.
Por exemplo, o custo da poluição para o sistema de
saúde não para de crescer, pesando sobre a taxa de lucro. A conclusão que
alguns tiram desse fato é clara: o capitalismo não vai durar muito mais tempo,
precisamente porque tem uma necessidade imperativa dessa natureza gratuita. Sem
ela, a acumulação do capital perde seu substrato material.
Gorz não está de acordo com esse raciocínio,
ainda muito comum na esquerda – ele acha que o capitalismo saberá absorver a
restrição ambiental. Com a crise ecológica, a natureza deve agora ser
“reproduzida”, tal como a força de trabalho. “Reproduzida” significa que volumes
crescentes de capital terão de ser investidos para despoluir ou proteger as
populações – ou determinadas porções privilegiadas da população – das
catástrofes naturais.
Um exemplo é o projeto de gestão “ecológica” do
East River em Nova York, o East Side Coastal Resiliency Project. Com o custo de
meio bilhão de dólares, é a primeira etapa da adaptação da cidade às mudanças
climáticas e a catástrofes naturais, cada vez mais numerosas e intensas. Foi
lançado após a devastação provocada na cidade pelo furacão Sandy, em outubro de
2012. É liderado pela estrelada empresa BIG, de arquitetos dinamarqueses (a
arquitetura “verde” é um negócio florescente), e está voltado à proteção das
áreas mais ricas de Manhattan.
O capital mobilizado para a “reprodução” da natureza
terá dois efeitos possíveis sobre o sistema: ou a taxa de lucro baixará, pois
essa reprodução será pouco rentável; ou então o preço das mercadorias
produzidas dessa maneira aumentará, de forma que o lucro seja mantido, ou até
aumente. Essa segunda eventualidade é a mais provável, diz Gorz. O imperativo
de reprodução da natureza levará a uma alta geral dos preços, as mercadorias ou
as infraestruturas se tornarão inacessíveis à população – mas acessíveis aos
endinheirados. O poder de compra dos mais pobres será comprimido e as
desigualdades aumentarão devido à crise ambiental.
“Levar em conta os custos ecológicos terá, em
resumo, os mesmos efeitos sociais e econômicos da crise do petróleo. E o
capitalismo, longe de sucumbir à crise, irá geri-la como sempre fez: grupos
financeiros bem situados lucrarão com as dificuldades de grupos rivais para
absorver a preço baixo e expandir sua apropriação sobre a economia. O poder
central reforçará o controle sobre a sociedade: tecnocratas calcularão normas
“ótimas” de despoluição e produção, elaborarão as regulamentações, estendendo
os domínios da ‘vida programada’ e o campo de ação dos aparelhos de repressão.”
Aquilo que Gorz podia somente imaginar,
extrapolar, é o que vemos tomar forma diante dos nossos olhos. Assistimos hoje
à adaptação do capitalismo à crise ambiental, uma adaptação de duas ordens.
A
primeira, reflexo do capitalismo em situação de crise, é sempre mercantilizar,
mercantilizar a natureza. Essa mercantilização opera hoje, por exemplo, por
meio da criação de proodutos financeiros “segmentados” sobre a natureza, as
catástrofes naturais ou a biodiversidade. Os mercados de carbono, os
derivativos climáticos, os títulos de catástrofe ou ainda os bancos de ativos
de biodiversidade estão entre esses produtos financeiros [1].
Mas o capitalismo não se contenta em
mercantilizar a natureza, é mais esperto que isso.
Contrariamente ao que a
esquerda frequentemente imagina, os capitalistas são bem capazes de pensar a
longo prazo, em especial quando seus lucros estão em jogo. Mais exatamente, em
épocas de crise como hoje, as racionalidades capitalistas de curto e longo
prazo entram em conflito – e as atuais hesitações das classes dominantes em
relação à crise climática são testemunhas disso.
É o que demonstra o caso da BlackRock — a mais
importante gestor de ativos financeiros do mundo.
Ele gere cerca de 5 trilhões
de euros. Publicou, em setembro passado, um relatório intitulado Adapting
portfolios to climate change [2], no qual diz que os investidores devem a
partir de agora incluir, em suas estratégias de investimento, o respeito ao
ambiente nas empresas em que investem: emissão de gases de efeito estufa, danos
à biodiversidade, consumo de água etc. A BlackRock lhes diz, preto no branco: é
preciso investir somente nas empresas que se colocam seriamente a questão das
mudanças climáticas e de seus efeitos sobre sua rentabilidade.
Esses fundos de investimento por certo não foram
subitamente convertidos ao ambientalismo. O argumento da BlackRock é que,
depois da COP21, a pressão da opinião pública e dos governos sobre as
corporações vai aumentar, e a regulamentação ambiental será mais estrita. Isso
significa que as empresas que não levam a sério essa dimensão irão ver-se em
dificuldades e serão, portanto, menos lucrativas aos investidores. A expressão
consagrada pelos financistas em inglês é “strand assets”, um termo que designa
os ativos financeiros cujo valor diminuirá à medida que a regulação ambiental
se tornar mais exigente. O relatório da BlackRock vai considerar como
inevitável até a redução futura dos subsídios estatais para as indústrias
fósseis.
Essa inesperada virada ecológica da BlackRock,
contudo, entra rapidamente em contradição com a necessidade de realizar lucros
aqui e agora. A imprensa financeira relata que, alguns meses antes da
publicação desse relatório, a BlackRock impediu a votação de uma resolução
“ecológica” durante a assembleia anual de acionistas da ExxonMobil. [3] A
ExxonMobil é uma gigante do petróleo, o segundo valor de mercado do mundo,
atrás apenas da Apple. O volume de negócios chega ao nível do PIB da Áustria. A
BlackRock e outra gestora de ativos, a Vanguard, são os dois maiores acionistas
da Exxon; juntas, possuem 11% do capital.
Um grupo de acionistas “ético”, que detém ações
da Exxon, submeteu no início do ano à assembleia uma resolução pela qual a
Exxon deve explicitar sua estratégia pós COP21. Como o conselho de
administração da Exxon enxerga os efeitos do acordo de Paris sobre seus
investimentos futuros, em matéria de energias fósseis? Não seria tempo de
reorientar esses investimentos em direção a energias renováveis?
Os representantes da BlackRock na assembleia de
acionistas votaram contra essa resolução. Eles não se opuseram apenas a que a
Exxon renuncie às energias fósseis. Também imperdiram sua direção de explicar
para os acionistas quais as consequências do acordo de Paris para a estratégia
de investimento futuro da corporação. Em resumo, a BlackRock fez exatamente o
contrário do que preconiza seu relatório.
Como explicar essa esquisofrenia dos
capitalistas, da qual poderíamos dar numerosos exemplos? De um lado, publica-se
um documento afirmando que os parâmetros ambientais devem entrar em
consideração nas estratégias de investimento; de outro, opõe-se a uma resolução
“minimalista” que convida a direção de uma major do petróleo a refletir sobre o
pós COP21. Claro, sempre é possível dizer que os dirigentes da BlackRock são
hipócritas, ou que fazem a chamada “lavagem verde”, ou greenwashing: eles dizem
à opinião pública o que ela quer ouvir em matéria ambiental, mas paralelamente
praticam business as usual.
Há talvez uma parte disso, mas não há razão para
subestimar o fato de que os capitalistas se colocam, de fato, perguntas quanto
à atitude a adotar no contexto da crise climática.
Há três coisas para analisar, aqui. Primeiro, a
lógica do curto e do longo prazo entraram em conflito.
O capital financeiro tem
uma tendência congênita ao curto-prazismo, a buscar lucros imediatos. As
instituições que permitiriam disciplinar esse curto-prazismo em matéria
ambiental ainda não foram inventadas, e portanto o curto prazo venceu. Mas no
passado, para sair de outras crises – como a dos anos 1930, por exemplo — o
capitalismo soube perfeitamente disciplinar-se, ou ser disciplinado pelo
Estado. Não há razão para pensar que será incapaz desta vez. Mas para isso são
necessárias novas instituições.
Em segundo lugar, o relatório BlackRock tem o
mérito de enviar um sinal às corporações. “O limite ambiental vai tornar-se
mais premente depois da COP21. Se querem que a gente invista em seu negócio no
futuro, reflita sobre os seus efeitos sobre a rentabilidade e tome as medidas
que se impõem. Caso contrário, não lhe confiaremos nosso dinheiro”, é a
mensagem enviada pela BlackRock.
Finalmente, esses fundos de investimento investem
paralelamente em setores da economia que sofrem os efeitos das mudanças
climáticas. Se um fundo de investimento possui ações de uma seguradora, tipo
Allianz ou Axa, ele vê a curva de remuneração paga aos segurados subir como uma
flecha depois de várias décadas, devido ao aumento das catástrofes naturais.
Tem, portanto, um interesse objetivo na existência de menos catástrofes naturais,
e portanto em reduzir as emissões de gases de efeito estufa das empresas em que
investe, em outros lugares.
Voltemos a Gorz. Quando o capitalismo assimilar a
pressão ambiental, diz Gorz, ele o fará em seu próprio interesse, e não no
interesse das populações. Há a ecologia “deles”, a dos capitalistas, e há a
“nossa”, das populações. Mas o que distingue a economia deles da nossa? A
resposta de Gorz é muito estimulante, ela esboça um programa de trabalho
político que devemos elaborar coletivamente.
Segundo Gorz, a divisa da sociedade capitalista é
a seguinte: Aquilo que é bom para todos não vale nada. Você só será respeitável
se for “melhor” do que outros. A esse slogan capitalista é preciso opor um
outro, uma divisa ecológica: Só é digno de você aquilo que é bom para todos. Só
merece ser produzido o que não favorece nem diminui ninguém.
O que distingue, para Gorz, “a ecologia deles da
nossa” é a concepção de necessidade humana que sustenta cada uma. Na sociedade
capitalista, a escolha daquilo que um indivíduo necessita para viver uma “boa
vida” é da alçada do próprio indivíduo — ou seja, em última instância é do
mercado, pois a vontade individual frequentemente não pode muita coisa diante
do poder de persuasão do mercado. E a lógica do mercado é a da diferença: eu
não sou respeitável a não ser que seja “melhor” que os outros. Claro, essa
discussão é enganosa, pois o mercado promete a mesma “diferença” a milhões de
indivíduos, isso que tende, em última instância, a homogeneizar tudo, e
estabelecer “vidas programadas”, como diz Gorz.
Para pensar nossas necessidades fora da lógica do
mercado, para romper com as subjetividades consumistas, é preciso opor a ele
uma força de poder equivalente. Essa força não pode ser outra além da
deliberação coletiva, a democracia, uma democracia radical. Às necessidades
criadas artificialmente pelo mercado, é preciso opor necessidades coletivamente
discutidas e articuladas: “Só é digno de você aquilo que é bom para todos”. A
partir disso, trata-se – e isso é o mais difícil – de colocar-se de acordo
sobre aquilo que é “bom para todos” — algo que só aparece por meio da
deliberação coletiva.
A questão que Gorz não aborda, e da qual
deveríamos nos ocupar nos anos que virão é: em quais tipos de coletivos, em
quais “conselhos cidadãos” as necessidades “boas para todos” — aí incluído o
meio ambiente — poderiam ser colocadas em discussão? Aqui é preciso inspirar-se
nos “grupos de reflexão” feministas dos anos 1970. Nesses grupos, discutiam-se
os aspectos mais íntimos da vida, pensando-os em sua ligação com a política.
Esses grupos permitiram que as mulheres saíssem do isolamento, discutissem a
opressão de que eram vítimas, e também tomassem consciência de sua força quando
se organizavam.
Colocar-se de acordo sobre necessidades
“autênticas”, que escapem à falsa diferença prometida pelo mercado e que sejam
ecologicamente duráveis, poderia ser algo a fazer em coletivos do mesmo tipo.
Combatendo o consumismo de que somos todos vítimas em níveis diversos, esses
coletivos poderiam também pronunciar-se sobre o tipo e a quantidade de bens
produzidos, tal como faziam, antes, os conselhos de trabalhadores. Este é
talvez um dos futuros caminhos da radicalização da democracia, e também da
superação do capitalismo.
Notas
[1] Sobre isso, ver Razmig Keucheyan, La nature est un champ de
bataille. Essai d’écologie politique, Paris, editora Découverte, 2014, cap. 2.[2] Disponível no endereço: https://www.blackrock.com/investing/literature/whitepaper/bii-climate-change-2016-us.pdf
[3] Ver Financial Times, 6 de setembro de 2016.
* Tradução:
Inês Castilho.
Fonte: Outras
Palavras
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