Represas
ameaçam a biodiversidade amazônica.
Tracajás da Colômbia. Tartarugas, botos e ariranhas
estão entre as espécies aquáticas ameaçadas por construções de represas, mas os
riscos também se estendem a pássaros, morcegos e animais terrestres. Foto:
Rhett A. Butler.
Por Mongabay*
Botos, ariranhas, tartarugas, peixes, pássaros e
macacos estarão em risco se 246 represas continuarem a funcionar na Amazônia —
principalmente na bacia do Tapajós e nas nascentes dos Andes.
O aumento das hidrelétricas na Amazônia ameaça
várias espécies em extinção e coloca habitats únicos em risco, alerta estudo
recente.
Botos, ariranhas, tartarugas, peixes, pássaros e
macacos terão seus habitats alterados por represas hidrelétricas, e algumas
espécies poderão ser extintas por completo, revelou a equipe internacional de
biólogos que estudou os impactos associados com as 191 represas em
funcionamento na Amazônia e as 246 represas já planejadas ou em construção.
Os pesquisadores também identificaram interações
negativas entre a construção de represas, a mineração, a agricultura
industrial, o comércio, o transporte, as mudanças climáticas, a migração
humana, e as atividades relacionadas à biodiversidade e aos ecossistemas,
demonstrando como os impactos podem se multiplicar de várias maneiras
devastadoras.
Em termos ambientais, os mais diretos e óbvios
impactos causados pelas represas e relatados no estudo recaem sobre a vazão e a
conectividade entre as águas. Nutrientes que descem rio abaixo pelos Andes são
interrompidos por represas. Os pulsos de inundação, que são uma parte vital
para os ciclos de vida de muitas espécies, são modificados pelos reservatórios e
pelos padrões de fluxo que as represas criam e controlam. A complexidade do
habitat se extingue e espécies como o boto se isolam em determinados trechos do
rio entre as hidrelétricas, o que torna as subpopulações menores vulneráveis à
extinção.
Uma espécie de peixe endêmico ainda não descrita e
encontrada no trecho conhecido como Volta Grande do Rio Xingu, que possui 100
quilômetros de extensão e que perderá 80% de sua vazão graças à represa Belo
Monte. Foto: © L. Sousa.
Peixes que migram ao longo dos canais fluviais têm
suas rotas bloqueadas, incluindo a recentemente descrita migração em massa de
peixes-gato que nadam distâncias de 370 quilômetros enquanto pesam menos que a
metade de uma grama. A diversidade dos peixes de água doce na Amazônia é a
maior do mundo, com mais de 2500 espécies, a maioria endêmica da região. O
estudo conclui que muitas espécies estão em risco direto de extinção devido à
construção de represas.
A perda de um habitat fluvial único
Não são apenas as espécies aquáticas que correm
perigo. A biodiversidade amazônica nasce, em parte, da riqueza de habitats que
a região contém, como ilhas, várzeas e afloramentos rochosos. Tais ambientes
oferecem habitats importantes não só para peixes e plantas aquáticas, mas
também para animais terrestres, incluindo primatas, pássaros e morcegos.
“Rios – ou seções de rios – caudalosos que desaguam
em inclinações íngremes são uma exceção, e não a regra, na planície amazônica”,
explica Carlos Peres, coautor do estudo da Universidade de East Anglia, no
Reino Unido. “Estes rios são característicos dos escudos geologicamente
arcaicos da Guiana e do Brasil (ao norte e ao sul do Rio Amazonas, respectivamente)
e estão ligados normalmente a canais fluviais mais estáveis e rochosos em uma
escala de tempo evolutiva. Sendo assim, as biotas terrestres e aquáticas
presentes nesses habitats um tanto quanto únicos – altamente cobiçados pelas
hidrelétricas – são mais propícias a serem endêmicas das bacias hidrográficas
da região”.
“Os que continuam perdendo mais, neste caso as
espécies que correm risco de extinção global, são os microendêmicos restritos
àquelas seções rápidas [de rios] impulsionadas pelos construtores das usinas”,
informou Alexander Lees, líder do estudo, à Mongabay.
Ilhas da Reserva Biológica do Uatumã, formada por
inundações associadas à Usina Hidrelétrica de Balbina na Amazônia. A perda de
habitat e a fragmentação, em combinação com a emissão de gases de efeito estufa
devido à submersão da vegetação e do solo, são apenas dois dos impactos que
usinas tropicais causam no meio-ambiente. Um novo estudo alerta que a
combinação de impactos de centenas de usinas na Amazônia coloca a
biodiversidade da região em risco. Foto: © Carlos Peres
“Espécies de ilhas fluviais também estão em risco
de inundação – especialmente em torno do Rio Madeira, por exemplo, que possui
um conjunto de espécies de aves com alcance restrito”, disse Lees, da
Universidade Cornell, nos EUA.
Outros pássaros em risco incluem o
choca-preta-e-cinza, que possui diversas subespécies restritas a ilhas e
várzeas, que, segundo Lees, “continuam perdendo uma proporção significativa de
seu alcance global”, assim como o chororó-do-rio-branco, criticamente ameaçado
de extinção “por conta das usinas já planejadas ao longo do Rio Branco”.
As consequências devastadoras não estão limitadas à
Amazônia, pois se propagarão pela América do Norte: habitats importantes para
aves migratórias que passam o verão no Norte e o inverno na Amazônia também
podem ser extintos.
Conexões entre hidrelétricas, mineração e agronegócio
O estudo também assinalou equívocos comuns sobre a
construção de hidrelétricas, apontadas como uma fonte elétrica sustentável para
as populações urbanas e rurais do Brasil. Além de as hidrelétricas amazônicas
não serem sustentáveis – os reservatórios inundam a floresta e submergem
árvores, fazendo com que o solo libere altas quantidades de metano, um gás
estufa potente -, a população da região não é a que mais se beneficia da
eletricidade que as usinas geram.
“As indústrias são os principais beneficiários”,
revela Philip Fernside, coautor desse estudo, à Mongabay. “Apenas 22% da
eletricidade brasileira é voltada ao consumo doméstico”.
Christian Poirier, Diretor do Programa Amazon
Watch, que não estava envolvido no estudo, acrescentou: “Está claro que a
grande força por trás da construção das hidrelétricas na Amazônia é o apetite
voraz por energia das indústrias de mineração, e não as necessidades das casas
comuns”.
Pássaro choca-preto-e-cinza, uma das muitas
espécies de aves que perderão um habitat valioso devido à construção de usinas.
“Existem diversas subespécies restritas a ilhas e várzeas que continuam
perdendo uma proporção significativa de seu tamanho global devido às inundações
permanentes”, informou Lees, autor do estudo, para a Mongabay. Foto: ©
Alexander Lees.
“Usinas como Belo Monte reservam 30% de sua energia
para a indústria de mineração, ao passo que o complexo planejado do Tapajós foi
projetado para prover energia aos processos de extração e fundição de bauxita
da região”, acrescentou.
“O incentivo para a construção de grandes usinas em
regiões amazônicas remotas e ricas em minérios, onde a transmissão de energia
para os centros urbanos é ineficiente e proibitivamente cara, pode ser
entendido como uma doação subsidiada pelo poder público aos interesses do
agronegócio e da mineração corrupta e insustentável do país”, concluiu
Christian. No momento, um escândalo de corrupção no Brasil tem envolvido alguns
personagens-chave no setor hidrelétrico, aumentando o ceticismo sobre os
verdadeiros benfeitores do boom envolvendo a construção de usinas.
O estudo conclui que a grande necessidade de
energia por parte das empresas privadas que buscam lucro na extração de
bauxita, níquel, cobre e ouro será facilitada pela expansão hidrelétrica
altamente subsidiada pelo governo. Porém, as conexões entre diversos setores
comerciais não se restringem a isso: no Rio Xingu, a controversa e recentemente
autorizada Usina Belo Monte levará a uma redução de fluxo de 80% no trecho de
100 km conhecido como Volta Grande. Segundo o estudo, uma empresa canadense
pretende explorar este leito de rio recentemente exposto e, para tanto,
adquiriu uma concessão de 1.305 km2 para a mineração de ouro.
Andorinhões velhos, um especialista natural em
quedas d’água e uma das muitas espécies de andorinhão que precisam de uma
avaliação da IUCN sobre seu risco de extinção. Espécies que dependem dos
trechos velozes dos rios impulsionados pelas hidrelétricas serão altamente
impactadas pela construção de usinas. Foto © Alexander Lees.
Usinas e minas também causam, em conjunto, um
grande impacto sinérgico, ainda que indireto, no meio-ambiente: a contratação
de trabalhadores e o consequente desemprego quando o projeto finaliza leva a
mais desmatamento e degradação dos habitats, especialmente em virtude do corte
ilegal de madeira e da caça.
Usinas também promovem a rápida expansão da
agricultura industrial e do comércio, outra má notícia para a floresta
tropical, particularmente em partes da bacia amazônica que um dia foram
remotas. “Vias navegáveis para transportar soja estão sendo planejadas em
conjunto com usinas na bacia do Rio Tapajós, e na Bolívia, em conjunto com as
usinas do Rio Madeira”, afirma Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da
Amazônia. “Esses projetos trazem grandes implicações para o desmatamento e
fogem ao atual sistema de licenciamentos ambientais para usinas no Brasil. Não
só o sistema de licenciamentos precisa ser fortalecido, mas, mais
fundamentalmente, o sistema que envolve as tomadas de decisão precisa ser revisto”.
Todo o estrago é agravado pelos danos causados
pelas usinas às comunidades ribeirinhas que são por elas deslocadas: a
construção da Usina Belo Monte tem tido um efeito tão prejudicial nos povos
indígenas que o governo e as empresas responsáveis têm sido processados por
etnocídio.
Alternativas às represas
Então, o que pode ser feito? Alguns pedem pela
completa suspensão da construção de hidrelétricas e a adesão a fontes
alternativas de energia. “Os impactos socioambientais inaceitáveis causados por
projetos de represas no passado e no presente deviam levar os formuladores de
políticas a instaurar uma moratória imediata em novos projetos de grandes
represas por toda a bacia”, disse Poirier.
Fontes alternativas de energia são abundantes e
ofereceriam maior segurança quanto ao fornecimento de energia do que as
represas, que são mais propensas a apresentar quedas em sua capacidade de gerar
energia em cenários que envolvam recorrentes mudanças climáticas e
desmatamento. “O Brasil tem um tremendo potencial para energia solar e eólica”,
diz Feranside. “O país possui extensos litorais com ventos constantes. Estudos
mostram que matrizes marítimas de torres altas construídas na plataforma
continental podem abastecer toda a eletricidade do Brasil”.
Ao que tudo indica, tais alternativas não serão
criadas em um futuro próximo. Segundo Fearnside, “[a] preferência do governo
por hidrelétricas é clara. Em janeiro de 2016, a [então] presidente vetou a
inclusão de qualquer fundo para ‘energia renovável não-hidráulica’ no plano de
desenvolvimento para os próximos cinco anos”.
Volta Grande, no Rio Xingu, que sofrerá grande
redução devido à represa Belo Monte. Espécies endêmicas de peixes estarão em
risco direto, e a exposição do leito do rio permitirá que 1.305 km2 de minas de
ouro sejam exploradas por meio de concessão. Foto: © Philip Fearnside.
Poirier explica que outra opção para proteger a
biodiversidade é atuar dentro de um sistema existente, uma vez que “a
modernização das redes elétricas sabidamente insustentáveis… reduziria
drasticamente a demanda e pouparia os últimos rios de curso livre da Amazônia”.
Além disso, se o governo continuar a construir represas, “os responsáveis pelo
setor de energia devem também respeitar os direitos dos povos indígenas e
tradicionais de serem plenamente consultados e ouvidos antes de qualquer
planejamento que afete suas terras, culturas e estilos de vida”.
O estudo conclui que os locais para novas represas
na Amazônia também devem ser mais bem analisados, com uma avaliação de toda a
bacia quanto a custos e benefícios — ambientais, sociais e financeiros — a ser
feita antes de qualquer construção. Segundo Lees, “tem sido coletada uma grande
quantidade de dados relacionados à biodiversidade durante avaliações de
impactos, mas isso não foi traduzido em avaliações sobre o risco de extinção
das espécies de alcance restrito e análises de custo benefício efetivas entre
os ganhos econômicos e a degradação dos ecossistemas e da biodiversidade”.
Há esperança de progresso com relação à proteção da
biodiversidade na proposta de Lei de Licenciamento Ambiental que abordará
algumas dessas questões, mas “com a instabilidade atual do Congresso
Brasileiro, a nova lei provavelmente não será promulgada em 2016”, disse
Mauricio Schneider, coautor do estudo e consultor legislativo na Câmara dos
Deputados. Essa esperança, no entanto, é abalada por uma proposta de emenda
constitucional que está tramitando rapidamente no Congresso Nacional e que visa
acabar com a atual exigência de um extenso processo de licenciamento de impacto
ambiental para grandes projetos de infraestrutura fomentados pelo governo
federal – uma ação com a provável intenção de acelerar a construção de represas
na Amazônia.
Ironicamente, os desafios que o Brasil tem de
enfrentar talvez sirvam para que a Amazônia ganhe tempo. Segundo Schneider, “o
Brasil tem frequentemente escolhido soluções energéticas caras e subsidiadas em
larga escala ao invés de programas de eficiência energética ou sistemas de
distribuição. Revezes econômicos, um escândalo de corrupção envolvendo a
represa Belo Monte e as grandes empreiteiras sendo processadas judicialmente …
vão adiar a construção de novas hidrelétricas”. Schneider acrescenta que
“[t]alvez haja algum efeito colateral bom em meio a tantos interesses escusos”.
Mapa que mostra a distribuição de barragens na
Amazônia, com o tamanho do círculo que representa a potência. Círculos
vermelhos mostram onde centenas de represas foram propostas, com concentrações
elevadas nas regiões de cabeceiras dos Andes e da bacia do Tapajós. Foto:
Cortesia/ Alexander lees.
O futuro da biodiversidade é, portanto, incerto,
mas há oportunidades de agir e assegurar um futuro mais positivo tanto para a
Amazônia quanto para as pessoas e a fauna que dela dependem.
“O futuro dos ecossistemas amazônicos e dos
empreendimentos destrutivos como a construção de represas não está escrito em
pedra” diz Fearnside. “Eles dependem das escolhas da sociedade em cada país
amazônico. Os interesses dessas sociedades seriam mais bem atendidos se as
políticas que favorecem cada vez mais as represas fossem revistas”.
Citações:
Lees, A.C., Peres, C.A.,
Fearnside, P.M., Schneider, M., and Zuanon, J.A.S. (2016). Hydropower and the
future of Amazonian biodiversity. Biodiversity Conservation 25: 451-466 DOI
10.1007/s10531-016-1072-3.
* Traduzido por Edmilson Coelho da Silveira Junior
/ Felipe Martins Vital / Rafael Souza Gomes (Universidade Católica de Santos).
Fonte: Mongabay
Nenhum comentário:
Postar um comentário