A era das
grandes turbulências.
O Ocidente declina, mas os EUA conservam o poder
militar decisivo. A crise do capitalismo arrasta-se, espalha insegurança,
corrói a democracia. Onde encontrar a esperança?
Por Ignácio Ramonet*
Foto: Shutterstock
Qual o desenho do novo cenário mundial? Quais são
suas principais características? Que dinâmicas estão determinando o
funcionamento real de nosso planeta? Que características dominarão nos próximos
15 anos, daqui a 2030?
Para analisar este novo cenário e prever seu futuro
imediato, vamos utilizar a bússola da geopolítica, uma disciplina que nos
permite compreender o jogo geral das potências e avaliar os principais riscos e
perigos. Para antecipar, como um tabuleiro de xadrez, os movimentos de cada potência
adversária.
E o que nos diz esta bússola?
1. O declínio do Ocidente
A principal constatação é o declínio do Ocidente.
Pela primeira vez desde o século 15, os países ocidentais estão perdendo poder
frente a ascensão das novas potências emergentes. Começa a fase final de um
ciclo de cinco séculos de dominação ocidental do mundo. A liderança
internacional dos EUA viu-se ameaçada pelo surgimento de novos polos de poder
(China, Rússia e Índia) em escala internacional. A “degradação estratégica” dos
EUA já começou. O “século americano” parece chegar ao seu fim, enquanto o
“sonho europeu” desaparece.
Embora os EUA sigam sendo uma das principais
potenciais planetárias, estão perdendo sua hegemonia econômica para a China. E
já não exercerão mais sua “hegemonia militar solitária” como fizeram desde o
fim da Guerra Fria (1989). Estamos caminhando para um mundo multipolar em que
os novos atores (China, Rússia e Índia) têm vocação para construir sólidos
polos regionais e a disputar a supremacia internacional com Washington e seus
aliados históricos (Reino Unido, França, Alemanha e Japão).
Na terceira linha aparece uma série de potenciais
intermediarias, com demografias em alta e fortes taxas de crescimento
econômico, convertendo-se também em polos hegemônicos regionais e com tendência
a se transformar, daqui a 15 anos, em um grupo de influência planetária
(Indonésia, Brasil, Vietnã, Turquia, Nigéria, Etiópia).
Para ter uma ideia da importância e da rapidez da
degradação ocidental que se avizinha, basta observar essas cifras: a
participação dos países ocidentais na economia mundial vai passar de 56% hoje
para 25% em 2030… Ou seja, em menos de 15 anos o Ocidente perderá mais da
metade de sua preponderância econômica. Uma das principais consequências será
que os EUA e seus aliados não terão mais os meios financeiros para assumir o
policiamento do mundo… De tal modo que está mudança estrutural poderá debilitar
o Ocidente duplamente.
2. A incontível emergência da China
O mundo está “desocidentalizando” e é cada vez mais
multipolar. Destaca-se, mais uma vez, o papel da China que emerge, a principio,
como uma grande potência no coração do século 21 — apesar de estar longe de
representar ainda uma autêntica rivalidade com Washington. Por um lado, a
estabilidade de Pequim não está garantida porque coexistem em seu seio o
capitalismo mais selvagem e o comunismo mais autoritário. A tensão entre essas
duas dinâmicas causará, cedo ou tarde, uma ruptura que poderá debilitar sua
potência.
De qualquer maneira, hoje, em 2016, os EUA seguem
exercendo uma indiscutível dominação hegemônica sobre o planeta. Tanto no
terreno militar (fundamental), quanto em vários outros setores cada vez mais
determinantes: em particular, na tecnologia (internet) e no soft power (cultura
de massas). Isso não quer dizer que a China não tenha realizado também avanços
prodigiosos nos últimos anos. Nunca na história, um país cresceu tanto em tão
pouco tempo.
No momento, enquanto declina o poder dos EUA, a
ascensão da China é incontornável. Já é a segunda potência econômica do mundo
(à frente do Japão e Alemanha).
Para Washington, a Ásia é agora a zona prioritária
desde que o presidente Barack Obama decidiu a reorientação estratégica de sua
política externa. Os EUA buscam frear a expansão da China, cercando-a com bases
militares e apoiando seus aliados locais tradicionais: Japão, Coreia do Sul,
Taiwan e Filipinas. É significativo que a primeira viagem de Obama, depois da
sua reeleição em 2012, tenha sido para Birmânia, Camboja e Tailândia, três
países da Associação de Nações da Ásia do Sudeste (ASEAN), uma organização que
reúne os aliados de Washington na região, cujos membros têm problemas de
limites marítimos com Pequim.
Os mares da China tornaram-se as zonas com maior
potencial de conflito armado da área Ásia-Pacífico. Há tensões entre Pequim e
Tóquio, a propósito da soberania sobre as ilhas Senkaku (Diaoyú para os
chineses). Também a disputa com Vietnã e Filipinas sobre a propriedade das
ilhas Spratly está subindo o tom perigosamente. A China está modernizando toda sua
marinha em alta velocidade. Em 2012, lançou seu primeiro porta-aviões, o
Lioning, e está construindo um segundo, com a intenção de intimidar a Casa
Branca. Pequim suporta cada vez menos a presença militar dos EUA na Ásia. Entre
estes dois gigantes, esta se instalando uma perigosa “desconfiança estratégica”
que, sem nenhuma dúvida, poderá marcar a política internacional nesta reginão
até 2030.
3. O terrorismo jihadista
Outras das ameaças globais indicadas por nossa
bússola é o terrorismo jiahadista praticado ontem pela Al-Qaeda e hoje pelo
Estado Islâmico (ISIS). As principais causas do terrorismo atual têm de ser
buscadas nos desastrosos erros e crimes cometidos pelas potências que invadiram
o Iraque em 2003 — além das intervenções caóticas na Líbia (2011) e na Síria
(2014).
No Oriente Médio segue situado no atual foco de
desestabilização do mundo. Em particular, em torno da inexplicável guerra civil
na Síria. O que está claro é que, neste país, as grandes potências ocidentais
(EUA, Reino Unido, França), aliadas aos Estados que mais difundem pelo mundo a
concepção mais arcaica e retrógrada do islã (Arábia Saudita, Qatar e Turquia),
decidiram apoiar (com dinheiro, armas e instruções) a insurgência islamista
sunista. Os EUA constituíram nesta região um amplo “exército sunita” com o
objetivo de derrubar Bashar Al-Assad e prejudicar um grande aliado regional de
Teerã. Entretanto, o governo de Assad, com o apoio da Rússia e do Irã, resistiu
e segue consolidando-se. O resultado de tantos erros é o terrorismo jihadista
atual que multiplica os atentados odiosos contra civis inocentes na Europa e
nos EUA.
Algumas capitais ocidentais seguem pensando que a
potência militar maciça é suficiente para derrotar o terrorismo. Mas a história
militar mostra exemplos abundantes de grandes potências incapazes de derrotar
adversários mais débeis. Basta recordar os fracassos norte-americanos no Vietnã
em 1975, e na Somália em 1994. Em um combate assimétrico, aquele que pode mais,
não ganha necessariamente. O historiador Eric Hobsbawn nos recorda que “Na
Irlanda do Norte, durante certa de 30 anos, o poder britânico se mostrou
incapaz de derrotar um exercito minúsculo como o IRA.
Certamente o IRA não
venceu, porém nem por isso, foi vencido”.
Os conflitos do novo tipo, quando uma potência
enfrenta o débil ou o louco, são mais fáceis de começar do que de terminar. E o
emprego maciço de meio militares pesados não necessariamente permite alcançar
os objetivos buscados.
A luta contra o terrorismo também está
justificando, em matéria de governança e de política doméstica, todas as
medidas autoritárias e todo os excessos, inclusive uma versão moderna do
“autoritarismo democrático” que tem como alvo, além das organizações
terroristas, todos os manifestantes que se opõem às políticas globalizadoras e
neoliberais.
4. Há crises para muito tempo…
Outra constatação importante: os países ricos
seguem padecendo de consequências do terremoto econômico-financeiro que foi a
crise de 2008. Pela primeira vez, a União Europeia, (e o “Brexit” confirma), vê
ameaçada sua coesão e até sua existência. Na Europa, a crise econômica durará
ao menos mais uma década, até pelo menos 2025.
Há crise, em qualquer setor, quando algum mecanismo
deixa de atuar, começa a ceder e acaba rompendo-se. Essa ruptura impede que o
conjunto da maquinaria siga funcionando. É o que aconteceu com a economia
mundial desde o estouro da crise das sub-primes em 2007-2008.
As consequências sociais desse cataclismo econômico
foram brutalmente inéditas: 23 milhões de desempregados na União Europeia e
mais de 80 milhões de pobres… Os jovens, em particular, são as principais
vítimas; gerações sem futuro. Mas as classes médias também estão assustadas
porque o modelo neoliberal de crescimento abandonou-as à margem do caminho.
A velocidade da economia financeira de hoje é de
relâmpago, enquanto que a velocidade da política, em comparação, é de caracol.
Resulta que fica cada vez mais difícil conciliar tempo econômico e tempo
político. E também crises globais e governos nacionais. Tudo isto provoca, nos
cidadãos, frustração e angústia.
A crise global produz perdedores e ganhadores. Os
ganhadores encontram-se, essencialmente, na Ásia e nos países emergentes, que
não têm uma visão tão pessimista da situação, como os europeus. Também há
muitos ganhadores no interior dos países ocidentais, cujas sociedades
encontram-se fraturadas pela desigualdade entre ricos cada vez mais ricos e
pobres cada vez mais pobres.
Na realidade, não estamos suportando uma crise, mas
uma série de crises, uma soma de crises mescladas tão intimamente umas às
outras que não conseguimos distinguir entre causas e efeitos. Porque os efeitos
de umas são as causas das outras, e assim até formar um verdadeiro sistema de
crises. Ou seja, enfrentamos uma autêntica crise sistêmica do mundo ocidental,
que afeta a tecnologia, a economia, o comércio, a política, a democracia, a
identidade, a guerra, o clima, o meio ambiente, a cultura, os valores, a
família, a educação, a juventude etc.
Do ponto de vista antropológico, essas crises estão
sendo traduzidas por um aumento do medo e do ressentimento. As pessoas vivem em
estado de ansiedade e incerteza. Voltam os grandes pânicos ante ameaças
indeterminadas, como podem ser a perda do emprego, os choques tecnológicos, as
biotecnologias, as catástrofes naturais, a insegurança generalizada… Tudo isso
constitui um desafio para as democracias. Porque esse terror transforma-se às
vezes em ódio e em repúdio. Em vários países europeus, e também nos EUA, ele
dirige-se hoje contra o estrangeiro, o imigrante, latinos, ciganos,
subsaarianos, “sem visto”, e etc. Crescem os partidos xenofóbicos e de extrema
direita.
5. Decepção e desencanto
É preciso entender que, desde a crise financeira de
2008 (de que ainda não saímos), nada é igual em nenhum lugar. Os cidadãos estão
profundamente desencantados. A própria democracia, como modelo, perdeu
credibilidade. Os sistemas políticos foram sacudidos pela raiz. Na Europa, por
exemplo, os grandes partidos tradicionais estão em crise. E em toda parte
percebemos o crescimento de formações de extrema direita (na França, na Áustria
e nos países nórdicos) ou de partidos anti-sistema e anticorrupção (Itália,
Espanha). A paisagem política parece radicalmente transformada.
Esse fenômeno chegou aos Estados Unidos, um país
que já conheceu, em 2010, uma onda populista de direita devastadora, então
encarnada pelo Tea Party. A ascensão do multimilionário Donald Trump na corrida
pela Casa Branca prolonga essa onda e se constitui numa revolução eleitoral que
nenhum analista soube prever. Ainda que sobreviva, aparentemente, a velha
bicefalia entre democratas e republicanos, a ascensão de um candidato tão
heterodoxo como Trump constitui um verdadeiro terremoto. Seu estilo direto,
popularesco, e sua mensagem maniqueísta e reducionista, com apelo aos baixos
instintos de certos setores da sociedade, conferiram-lhe um caráter de
autenticidade aos olhos do setor mais decepcionado dos eleitores de direita.
A esse respeito, o candidato republicano soube
interpretar o que poderíamos chamar de “rebelião das bases”. Melhor que todos,
percebeu a fratura cada vez maior entre as elites políticas, econômicas,
intelectuais e midiáticas, por um lado, e a base do eleitorado conservador, por
outro. Seu discurso violentamente anti-burocracia de Washington, anti-mídia e
anti-Wall Street seduz, em particular, os eleitores brancos, pouco cultos e
empobrecidos pelos efeitos da globalização econômica.
6. Terremotos e mais terremotos
Poderíamos dizer que outra grande característica do
novo cenário global são os terremotos. Terremotos financeiros, monetários, das
bolsas; terremotos climáticos, energéticos, tecnológicos, sociais, geopolíticos
como o restabelecimento de relações entre Cuba e Estados Unidos, ou, em outro
sentido, o recente golpe de Estado institucional no Brasil contra a presidenta
Dilma Rousseff.
Terremotos eleitorais como a recente vitória do “não” na
Colômbia aos Acordos de Paz entre o governo de Juan Manuel Santos e as FARC; ou
o recente “Brexit” no Reino Unidos, ou o êxito da extrema direita na Áustria,
ou a derrota de Angela Merkel em várias eleições parciais na Alemanha. Ou o
enorme terremoto que poderia constituir, efetivamente, a eventual vitória
eleitoral de Donald Trump nos Estados Unidos.
Acontecimentos imprevistos irrompem com força sem
que ninguém, ou quase ninguém, os tenha visto chegando. Há uma falta de
visibilidade geral. Se governar é prever, vivemos uma evidente crise de
governança geral. Em muitos países, o Estado que protegia os cidadãos deixou de
existir. Há uma crise da democracia representativa: “Não nos representam!”,
diziam os “indignados”. As pessoas reivindicam que a autoridade política volte
a assumir seu papel condutor na sociedade. Insiste-se na necessidade de
reinventar a política e de que o poder político ponha fim ao poder econômico e
financeiro dos mercados.
7. Internet, ciber-espionagem e ciber-defesa
O novo cenário global também se caracteriza pela
multiplicidade de rupturas estratégicas, cujo significado às vezes não
compreendemos. Hoje, a internet é o vetor da maioria das mudanças. Quase todas
as crises recentes têm alguma relação com as novas tecnologias da comunicação e
da informação, com a desmaterialização e a digitalização generalizadas, e com a
explosão inédita das redes sociais. Mais que uma tecnologia, a Internet é pois
um ator fundamental da crise. Basta recordar o papel de WikiLeaks, Facebook,
Twitter e das demais redes sociais na aceleraçao da informação e da
conectividade social pelo mundo.
Daqui a 2030, no novo cenário, algumas das maiores
coletividades do planeta já não serão países, mas comunidades congregadas e
vinculadas entre si pela internet e pelas redes sociais. Por exemplo,
‘Facebooklandia’: mais de um bilhão de usuários… Ou ‘Twitterlandia’, mais de
800 milhões… Sua influência, no jogo da geopolítica mundial, poderia revelar-se
decisiva. Hoje, as estruturas de poder se borram graças ao acesso universal à
rede e ao uso de novas ferramentas digitais.
Por outro lado, pela estreita cumplicidade que
algumas grandes potências estabeleceram com as grandes empresas privadas que
dominam as indústrias de informática e de telecomunicações, a capacidade em
termos de espionagem de massas cresceu também de forma exponencial. As mega
empresas como Google, Apple, Microsoft, Amazon e mais recentemente Facebook
estabeleceram laços estreitos com o aparato do Estado em Washington,
especialmente com os responsáveis pela política exterior. Essa relação
converteu-se numa evidência. Compartilham as mesmas ideias politicas e têm
idêntica visão de mundo. Em última instância, os estreitos vínculos e a visão
comum do mundo, por exemplo, do Google e do governo estadunidense estão a
serviço dos objetivos da política externa dos Estados Unidos.
Essa aliança sem precedentes (Estado + aparato
militar de segurança + empresas gigantes da Web) – criou um verdadeiro império
da vigilância, cujo objetivo claro e concreto é colocar a internet sob escuta,
toda a internet e todos os internautas, como denunciaram Julian Assange e
Edward Snowden.
O ciberespaço converteu-se numa espécie de quinto
elemento. O filósofo grego Empédocles sustentava que nosso mundo estava formado
por uma combinação de quatro elementos: terra, ar, água e fogo. Mas o
surgimento da Internet, com seu misterioso “inter-espaço” superposto ao nosso,
formado por bilhões de intercâmbios digitais de todo tipo, por seu roaming, seu
streaming e seu clouding, engendrou um novo universo, de certo modo quântico,
que vem completar a realidade do nosso mundo contemporâneo como se fosse um
autêntico quinto elemento.
Nesse sentido, deve-se ressaltar que cada um dos
quatro elementos tradicionais constitui, historicamente, um campo de batalha,
um lugar de confronto. E que os Estados tiveram de desenvolver componentes
específicos das forças armadas para cada um desses elementos: para a terra, o
exército; para o ar, a aeronáutica; para a água, a Marinha; e, com caráter mais
singular, para o fogo, os bombeiros, ou “soldados do fogo”. De modo natural,
todas as grandes potências estão acrescentando hoje, aos três exércitos
tradicionais e aos combatentes do fogo, um novo exército, cujo ecosistema é o
quinto elemento: o ciberexército, encarregado da ciberdefesa, que tem suas
próprias estruturas orgânicas, seu Estado maior, seus cibersoldados e suas
próprias armas: supercomputadores preparados para defender as ciberfronteiras e
travar a ciberguerra digital no âmbito da Internet.
8. Uma mutação do capitalismo: a economia
colaborativa
Trinta anos depois da expansão maciça da Web, os
hábitos de consumo também estão mudando. Impõe-se pouco a pouco a ideia de que
a opção mais inteligente é usar algo em comum, e não necessariamente
comprando-o. Isso significa abandonar, pouco a pouco, uma economia baseada na
submissão dos consumidores e no antagonismo ou na competição entre os
produtores — e passar a uma economia que estimula a colaboração e o intercâmbio
entre os usuários de bens e serviços. Tudo isso causa uma verdadeira revolução
no seio do capitalismo, que está operando uma nova mutação, diante de nossos
olhos.
É um momento irresistível. Milhares de plataformas
digitais de intercambio de produtos e serviços estão se expandindo com muita
rapidez. A quantidade de bens e serviços que podem ser alugados ou trocados
mediante plataformas online, sejam pagas ou gratuitas (como a Wikipedia), é já
literalmente infinita.
Em nível planetário, essa economia colaborativa
cresce atualmente entre 15% e 17% ao ano. Com alguns exemplos de crescimentos
absolutamente espetaculares. Por exemplo o Uber, o aplicativo digital que
conecta passageiros com motoristas, em apenas cinco anos de existência já vale
68 bilhões de dólares e opera em 132 países. O Airbnb, a plataforma online de
hospedagem para particulares surgida em 2008 e que já encontrou cama para mais
de 40 milhões de viajantes, vale hoje na Bolsa (sem ser proprietária de uma
única habitação) mais de 30 bilhões de dólares, ou seja, mais que os grande
grupos Hilton, Marriott ou Hyatt.
A esse respeito, outro traço fundamental que está
mudando – e que foi nada menos que a base da sociedade de consumo –, é o
sentido de propriedade, o desejo de posse. Adquirir, compar, ter, possuir eram
os verbos que melhor traduziam a ambição essencial de uma época em que o ter
definia o ser. Acumular “coisas” (casas, carros, geladeiras, televisores,
móveis, roupa, relógios, livros, quadros, telefones etc) constituía, para
muitas pessoas, a principal razão da existência. Parecia que, desde o início
dos tempos, o sentido materialista de posse era inerente ao ser humano.
A economia colaborativa constitui assim um modelo
baseado no intercâmbio e no compartilhamento de bens e serviços por meio do uso
de plataformas digitais. Inspira-se nas utopias de compartilhamento e de
valores não mercantis como a ajuda mútua ou a convivialidade, e também do
espírito de gratuidade, mito fundador da internet. Sua ideia principal é: “o
meu é seu”, ou seja, compartilhar em vez de possuir. E o conceito básico é a
troca. Trata-se de conectar, por via digital, as pessoas que buscam “algo” com
as pessoas que o oferecem. As empresas mais conhecidas desse setor são: Uber,
Airbnb, Netflix, Blabacar etc.
Muitos indícios levam a pensar que estamos
assistindo ao ocaso da 2ª revolução industrial, baseada no uso maciço de
energias fósseis e em telecomunicações centralizadas. E vemos a emergência de
uma economia colaborativa que obriga, como já dissemos, o sistema capitalista a
mudar.
Por outro lado, num contexto em que as mudanças
climáticas tornaram-se a principal ameaça para a sobrevivência da humanidade,
os cidadãos não desconhecem os perigos ecológicos inerentes ao modelo de
hiperprodução e de hiper-consumo globalizado. Aí também a economia colaborativa
oferece soluções menos agressivas para o planeta.
Num momento como o atual, de forte desconfiança com
relação ao modelo neoliberal e às elites políticas, financeiras, midiáticas e
bancárias, a economia colaborativa parece aportar respostas a muitos cidadãos
em busca de sentido e de ética responsável. Exalta valores de ajuda mútua e
desejo de compartilhamento. São critérios que, em outros momentos, foram
argamassa de teorias comunitárias e de ambições socialistas. Mas que hoje são –
e ninguém duvide – o novo rosto de um capitalismo mutante, desejoso de
afastar-se da selvageria amarga de seu recente período ultraliberal.
Nossa bússola também nos indica a aparição de
tensões entre os cidadãos e alguns governos em dinâmicas que vários sociólogos
qualificam de “pós-políticas” ou “pós-democráticas”… Por um lado, a
generalização do acesso à Internet e a universalização do uso das novas
tecnologias estão permitindo à cidadania alcançar altas cotas de liberdade e
desafiar seus representantes políticos (como durante a crise dos “indignados”).
Mas essas mesmas ferramentas eletrônicas proporcionam aos governos, como já
vimos, uma capacidade sem precedentes para vigiar seus cidadãos.
9. Ameaças não militares
“A tecnologia – assinala um informe recente da CIA
– continuará sendo o grande nivelador, e os futuros magnatas da internet, como
poderia ser o caso do Google e do Facebook, possuem montanhas de base de dados,
e manejam em tempo real muito mais informação que qualquer governo”. Por isso,
a CIA recomenda ao governo dos EUA que faça frente a essa ameaça eventual das
grandes corporações de internet, ativando o Special Collection Service, um
serviço de inteligência ultrassecreto – administrado em conjunto pela NSA
(National Security Agency) e o SCE (Service Cryptologic Elements) das Forças
Armadas – especializado na captação clandestina de informações de origem
eletromagnética. O perigo de que um grupo de empresas privadas controle toda
essa massa de dados reside, principalmente, em que poderia condicionar o
comportamento em grande escala da população mundial e inclusive das entidades
governamentais. Também se teme que o terrorismo jihadista seja substituído por
um ciberterrorismo ainda mais impactante.
A CIA leva a sério esse novo tipo de ameaça porque,
afinal, o declínio dos Estados Unidos não foi provocado por uma causa externa,
mas por uma crise interna: a quebra econômica ocorrida a partir de 2007-2008. O
informe insiste em que a geopolítica de hoje deve interessar-se por novos
fenômenos que não possuem, forçosamente, um caráter militar. Pois ainda que as
ameaças militares não tenham desaparecido, alguns dos principais perigos que
nossas sociedades correm hoje são de ordem não militar: mudanças climáticas,
mutação tecnológica, conflitos econômicos, crime organizado, guerras
eletrônicas, esgotamento dos recursos naturais…
Sobre esse último aspecto, é importante saber que
um dos recursos que está se esgotando mais aceleradamente é a água doce. Em
2030, 60% da população mundial terá problemas de abastecimento de água, dando
lugar ao surgimento de “conflitos hídricos”… Em contraste, no que diz respeito
aos combustíveis fósseis, a exploração de petróleo e de gás de xisto está
alcançando niveis excepcionais, graças às novas técnicas de fraturação
hidráulica. Os Estados Unidos já são quase autossuficientes em gás, e em 2030
poderão sê-lo em petróleo, cujos custos de produção tendem a baratear. Além
disso, encorajam a relocalização de suas indústrias. Mas se os EUA – principal
importador atual de combustíveis fósseis – deixaram de importar petróleo,
pode-se prever a queda do preço do barril. Quais serão então as consequências
para os grandes países exportadores?
10. Rumo ao triunfo das cidades e das classes
médias
No mundo a que nos dirigimos, 60% das pessoas
viverão nas cidades, pela primeira vez na história da humanidade. E, como
consequência da redução acelerada da pobreza, as classes médias serão
dominantes e triplicarão, passando de 1 para 3 bilhões de pessoas. Isso que, em
si, é uma revolução colossal, acarretará como consequência, entre outros
efeitos, uma mudança geral dos hábitos culinários e, em particular, um aumento
do consumo de carne em escala planetária – o que agravará a crise ambiental.
Em 2030, os habitantes do planeta seremos 8,5
bilhões, mas o aumento demográfico cessará em todos os continentes, menos na
África, com o consequente envelhecimento geral da população mundial. Em troca,
o vinculo entre o ser humano e as tecnologias protéticas acelerará o surgimento
de novas gerações de robôs e a aparição de “super-homens” capazes de proezas
físicas e intelectuais inéditas.
Muito raramente o futuro é previsível. Nem por
isso, deve-se deixar imaginá-lo, em termos de prospectiva. Isso nos prepara
para agir diante de diversas circunstâncias possíveis, das quais só uma se
realizará. Para isso, a geopolítica é uma ferramenta extremamente útil.
Ajuda-nos a tomar consciência das rápidas evoluções em curso e a refletir sobre
a possibilidade, para cada um de nós, de intervir e apontar o rumo. Para tratar
de construir um futuro mais justo, mais ecológico, menos desigual e mais
solidário.
* Ignácio Ramonet é jornalista, editor do Le
Monde Diplomatique, edição espanhola, e presidente da rede Memória das Lutas –
Medelu.
Fonte: Outras Palavras
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