Licenciatura
indígena no Amazonas na corda bamba.
Alunos da etnia Baniwa no curso de Licenciatura
indígena em São Gabriel da Cachoeira. Foto: Ivani Faria.
Enquanto MEC e UFAM decidem quem paga a conta,
alunos e professores da licenciatura indígena convivem com a incerteza sobre
continuidade das aulas.
Rosana Villar, da Carta Capital –
Ser aprovado no vestibular de uma grande
universidade pública é um prazer experimentado por pouquíssimos brasileiros. É
a meta de boa parte dos jovens ao final da adolescência e o drama de muitas
famílias que, em caso negativo, nunca terão condições de arcar com os estudos
de seus filhos.
Assim, não é difícil de imaginar como Gabriel
Gonçalves sentiu-se ao receber a notícia de que, “em razão da crescente crise
econômica que passa o país”, seu curso seria cancelado.
Ele foi o primeiro colocado em um vestibular que
selecionou 120 estudantes para uma seleta turma de Licenciatura Indígena,
Políticas Educacionais e Desenvolvimento Sustentável, em São Gabriel da
Cachoeira.
O curso, oferecido pela Universidade Federal do
estado (UFAM), foi cancelado e retomado no intervalo de dois meses, sob
circunstâncias controversas e que deixam, até hoje, um clima de incertezas: a
coordenação do curso e organizações relatam atrasos na liberação de pagamentos
e um cenário de constante descaso com a educação superior indígena.
São Gabriel da Cachoeira fica no extremo noroeste
do Amazonas, na região conhecida como “Cabeça do Cachorro”, na tríplice
fronteira entre Colômbia, Venezuela e Brasil.
A cidade tem a maior população indígena do país,
são mais de 29 mil pessoas, com necessidades educacionais bastante específicas.
Além do português, o município tem outros três idiomas oficiais, o Nheengatu,
Tukano e o Baniwa, e 23 povos indígenas pertencentes às famílias linguísticas
Japurá-Uuapés, Aruak, Tupi e Yanomami
O curso de Licenciatura, vinculado ao Instituto de
Ciências Humanas e Letras (ICHL) da UFAM, foi o primeiro oferecido diretamente
no município, em 2010. Atualmente, existem quatro turmas na cidade, de nove
oferecidas em todo o Amazonas. A metodologia alia atividades de ensino,
pesquisa e extensão, com foco na formação de professores e no atendimento às
necessidades de cada aldeia.
Na prática, o curso permite que 380 alunos
indígenas desenvolvam seus conhecimentos tradicionais e técnicos, sem sair de
suas comunidades – que, neste caso, ficam há dias ou até semanas de distância
de grandes centros acadêmicos do estado, como Manaus.
A novela dos recursos
“Acontece todo início de ano: o governo Federal não
usa os recursos para o curso e as universidades tem que arcar sozinhas até que
o MEC libere os pagamentos. No ano passado esse recurso chegou apenas em
setembro”, relata a coordenadora da licenciatura, professora Dra. Ivani
Ferreira de Faria.
Mas em dezembro de 2015, quando as verbas do
Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas Interculturais Indígenas
(Prolind), do MEC, não apareceram no Orçamento da União de 2016, a UFAM
publicou um comunicado informando aos alunos e professores sobre o cancelamento
de “determinados programas institucionais devido a falta de recursos
financeiros” – apenas o curso de licenciatura Indígena entrou no corte.
“Primeiramente a gente ficou chocado, porque não
sabíamos que o curso não ia acontecer. Existe uma praxe no comportamento da
universidade e do MEC de nunca querem liberar estes orçamentos, embora os
recursos sempre existam”, conta Deuzimar Morais Cordeiro, indígena Baré, aluno
do sexto período do curso na comunidade de Cucuí, em São Gabriel da Cachoeira.
Após o choque inicial, grupos de estudantes
buscaram o apoio da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn),
do Conselho Geral da Tribo Sateré-Mawé (CGTSM) e da Coordenação das
Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), para questionar a
decisão junto ao Ministério Público Federal do Amazonas.
A decisão foi revertida quando o governo federal
sancionou o orçamento do ano, em 14 de janeiro deste ano. À época, a reitora da
UFAM, Marcia Perales, chegou a afirmar que, por isso, iria retomar o curso e
que a decisão era “um sinalizador importante, embora não signifique, ainda,
garantias reais de que receberemos o que está previsto para 2016”.
De acordo com a assessoria de comunicação da
universidade, houve um atraso no repasse dos recursos por parte do MEC no
início deste ano, mas a situação foi normalizada. A UFAM informou, através de
nota, que “não houve contingenciamento dos recursos do Prolind, pelo contrário,
em 2016 os valores destinados à UFAM foram superiores aos dos dois anos
anteriores. Este ano, o Programa de Educação Indígena recebeu R$ 4,394 em
recursos do Prolind. Já em 2015, o repasse chegou a R$ 3,920. Em 2014, o
Programa teve R$ 3,157”.
Os valores informados pela universidade referem-se
ao total dos repasses do Prolind, divididos entre a ICHL e a Faculdade de
Educação (FACED), que oferece outro curso de licenciatura indígena em Manaus.
Segundo o MEC, foram “descentralizados” R$ 2,280 milhões para o curso da ICHL
este ano.
Mas apesar da informação de que os recursos estão
em caixa, a realidade relatada no campo é diferente. “Existe a previsão
orçamentária, que é o limite que poderá ser gasto, e o financeiro, que é o
dinheiro de verdade. Para receber o financeiro temos que enviar as notas
fiscais dos serviços para Brasília para obter o pagamento. Mas o que tem
acontecido é que acionam Brasília, mas eles não pagam ou pagam o mínimo, e
começamos a atrasar fornecedores, com o risco de ter serviços, como alimentação
e transporte, interrompidos”, afirma a professora Ivani Faria. “O Ministério da
Educação brinca com a gente. Não é uma política pública, é uma política de
temor”, desabafa.
Em nota, o MEC informou que o Prolind será mantido
e que não sofreu cortes orçamentários este ano.
“Diziam que o curso indígena não era prioridade”
Depois de todo o imbróglio, com a publicação e
republicação de editais, o curso foi finalmente iniciado, sem que os principais
interessados fossem devidamente informados sobre os motivos da decisão.
“Eles vieram com a frase de que o curso indígena
não era prioridade e quisemos imediatamente saber o por quê. A verdade é que
não era prioridade pois queriam reduzir nossos direitos. Mas entramos com as
cartas e a ação para mostrar que somos sim prioridade e que esses direitos
estão garantidos na Constituição”, afirma Deuziano. Para o estudante, se não
fosse a reação dos povos indígenas, o curso poderia realmente ter sido extinto.
Ideia reforçada pela Coordenação do Departamento de
Educação da (FOIRN), em nota. “Quando falamos dos cursos que são ofertados
pelas instituições de ensino que se fazem presentes na região do Rio Negro,
sempre temos afirmado que não são as instituições de ensino que trazem esses
cursos. Eles são resultados das reivindicações do movimento indígena”, afirma o
documento, assinado pelos coordenadores Ivo Fernandes Fontoura e Edison
Cordeiro.
A semente para a criação da Licenciatura Indígena,
Políticas Educacionais e Desenvolvimento Sustentável foi germinada em 2004, no
Seminário sobre o Ensino Médio promovido pela SECAD/MEC, FOIRN e COPIARN
(Conselho dos Professores Indígenas do Alto Rio Negro), com a Carta de São
Gabriel, que pedia à UFAM que discutisse e implantasse cursos específicos para
indígenas. Foram necessários seis anos de discussões e revisões para que o
projeto fosse aprovado.
“O MEC demorou para aprovar o curso, fizemos várias
diligências. Falavam que nosso curso não era intercultural, que não respeitava
as línguas e o movimento indígena”, lembra a coordenadora do curso.
“Atualmente temos duas vertentes de ensino superior
indígena. Um sistema colonizador, mais comum na maioria dos estados, que não
traz nada diferente para os povos indígenas, com conteúdos da sociedade
ocidental, e o nosso, que respeita a língua e os conhecimentos tradicionais.
Por isso nosso curso sofre muita resistência e isso já foi inclusive usado pelo
MEC como justificativa para não destinar verbas”, conta Ivani.
De acordo com a nota da FOIRN, o curso sofre
constante resistência dos meios acadêmicos tradicionais por favorecer saberes e
valores tradicionais dos povos indígenas. “O MEC precisa compreender que os
povos indígenas sabem do que é importante para o bem viver dos povos indígenas
do Brasil e que o país é que precisa aprender com nossa filosofia de gestão
territorial”.
“Para mim não faz sentido eu fazer um curso voltado
a indígenas na Universidade de Brasília, por exemplo. Esses cursos não iam me
ajudar a desenvolver minha comunidade, mas sim a empresa de alguém, o produto
de alguém. Aqui eu me desenvolvo como eu quero e como penso que tem que ser
para o bem da minha comunidade, é a filosofia do retorno”, resume Deuzimar.
Fonte: Carta Capital
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