O vale
que já foi doce amargura.
O dano ambiental, social e econômico decorrente do
rompimento da barragem de Fundão certamente demandará esforços e empenho de
todos em ações de recuperação, monitoramento e mitigação e, sobretudo, na
aplicação efetiva da legislação. Foto: Prefeitura de Colatina.
“Estamos ficando sem água e com sede em frente a
grandes rios e reservatórios poluídos”
Por Malu Ribeiro*
O início das chuvas era esperado por comunidades,
produtores e agricultores da bacia do rio Doce como uma dádiva que viria para
revitalizar o vale duramente penalizado com a estiagem que afetou a região
sudeste em 2015. A baixa vazão do rio, tomado por bancos de areia, dificultava
sua chegada ao mar. Os pescadores da bacia, em especial os da região do
estuário, aguardavam esperançosos o início do verão, quando “o rio toma água na
cabeceira e se enche de vida”, como eles dizem.
É comum, segundo os ribeirinhos, ver o rio Doce
barrento quando começam as chuvas, pois há pouca cobertura florestal na bacia
que tem grande parte dos solos alterados por atividades humanas e agrícolas. Na
região, a Mata Atlântica que regula o clima e reabastece as nascentes,
aquíferos e rios está reduzida a poucos fragmentos preservados em parques e
áreas protegidas. Com o rompimento da barragem de rejeitos de minério da
Samarco, pertencente à Vale e à BHP Billiton, a avalanche de lama impactou uma
área de 1.775 hectares (ha), ou 17 km2, nos municípios mineiros de Mariana,
Barra Longa, Rio Doce, Santa Cruz do Escalvado e Ponte Nova.
A SOS Mata Atlântica e o INPE mediram com imagens
de satélite o tamanho da devastação e, em campo, de 6 a 12 de dezembro, após um
mês do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, nossa equipe partiu em uma
expedição que seguiu o rastro da lama por mais de 650 quilômetros de rios,
desde as cabeceiras até a foz do rio Doce. O enorme volume de rejeitos de
minério arrastou e cobriu a vegetação nativa, destruindo, além de vilas
inteiras e mananciais, cerca de 324 ha da Mata Atlântica que protegia as
margens dos rios.
Partimos de Mariana pelo Vale da Alegria, uma
região de montanhas, matas, riachos e pequenas propriedades, nas cabeceiras dos
rios Gualaxo do Norte, Santarém e de pequenos contribuintes do rio Doce. Nesses
riachos, fizemos as primeiras análises da qualidade da água, que já apresentava
quantidade elevada de sedimentos, com cores variadas, do cinza brilhante ao
dourado, tingindo a água de laranja. Apesar disso, a qualidade da água aferida
nas análises acima das áreas afetadas pelo rompimento da barragem foi regular.
Os sedimentos lançados nesses riachos e a turbidez impressionam, uma vez que
são mananciais que deveriam ter qualidade de água boa e não serem utilizados
para diluir rejeitos de mineração.
A paisagem belíssima dos primeiros 30 km foi
rasgada por enormes barragens da Samarco. Máquinas, caminhões e um verdadeiro
exército de trabalhadores em caminhonetes ocupavam as estradas de acesso às
barragens de Timbopeba, Santarém e Fundão. Policiais e seguranças alertavam
sobre o risco de novos rompimentos e pediam para que deixássemos rapidamente a
região. Apesar dos alertas, seguimos rumo a Bento Rodrigues, primeiro distrito
devastado pelos rejeitos de minério.
O Vale da Alegria coberto por lama e por um
silêncio assustador estava deserto. Foi difícil achar o leito do rio ao chegar
em Bento Rodrigues. A lama densa buscava outros caminhos entre telhados,
entulhos de casas, carros e pontes. O vilarejo se transformou em uma ruina
coberta de lama, com casas entreabertas, móveis espalhados, fotografias,
brinquedos de crianças e alguns animais perdidos. Voluntários de ONGs e
moradores recolhiam cães, entre outros animais de estimação, e buscavam
pertences.
As pessoas já não lamentavam o que haviam perdido e
agradeciam por estarem vivas, mas se queixavam da falta de informação, da
impunidade e do desrespeito. O sentimento mais recorrente nas diversas
comunidades que percorremos era de descrença nas autoridades e de indignação.
As pessoas queriam respostas objetivas e não confiavam que a água que estava
sendo fornecida nas torneiras das casas, ou em caminhões pipa, podia ser
consumida. Ouvimos muitos relatos sobre problemas de saúde, de pessoas que
tiveram diarreias, irritações na pele e náuseas em decorrência do uso da água.
Nossa equipe e outros pesquisadores que atuavam na região também sentiram os
mesmos sintomas, pois, apesar de consumirmos água mineral, os alimentos e a
higiene pessoal eram feitos com a água disponibilizada pelos serviços
municipais e pela Samarco.
Uma enorme frota de caminhões pipa percorria a região,
desde Paracatu de Baixo, Acaiaca e Barra Longa até os municípios do Espírito
Santo, afetados pela lama. Na região do encontro dos rios Carmo e Gualaxo do
Norte, onde se forma o rio Doce, montanhas de troncos de árvores, toras de
madeira e entulhos estavam sendo retirados das margens do rio. A forte
corredeira de lama e os destroços impediam o uso do caiaque especialmente
equipado com sondas e equipamentos que levamos para as análises da água.
Fizemos as coletas de lama e o monitoramento da água das margens dos rios e de
pontes, em um total de 29 pontos.
As fortes chuvas que atingiam a região e o risco de
novo rompimento de barragens fizeram com que fossem abertas as comportas da
Usina Candonga (UHE Risoleta Neves), que conteve a primeira onda de lama, formando
uma enorme cachoeira de cor vermelha e densa. Acompanhamos essa onda de lama
até a foz do rio Doce, em Regência (ES). Acreditávamos que a turbidez e a
concentração de metais pesados encontrados nas amostras de água fossem
diminuindo após o rio serpentear a região do Parque Estadual do Rio Doce, até o
município de Ipatinga. Porém, a condição de rio morto, com qualidade de água
péssima, lameado e com concentrações elevadas de metais pesados não mudou.
A força da correnteza de lama diminuiu na região de
Belo Oriente e Bugre, assim pudemos finalmente navegar no rio Doce. Fizemos a
primeira travessia de balsa entre os distritos de Cachoeira Escura e São
Lourenço, por um enorme rio “cor de fanta laranja”, segundo as crianças que
atravessaram conosco. Nesse trecho, a profundidade no corpo central do rio era
de apenas 1.40 metros. Os balseiros contaram que viram descer junto com a lama,
por dois dias seguidos, muitos animais mortos, peixes enormes que nunca haviam
visto e que ficaram sem água e sem acesso, ilhados em suas vilas. Não houve
aviso para que essas comunidades se preparassem para o impacto que estavam por
receber. A onda de lama atingiu a região três dias após o rompimento da
barragem de Fundão e as balsas e o fornecimento de água foram interrompidos.
As cidades maiores buscaram outras alternativas de
captação de água e infelizmente continuaram a lançar esgoto sem tratamento no
rio agonizante. Apesar da turbidez elevada, com índices até 5 mil vezes acima
do que estabelece a legislação, e da concentração de metais pesados
provenientes dos rejeitos de minério, constatamos contaminação por esgoto
doméstico e por defensivos agrícolas em todo o trecho do médio rio Doce até a
foz.
O dano ambiental, social e econômico decorrente do
rompimento da barragem de Fundão certamente demandará esforços e empenho de
todos em ações de recuperação, monitoramento e mitigação e, sobretudo, na
aplicação efetiva da legislação. Essa gravíssima tragédia poderia ter sido
evitada se os órgãos ambientais e de fiscalização estivessem aparelhados e
atuassem de forma integrada, independente e efetiva, sem ingerência política e
econômica, com agilidade e transparência.
Essa tragédia anunciada precisa servir de alerta
para que a sociedade não permita o desmonte do Sistema de Meio Ambiente, a
flexibilização das leis, como o Código de Mineração e o Licenciamento Ambiental
brasileiro, para beneficiar setores econômicos e interesses políticos.
O rio Doce nos deixará um legado importantíssimo: o
da cooperação e da ação autônoma e independente da sociedade. De instituições
como o Ministério Público na apuração de responsabilidades; da sociedade civil
e da comunidade científica na produção de informação, laudos técnicos e estudos
voltados à recuperação da bacia e, acima de tudo, na prevenção para que danos
como esse não se repitam.
* Malu Ribeiro é coordenadora da Rede das
Águas da Fundação SOS Mata Atlântica, ONG brasileira que desenvolve projetos e
campanhas em defesa das Florestas, do Mar e da qualidade de vida nas Cidades.
Fonte: SOS Mata Atlântica
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